Ensaio Energético

Descarbonização de sistemas isolados na Amazônia através de Usinas Híbridas

Introdução

Os sistemas isolados de energia representam uma faceta crucial da infraestrutura energética brasileira, estando desconectados do Sistema Interligado Nacional (SIN). Comumente encontrados em regiões remotas, rurais ou de difícil acesso, esses sistemas, também conhecidos como “fora do grid”, operam onde a instalação de linhas de transmissão para conexão à rede principal seria inviável economicamente ou tecnicamente impraticável (LAZAROV, et al., (2005) e Manwell, (2004))

De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), os sistemas isolados podem ser alimentados por diversas fontes de energia, como hidrelétricas de pequeno porte, termelétricas a diesel ou óleo combustível, sistemas fotovoltaicos (energia solar), sistemas eólicos (energia eólica) e até mesmo sistemas de geração a biomassa. Entretanto, a grande maioria dos sistemas isolados brasileiros são abastecidos com térmicas movidas a diesel, o que resulta em custos elevados e alto nível de emissões.

De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) o Brasil possui mais 212 sistemas elétricos isolados em 7 estados, representando em torno de 3 milhões de consumidores.

 

Figura  1: Sistemas Isolados no Brasil

Fonte: EPE 2022.

Considerando que esses sistemas isolados predominantemente fazem uso de combustíveis fósseis é relevante destacar a importância da Conta de Consumo de Combustível (CCC), um fundo nacional que subsidia a geração de energia nesses sistemas. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a previsão para 2024 é de um montante de R$ 10,7 bilhões destinados aos subsídios para a produção de energia termelétrica em sistemas isolados.

 

Usinas hibridas como um modelo para a descarbonização

Diversas combinações tecnológicas viáveis promovem a hibridização de sistemas de geração, integrando usinas eólicas com fotovoltaicas e baterias, usinas hidráulicas com fotovoltaicas, térmicas a biomassa com usinas a gás e fotovoltaicas, entre outras. Essas escolhas dependem das oportunidades para redução de custos e da complementaridade das fontes de energia, visando adaptar a oferta de energia à demanda.

Essa estratégia pode ser adaptada conforme a curva de demanda de uma região, considerando recursos naturais e necessidades locais, melhorando eficiência operacional, confiabilidade do fornecimento de eletricidade e reduzindo a dependência de uma única fonte de energia.

No Brasil, a Aneel regulamentou as usinas híbridas e associadas em 2021 através da Resolução Normativa No.954. Essa regulamentação se aplica a centrais com potência superior a 5 MW, também engloba centrais associadas. A Central Geradora Híbrida é definida como “instalação de produção de energia elétrica a partir da combinação de diferentes tecnologias de geração, com medições distintas por tecnologia de geração ou não, objeto de outorga única”. Já as Centrais Geradoras Associadas são definidas como duas ou mais instalações, com a finalidade de produção de energia elétrica com diferentes Tecnologias de Geração, com outorgas e medições distintas, que compartilham fisicamente e contratualmente a infraestrutura de conexão e uso do sistema de transmissão.

A utilização das usinas híbridas é essencial para descarbonizar sistemas elétricos isolados, substituindo a geração termelétrica por fontes renováveis. O programa Energias da Amazônia, estabelecido pelo Decreto nº 11.648/2023 do Ministério de Minas e Energia (MME), é uma iniciativa crucial nesse sentido, visando reduzir as emissões de gases de efeito estufa ao diminuir o uso de óleo diesel na produção de energia na região. Além disso, busca garantir a qualidade e segurança do suprimento de energia para mais de 3,1 milhões de pessoas em Sistemas Isolados. Esta medida é parte de uma série de ações na transição energética, promovendo o desenvolvimento regional e a melhoria da qualidade de vida, enquanto contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa.

 

Projetos em ação no Brasil

Alguns programas já estão em implementação na Amazônia para fornecer energia aos sistemas isolados, incluindo o Programa Energias da Amazônia, criado em 2023 com o objetivo de integrar esses sistemas ao Sistema Interligado Nacional.

Atualmente, o programa é gerido pelo Ministério de Minas e Energia (MME), que deverá estabelecer metas com base em estudos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Já foram definidas metas para interligar 37 localidades mapeadas pela EPE no Norte do país, com previsão de integração até 2027 ao SIN, o que representa aproximadamente 17,5% da demanda dos sistemas isolados, conforme indicado no último relatório de planejamento para os Sistemas Isolados.

