Ensaio Energético

O Setor de Energia Elétrica e o Desenvolvimento Sustentável: o caso da Geração Distribuída no Brasil

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar a Geração Distribuída (GD) no Brasil à luz do conceito de desenvolvimento sustentável. Para tanto, o artigo está dividido em três seções, incluindo a presente introdução. A seção 2 apresenta algumas descrições de desenvolvimento sustentável utilizadas atualmente. A seção 3 apresenta o caso da GD no Brasil e busca relacionar seus resultados com a ideia de desenvolvimento sustentável.

 

Desenvolvimento Sustentável

Em “A Riqueza das Nações” de 1776, Adam Smith tratou desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico. Tal ideia permaneceu em modelos clássicos e neoclássicos de crescimento elaborados no século XX, como no modelo de Solow, uma vez que tais modelos consideram crescimento econômico como a única variável para se chegar ao desenvolvimento. No entanto, ainda no século XX, no período pós-guerra, diversos economistas começaram a contestar tal ideia.

A corrente Estruturalista, com destaque para Raul Prebisch e Celso Furtado, defendia que o crescimento econômico seria uma condição indispensável, mas não suficiente, para o desenvolvimento. Desenvolvimento seria o crescimento econômico transformado para satisfazer as necessidades do ser humano, como saúde, educação, habitação, transporte, alimentação e lazer.

Sachs (1993), grande expoente da sustentabilidade, defendia que o desenvolvimento sustentável deveria ser analisado em 5 dimensões:

  • Social: distribuição de renda;
  • Econômica: melhorias na alocação e gestão de recursos;
  • Ecológica: preservação do meio ambiente e oferta de recursos naturais necessários à sobrevivência humana;
  • Espacial: tratamento equilibrado da ocupação rural e urbana e melhoria na distribuição territorial das atividades econômicas e assentamentos humanos; e
  • Cultural: alteração nos modos de pensar e agir da sociedade de forma a gerar uma consciência ambiental.

Em 1995, o então secretário da ONU, Boutros-Ghali, publicou um documento no qual defendia que desenvolvimento seria composto por 5 dimensões: paz, crescimento econômico, ambiente, justiça social e democracia (Matos e Rovella, 2010).

Em 2000, em sua obra “Desenvolvimento como liberdade”, Amartya Kumar Sen (2010) questiona o atual modelo de desenvolvimento econômico. Segundo Sen (2010), o atual modelo tende a esgotar a base de recursos naturais e aumentar as distorções sociais. Para Sen (2010), desenvolvimento deveria ter como base as dimensões econômica e sociocultural. Destaca-se que, visando tornar o desenvolvimento uma variável mensurável, Amartya Sen colaborou com os estudos de Mahbub ul Haq que resultou na criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O IDH leva em consideração a saúde, a educação e a renda da localidade[1].

Em 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os quais podem ser vistos na Figura 1.

 

Figura 1: Os 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU

Fonte: ONU[2].

 

Como foi descrito acima, a teoria econômica já vem há algum tempo diferenciando desenvolvimento de crescimento econômico. Ademais, as classificações de desenvolvimento têm apresentado esta como sendo composta por diversas dimensões, sendo a social uma delas. Tal fato pode ser visto em todas as definições de desenvolvimento apresentadas nessa seção e nos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, como os objetivos 1, 2, 3, 4 e 10.

É importante destacar que o desenvolvimento deve ser buscado em todas as suas dimensões. Nos últimos anos, por exemplo, a dimensão ambiental tem ganhado força devido as questões relacionadas ao aquecimento global e às mudanças climáticas, mas tal fato não deveria levar os agentes econômicos a ignorar as demais dimensões.

Segundo Buarque (2002), o desenvolvimento tem como base as dimensões econômica, social e ambiental. Para o autor, desenvolvimento seria fruto do aumento da eficiência e do crescimento econômico, da elevação da qualidade de vida e da equidade social, além da conservação ambiental. No entanto, um país que melhorasse a eficiência econômica e a conservação ambiental, mas deixasse a questão social de lado, teria como resultado um aumento da pobreza e da desigualdade social. Por outro lado, se o país melhorasse a eficiência econômica e a questão social, mas deixasse a conservação ambiental de lado, o mesmo teria como resultado a degradação do meio ambiente. Essas relações estão descritas na figura 2.

