Ensaio Energético

O Mercado de Gás Natural às Cegas: a dificuldade de acesso a informações sobre o setor de gás natural no Brasil

Introdução

Ao longo de quase duas décadas, o mercado de gás natural brasileiro tem passado por um processo de abertura. O objetivo é aumentar a concorrência e, consequentemente, reduzir o preço do gás natural para o consumidor final. A trilha da abertura no mercado de gás natural é longa e possui diversos marcos. Ao longo do caminho, diversos programas e leis foram estabelecidos e ditaram novos rumos para a trajetória da abertura do gás. Como principais marcos destacam-se a Lei do Gás (Lei nº 11.909/2009), Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134/2021), os programas Gás para Crescer, Novo Mercado de Gás e Gás para Empregar, além do Termo de Compromisso de Cessação (TCC) entre a Petrobras e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

O que chama atenção é que o tema sobre transparência e disponibilização de informações sobre o setor de gás natural sempre foi um dos pilares para o processo de abertura, especialmente nos dias de hoje. Por exemplo, a Nova Lei do Gás explicita no seu artigo 2 que: “O proprietário ou operador de instalações de escoamento, processamento, transporte, estocagem e terminais de Gás Natural Liquefeito (GNL) deverá disponibilizar, em meio eletrônico acessível aos interessados, informações sobre as características de suas instalações, os serviços prestados, as capacidades disponíveis, os dados históricos referentes aos contratos celebrados, às partes, aos prazos e às quantidades envolvidas, na forma de regulação da ANP.” Embora alguns avanços tenham sido feitos, a divulgação de informações confiáveis e amplamente difundidas ao público em geral ainda não é uma realidade em todas as etapas da cadeia do gás natural no Brasil.

Atualmente, o nível de assimetria de informação é elevado em quase todos os elos da cadeia de gás natural no Brasil. A indústria do gás natural é caracterizada por ter diversas etapas de monopólio natural, tais como escoamento, processamento, transporte e distribuição. Além disso, no Brasil, ainda existe o monopólio da Petrobras nas etapas de comercialização e de exploração e produção do gás natural. No geral, as empresas incumbentes não são obrigadas a divulgar informações ou, quando são obrigadas por regulamentação, dificultam (com intenção ou não) o acesso as informações porque não existe uma padronização para sua divulgação.

Nessas últimas décadas de processo de abertura do mercado de gás natural, a trajetória entre um marco e outro tem sido dificultada pela falta de informações e dados sobre o setor que facilitem e incentivem análises independentes sobre o caminho que esse processo vem tomado. Como identificar se o mercado de gás natural brasileiro está indo na direção desejada de maior concorrência se falta informações públicas amplamente divulgadas e de fácil acesso ao público em geral? Como identificar possíveis erros e redirecionar o processo de abertura na direção desejada?

Além de permitir acompanhar o processo de abertura do mercado de gás natural, a disponibilização de dados confiáveis, atualizados e de fácil acesso é importante pelos seguintes pontos. Primeiro, um processo de abertura de uma indústria de rede, com presença de monopólios naturais, a disponibilização de dados de capacidade, de acesso, de precificação, entre outros, são necessários para reduzir a assimetria de informações e possibilitar negociações mais justas entre os agentes. Segundo, a realização de novos investimentos e atração de novos players exige conhecimento sobre as condições de mercado, tais como nível de concorrência, tarifas e preços, conjuntura de oferta e demanda, entre outros. Infelizmente, encontrar essas informações no mercado brasileiro de gás natural é um trabalho custoso e, muitas vezes, com grau de incerteza elevado. Em outras palavras, a assimetria de informação cria barreiras à entrada no mercado de gás natural.

 

As principais dificuldades na obtenção de informação sobre o mercado de gás natural no Brasil

Identificou-se 4 principais dificuldades na obtenção de informação sobre o mercado de gás natural no Brasil, a saber: Falta de divulgação, Defasagem da divulgação, Falta de padronização na divulgação e Falta de confiabilidade. Cabe destacar que este artigo não visa esgotar o tema, mas sim apresentar os principais desafios identificados para obtenção de dados na indústria do gás natural atualmente, ilustrando-os através dos exemplos mais marcantes.