Entretanto, a maioria dos sistemas isolados não poderão ser interligados ao SIN, em função dos custos e impactos ambientais desproporcionalmente elevados em relação ao tamanho da carga destes sistemas. Nestes casos, o caminho passa pela descarbonização da geração local. Já existem exemplos interessantes desta estratégia em implementação. Um destes exemplos é a instalação de um sistema híbrido na comunidade da Vila Restauração, situada a 70 quilômetros do centro de Marechal Thaumaturgo, no Acre, está sendo implementado um projeto inovador em parceria entre a Energisa e a Alsol. Este projeto instalou 600 painéis fotovoltaicos e baterias para fornecer energia elétrica contínua aos cerca de 750 habitantes da região.

Anteriormente, a comunidade dependia de um sistema a diesel para obter eletricidade, que era limitado a aproximadamente três horas por dia. A transição para uma fonte de energia mais sustentável e confiável representa uma mudança significativa para os moradores locais. Além disso, a disponibilidade de energia constante facilita atividades diárias, como o armazenamento de alimentos, que anteriormente eram desafiadoras devido à falta de refrigeração. Este projeto não só atende às necessidades básicas da comunidade, mas também abre caminho para oportunidades de desenvolvimento socioeconômico (ENERGISA, 2024).

 

Figura 2: Instalação de placas solares na Vila da Restauração

Fonte: Energisa 2021.

Outro exemplo relevante é o caso da empresa Oncorp que iniciou a operação das duas primeiras usinas híbridas diesel-solar para sistemas isolados do Brasil. Elas estão instaladas nas cidades de Amajari e Pacaraima, em Roraima. A empresa está estudando utilizar este tipo de estratégia de descarbonização para outras sistemas isolados na Região Amazônica. Os dois projetos somam 10 MW, e irão atender 30 mil moradores da região. O investimento previsto nos projetos é de R$ 50 milhões (EPBRc, 2023).

Uma especificidade deste projeto é que as unidades geradoras de energia foram arrematadas pela empresa no leilão dos sistemas isolados realizado pelo governo federal em 2021 e previam a geração exclusivamente com diesel. Entretanto, a empresa buscou modificar o projeto para incluir a geração solar fotovoltaica e o uso de baterias para armazenamento da energia. Este projeto é uma demonstração que já existem um nicho de mercado estabelecido no Brasil para as usinas híbridas para voltadas para os sistemas isolados no Brasil.

A mudança, estima a empresa, vai gerar uma economia de 17,5 milhões de litros de diesel, que deixarão de ser consumidos por conta da geração de energia solar. Os números representam que 47 mil toneladas de CO² deixarão de ser emitidos na operação das usinas.

 

Desafios tecnológicos e econômicos

A difusão da tecnologia das usinas híbridas para sistemas isolados apresenta importantes desafios tecnológicos e econômicos. Trocar sistemas de geração a diesel por sistemas híbridos apresenta importantes requerimentos tecnológicos que nem sempre estão disponíveis nas regiões onde estão localizadas estas usinas. As usinas híbridas não são tecnologias com configurações padronizadas. Para cada sistema isolado será necessário a realização de estudos para verificar quais são as alternativas de geração renovável que podem ser aplicadas. Além da geração solar e baterias é preciso investigar se existe capacidade de suprimento de biocombustíveis sólidos ou líquidos ou gasosos que poderiam substituir a geração a diesel de forma complementar. Ademais, a geração eólica pode ser também uma alternativa. Portanto, são necessários estudos preliminares detalhados para identificar as diferentes alternativas de usinas híbridas e avaliar a mais recomendada para o sistema isolado.

Vale ressaltar ainda, que é fundamental avaliar a característica do sistema isolado em termos de tamanho e característica da curva de carga. Os sistemas isolados devem ter flexibilidade para atender uma demanda que varia ao longo do dia. Por esta razão, a descarbonização dos sistemas isolados no Brasil vai requerer um enorme esforço de pesquisa para caracterizar, identificar as melhores opções de hibridização e avaliar técnica e economicamente os projetos.

A intensidade tecnológica dos sistemas de geração híbridas é também muito maior que os sistemas térmicos. Isto porque além de envolver a utilização de diferentes fontes de geração com características tecnológicas diferentes, estes sistemas exigem o desenvolvimento de sistemas supervisórios complexos, adaptadas às diferentes estratégias de hibridização.

A operação e manutenção destes sistemas híbridos vai exigir o treinamento e capacitação de mão-de-obra. Existe oportunidade para criação de empregos locais qualificados que podem contribuir para um melhor desempenho dos sistemas e para garantia do suprimento de energia.

Esta infraestrutura tecnológica é um exemplo interessante da grande oportunidade que o Brasil tem pela frente. O país pode economizar bilhões de reais atualmente investidos em subsídios para sistemas isolados, além de reduzir significativamente as emissões. Mas para isto, será preciso uma visão clara das autoridades energéticas e das empresas do setor sobre a importância da pesquisa e inovação para o aproveitamento desta oportunidade.