Figura 2: Desenvolvimento Sustentável

Fonte: Buarque (2002).

 

Buarque (2002) afirma que medidas voltadas para melhorar uma dimensão pode afetar negativamente outra. Por exemplo, medidas que melhorem a conservação ambiental podem ao mesmo tempo reduzir a eficiência econômica ou a equidade social. Para evitar tal efeito compensatório negativo, é preciso promover mudanças no modelo de desenvolvimento, principalmente no padrão tecnológico, na estrutura de renda e no padrão de consumo.

O que essa seção buscou mostrar é que o desenvolvimento apenas será alcançado quando todas as suas dimensões são levadas em consideração. Ademais, é preciso destacar que o desenvolvimento de um país (ou localidade) decorre de diversas políticas (públicas e privadas), sendo essencial que tais políticas levem em consideração todas as dimensões do desenvolvimento.

 

O caso da Geração Distribuída no Brasil

O artigo “O novo marco legal da Geração Distribuída (lei nº 14.300/2022) e suas principais mudanças” publicado no Ensaio Energético em maio de 2022 apresentou e analisou alguns dos principais pontos da Lei nº 14.300/2022, considerada o novo marco legal da GD no Brasil. Neste artigo vimos que tal lei:

  • Apenas reduziu os subsídios dados à GD, subsídios esses que são bancados pelos consumidores cativos;
  • Reduziu os subsídios dados à GD, mas manteve a GD bastante rentável;
  • Estabeleceu que todas as Unidades Consumidoras (UCs) com sistemas de GD que conseguissem acesso até janeiro de 2023 permaneceriam com a valoração dos créditos de energia inalterada até 31 de dezembro de 2045, ou seja, permaneceriam recebendo a mesma quantidade de subsídios já existentes.

Este mesmo artigo afirmou que a manutenção do subsídio para as UCs que em janeiro de 2023 possuíssem sistemas de GD instalados seria positivo no sentido de manter o direito adquirido, mas acabaria estimulando uma “corrida” pela adoção de sistemas de GD em 2022. Conforme pode ser visto na tabela 1, tal corrida ocorreu e o ano de 2022 bateu recordes tanto em termos de potência instalada (cerca de 8,3 GW) quanto em relação à quantidade de novas UCs com GD. Destaca-se também que 2023, mesmo estando ainda no mês de agosto, já se apresenta como o segundo melhor ano em termos de potência instalada, o que indica que a GD permanece rentável mesmo com o corte de parte dos subsídios.

 

Tabela 1: Evolução anual do número de Conexões e da Potência Instalada de Geração Distribuída no Brasil

Fonte: ANEEL[3]. Elaboração Própria.

*Até 16/08/2023.

 

É preciso destacar que 98,9 % dos 23,2 GW de potência de GD instalada no Brasil é proveniente da energia solar fotovoltaica (FV) e, assim sendo, podemos dizer que o crescimento da GD no Brasil contribuiu para o desenvolvimento sustentável na dimensão ambiental. Ademais, o desenvolvimento de projetos de GD também ajuda na dimensão econômica, uma vez que os investimentos nesse setor geram renda e emprego. Por outro lado, como veremos em seguida, o crescimento da GD no Brasil pecou na dimensão social.

Cerca de 49% da GD no Brasil é proveniente da classe residencial e 28% da classe comercial. O que precisamos ter em mente é que, em geral, quem tem acesso à sistemas de GD são famílias de renda mais elevadas e empresas em boa situação financeira. Por outro lado, os subsídios dados à GD são pagos em grande parte por consumidores cativos que possuem capacidade financeira limitada e dificuldades para ter acesso a um sistema de GD. Portanto, trata-se de uma distribuição de renda às avessas ou, no mínimo, de uma má alocação de recursos, onde poucos agentes em boas condições financeiras recebem subsídios bancados por uma parte considerável da população de menor renda.

Para exemplificar a má alocação de recursos relacionados à GD descrita no parágrafo anterior, podemos comparar o valor dado em subsídios para a GD nos últimos anos com o valor destinado a outros propósitos. A tabela 2 apresenta os valores dos subsídios existentes no setor de energia elétrica no Brasil entre os anos 2020 e 2023.

  

Tabela 2: Valor dos Subsídios no setor de energia elétrica no Brasil entre 2020 e 2023

Fonte: ANEEL[4]. Elaboração própria.

*Valores até 17/08/2023.

 

O primeiro ponto a se destacar é o crescimento substancial dos subsídios à GD nos últimos anos, conforme previsão feita em artigo de 2022 do Ensaio Energético. Podemos observar que os subsídios à GD saem de R$ 454 milhões em 2020 para R$ 2,8 bilhões em 2022, ou seja, um aumento de cerca de 521% em 2 anos. Além disso, o ano de 2023, mesmo ainda estando em agosto, já superou o ano de 2022 no total de subsídios à GD, o que mostra a tendência de crescimento.

Outra análise interessante é a comparação dos subsídios destinados à GD com os recursos destinados à Universalização e à Tarifa Social de Energia Elétrica.

O valor destinado à Universalização busca fazer com que residências desconectadas da rede passem a ter acesso à eletricidade. As famílias atendidas por esses recursos geralmente são de baixa renda e se situam em locais distantes dos centros urbanos, com destaque para as comunidades indígenas e quilombolas e para localidades na região amazônica. Dentro da conta Universalização se encontram o Programa Mais Luz para a Amazônia, o Programa Luz para Todos e o Padrão Rural Gratuito. A tabela 2 mostra que desde 2021 os subsídios à GD já superam os valores destinados à Universalização. Em 2022 o valor destinado à GD (R$2.820 milhões) foi 2,33 vezes (ou 133%) maior que o destinado à Universalização (R$1.212 milhões) e a perspectiva é que tal percentual aumente em 2023, uma vez que até agosto deste ano o valor do subsídio dado à GD (R$3.335 milhões) já superou o valor de 2022 e o valor destinado à universalização está abaixo do valor de 2022.

O valor destinado à Tarifa Social de Energia Elétrica tem como objetivo subsidiar a energia elétrica para famílias de baixa renda. A tabela 2 mostra que apesar de até 2022 o valor anual destinado à Tarifa Social ter sido maior do que o destinado à GD, a diferença tem se reduzido entre 2020 e 2022 (mesmo com os recursos para a tarifa social tendo se mantido elevado em função da pandemia da Covid-19). Em 2020, por exemplo, o valor destinado à Tarifa Social (R$4.197 milhões) foi 9,24 vezes (ou 824%) maior que o destinado à GD (R$ 454 milhões), mas em 2022 tal diferença caiu para 1,65 vezes (ou 65,3%). No entanto, em 2023 já se espera que os subsídios destinados à GD superem os recursos destinados à Tarifa Social. Até agosto de 2023, os recursos destinados à GD (R$3.335 milhões) foram 1,2 vezes (ou 19,71%) maior que o destinado à Tarifa Social.

É preciso ainda destacar que o valor destinado à Universalização e à Tarifa social de baixa renda podem reduzir no futuro, o que não ocorrerá com os subsídios à GD. No que se refere à Universalização, quanto mais famílias tiverem acesso à eletricidade, menor será a necessidade de recursos para esta conta. Quanto à Tarifa social de baixa renda, esta pode se reduzir na medida que a renda das famílias mais necessitadas volte a melhorar (seja via crescimento econômico ou por meio de políticas públicas de valorização do salário mínimo ou de distribuição de renda). Já o valor dos subsídios dados à GD vão aumentar conforme esta permaneça crescendo no país. Ademais, mesmo que os subsídios à GD fossem eliminados hoje para os novos empreendimentos, o respeito ao direito adquiro manteria, ao menos até 2045, os valores atuais dos subsídios.

Portanto, podemos concluir que a Lei 14.300/2022 que regulamentou a GD no Brasil gerou uma distorção social, uma vez que está fazendo com que os benefícios dados às famílias e empresas de maior renda superem os recursos destinados às iniciativas que beneficiam a população de baixa renda. Além disso, apesar de constar na lei 14.300/2022 a criação do Programa de Energia Renovável Social (PERS), que se destina a investimentos na instalação de sistemas fotovoltaicos e de outras fontes renováveis aos consumidores da Subclasse Residencial Baixa Renda, pouco foi feito até o momento.