O Instituto de Energia da PUC-Rio está empenhado em contribuir para a pesquisa sobre as usinas híbridas e desenvolvendo um projeto de P&D com apoio da Petrogal Brasil, que inclui a construção de uma Planta Piloto de Usina Híbrida. A planta piloto está sendo construída nas instalações da PUC-Rio em Xerém, localizada no parque tecnológico do Inmetro. O objetivo principal da Planta Piloto é permitir a realização de experimentos para validar modelos em softwares especializados, levando em consideração diferentes tipos de cargas e de formas de operação da usina.

A Usina Piloto conta com uma planta de Energia Solar Fotovoltaica (ESFV) de 328 kWp, banco de baterias, sistemas de geração térmica a gás e a diesel e geração de hidrogênio.

 

Figura 3: Planta Piloto Hibrida da PUC-Rio


Fonte: IEPUC 2024.

Através do projeto de pesquisa e desenvolvimento, torna-se possível realizar uma investigação das tecnologias já existentes em todo o mundo. Essa abordagem permite simular as curvas de demanda dentro da planta piloto em desenvolvimento, viabilizando a reprodução das curvas de demanda encontradas em sistemas isolados. Esse processo possibilita o estudo minucioso das tecnologias renováveis disponíveis e sua combinação para a criação de um sistema otimizado, que seja mais econômico, eficiente e robusto.

Dessa forma, a planta piloto de geração de energia híbrida revela-se como um laboratório multifuncional, capaz de conduzir experimentos de demanda utilizando todo o equipamento disponível. Esta abordagem oferece uma oportunidade ímpar para explorar diferentes cenários e avaliar o desempenho de tecnologias emergentes em condições controladas.

 

Referências

ANEEL (2020a). Resolução Normativa nº 875, de 2020. Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20231079.html. Acesso em: 20 de fev. de 2024.

ANEEL (2020b). Resolução Normativa nº 876, de 2020. Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20231079.html. Acesso em: 20 de fev. de 2024.

BRASIL. Ministério de Minas e Energia (MME). Decreto nº 11.648, 17 de ago. de 2023. Estabelece o programa Energias da Amazônia. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11648.htm. Acesso 28 de fev. 2024.

ENERGISA (2024a). Projeto da Energisa na Vila Restauração é destaque na Folha. Disponível em: https://www.grupoenergisa.com.br/noticias/vila-restauracao/projeto-da-energisa-na-vila-restauracao-e-destaque-na-folha. Acesso em: 2 maio. 2024.

EPBR (2023b). Sistemas Isolados no Brasil: como 0,6% é igual a R$ 12 bilhões? Disponível em: https://epbr.com.br/sistemas-isolados-no-brasil-como-06-e-igual-a-r-12-bilhoes/. Acesso: 29 de abril de 2024.

EPBR (2023c). Oncorp inicia operação de usinas híbridas no sistema isolado. Disponível em: https://epbr.com.br/oncorp-inicia-operacao-de-usinas-hibridas-no-sistema-isolado/

EPBR (2023d). Governo cria programa de R$ 5 bi para ligar Amazônia ao resto do país. Disponível em: https://epbr.com.br/governo-federal-cria-programa-de-descarbonizacao-energias-da-amazonia-veja-detalhes/. Acesso em: 2 maio. 2024.

GOV (2023). Energias da Amazônia promove transição energética e descarbonização em sistemas isolados. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202312/lancado-em-2023-201cenergias-da-amazonia201d-promove-transicao-energetica-e-descarbonizacao-em-sistemas-isolados. Acesso em: 1 maio. 2024.

ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico. Disponível em: https://www.ons.org.br/paginas/sobre-o-sin/sistemas-isolados. Acesso: 29 de abril de 2024.

LAZAROV, V., NOTTON, G, ZARKOV, Z., BOCHEV, I., (2005). Hybrid Power Systems with Renewable Energy Sources – Types, Structures, Trends for Research and Development, In: Proc of International Conference ELMA, pp.515-520.

MANWELL, J.F. (2004). Hybrid Energy Systems. Encyclopedia of Energy, 2004, 215-229.

 

Sugestão de citação: Almeida, E. & Pereira, V. (2024). Descarbonização de sistemas isolados na Amazônia através de Usinas Híbridas. Ensaio Energético, 06 de maio, 2024.

É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França. Conselheiro Editorial do Ensaio Energético.

Vinícius Pereira

Pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC), e mestrando em Engenharia Mecânica com ênfase em energia na PUC-Rio. Formação acadêmica inclui graduação em Física pelo Cefet-RJ. Desenvolve pesquisa sobre o tema das Usinas Híbridas no Brasil.

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