 

Conclusão

O setor de energias renováveis, como os de energia solar, eólica, biomassa e hidrogênio verde, são primordiais para o desenvolvimento sustentável nas dimensões ambiental e econômica. No entanto, é preciso que os policymakers levem também em consideração a dimensão social, geralmente relegada a segundo plano. Neste artigo abordamos a GD no Brasil, que basicamente é formada pela fonte solar FV. Vimos que embora a GD contribua para o desenvolvimento brasileiro nas dimensões econômica e ambiental, a mesma deixa a desejar na dimensão social.

Há outros casos ligados ao setor de energia brasileiro que, como a GD, não levam em consideração a dimensão social. Poderíamos ter tratado, por exemplo, de casos ligados à geração de energia eólica no Brasil. A energia eólica possui claros benefícios econômicos (como aumento do investimento e geração de emprego), ambientais (como energia limpa) e sociais (como melhoria na renda da população). No entanto, há casos como o da cidade de Caetés-PE que mostram como a dimensão social muitas vezes é ignorada. Nesta localidade foram instaladas 220 aerogeradores, alguns a cerca de 150 metros de proximidade das residências, o que tem causado diversos transtornos à saúde das pessoas, como ansiedade, insônia e depressão (Machado e Serrano, 2023). Portanto, um empreendimento que trouxe melhorias econômicas e ambientais para a região, acabou não dando o devido valor para a dimensão social.

Por fim, é importante que a sociedade civil pressione os governos (municipais, estaduais e federal) para que estes regulem, incentivem e fiscalizem as empresas de modo que estas tenham em mente e levem em consideração a dimensão social em seus projetos. Só assim o país de fato alcançará o chamado desenvolvimento sustentável.

 

Referências

BUARQUE, Sergio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.

MATOS, Richer de Andrade; ROVELLA, Syane Brandão Caribé. Do Crescimento Econômico ao Desenvolvimento Sustentável: conceitos em evolução. Revista Científica Eletrônica Opet, v. 3, p. 10-15, 2010.

MACHADO, L.; SERRANO, V. Depressão, insônia, surdez: o drama dos agricultores que vivem embaixo de parque eólico em cidade de lula. BBC News Brasil. 2023. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/articles/cglyg8np3mno >. Acesso em: 15/08/23.

SACHS, Ignacy. Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente. São Paulo: Studio Nobel, 1993.

SEN, Amatya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[1] O IDH, apesar de ser uma medida melhor que o PIB para refletir o desenvolvimento de uma localidade, deixa de fora variáveis importantes que impactam no desenvolvimento, como a democracia, a equidade e a sustentabilidade ambiental.

[2] Disponível em: < https://brasil.un.org/pt-br/sdgs >. Acesso em 17/08/2023.

[3] Endereço do site: < https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY2VmMmUwN2QtYWFiOS00ZDE3LWI3NDMtZDk0NGI4MGU2NTkxIiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9 >. Acesso em: 04/05/2022.

[4] Dados disponível no site da ANEEL: < https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY2Q1YjdlZTEtMzQ2ZS00OTIyLThiODctZDY2NTRhMDFhMmFjIiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9 >. Acesso em: 18/08/2023.

 

Sugestão de citação: Ferreira, W. C.  (2023). O Setor de Energia Elétrica e o Desenvolvimento Sustentável: o caso da Geração Distribuída no Brasil. Ensaio Energético, 28 de agosto, 2023.

Autor do Ensaio Energético. Economista, Mestre e Doutor em Economia pela UFF. Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.

Gostou do artigo? Compartilhe

Deixe um comentário

Se inscrever
Notificar de
guest

1 Comentário
Mais antigas
O mais novo Mais Votados
Comentários em linha
Exibir todos os comentários
Gustavo Soares
Gustavo Soares
8 meses atrás

Ótimo artigo Welinton Conte Ferreira! Eu ainda adicionaria mais dois pontos. Socialmente, a GD ainda peca por exigir mais investimentos em infraestrutura, o que penaliza ainda mais as tarifas. Grande parte dos investimentos em GD é realizado por grandes empresas com um modelo similar ao da geração centralizada , ie, produção longe do consumo. Segundo, imagino que existem muitos questionamentos sobre a sustentabilidade das placas solares.

Receba nosso conteúdo por e-mail!

Artigos recentes

Temas

Mídia Social