 

Falta de divulgação

A falta de divulgação, ou seja, a falta de transparência, é o desafio mais importante a ser superado. Sem a divulgação de dados não é possível realizar estudos sobre o mercado de gás natural. Chama atenção a quase total escassez de informações sobre as etapas de escoamento e processamento. No cenário atual, de obrigação de acesso não discriminatório às infraestruturas essenciais (artigo 48 da Nova Lei do Gás), é primordial a divulgação de informações, tais como tarifas, capacidade disponível, capacidade contratada, etc. Isso possibilita identificar se as condições de acesso estão ocorrendo de maneira não discriminatória. Ressalta-se que essas questões foram destacadas pela ANP na sua Nota Técnica Conjunta ANP nº 25/2022 apresentada na Consulta Prévia nº 1/2023 para o processo de regulamentação do acesso negociado e não discriminatório de terceiros às infraestruturas essenciais.

Em menor medida, também existe escassez de informações sobra a etapa de distribuição e, consequentemente, sobre a demanda do gás natural. As distribuidoras de gás canalizado não fazem ampla divulgação de informações sobre sua movimentação de gás natural, como por exemplo, tipos de consumo e clientes. Cabe destacar que algumas dessas informações podem ser encontradas nos relatórios anuais de cada uma das distribuidoras, mas a defasagem e a agregação (periodicidade anual) das informações são grandes. Além disso, esses dados não são de fácil acesso, uma vez que estão descritas no corpo do texto de documentos em formato PDF.

Cabe destacar que a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás) divulgava essas informações, no entanto, a partir de final de 2020 esses dados deixaram de ser amplamente divulgadas e não se encontram mais disponível ao público em geral. O Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural (Boletim de gás) publicado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) tenta suprir essa necessidade, mas sua publicação sobre o tema se encontra defasada e com significava agregação (apenas consumo térmico e não térmico). Além disso, ainda sobre setor de distribuição, existe uma total escassez de informações sobre o mercado livre de gás.

 

Defasagem da divulgação

O mercado de gás natural do Brasil está em rápida transformação (veja por exemplo a Agenda Regulatória da ANP), o que exige informações atualizadas para a verificação do processo de abertura. Embora o Boletim de gás seja extremamente importante para redução da assimetria de informação no mercado de gás natural do Brasil, ele é o principal exemplo sobre o desafio da defasagem na divulgação. Na data de publicação desse artigo, ou seja, 29 de abril de 2024, o último Boletim de gás disponível é referente ao mês de outubro de 2023. Ou seja, uma defasagem de 6 meses. Ressalta-se que a defasagem na divulgação também é verificada em outras fontes. Para dar apenas mais um exemplo, os últimos dados disponíveis sobre movimentação por instalação (i.e., Produção por Plataforma) disponibilizados pela ANP são de dezembro de 2022, isto é, possuem mais de 1 ano de defasagem.

 

Falta de padronização na divulgação

A falta de padronização na divulgação é um problema porque ela aumenta a quantidade de esforço para se obter uma informação que deveria ser de fácil acesso. Em outras palavras, a falta de padronização dificulta o acesso às informações. Aqui o exemplo mais marcante está no setor de transporte. As transportadoras são obrigadas a publicar dados sobre sua operação. Todavia, obter esses dados pode ser uma tarefa extremamente difícil.

Primeiro, pode existir a necessidade de “garimpar” os dados, escondidos em sublinks dentro do site eletrônico das empresas. Após superar o primeiro desafio, um segundo surge: os dados históricos estão em diferentes arquivos. Além disso, esses diferentes arquivos ainda podem ser disponibilizados em formato PDF, como é o caso da TBG que disponibiliza mensalmente dois arquivos sobre volumes realizados e programados (pontos de entrega e pontos de recebimento) em formato PDF. O histórico atual sobre volumes programados e realizados disponibilizado no site eletrônico da TBG iniciasse em janeiro de 2011 e termina em março de 2024, totalizando um total de 318 arquivos em formato PDF. Esse número só irá aumentar com o passar dos anos. Um terceiro desafio é que todos esses dados das transportadoras são apresentados em estrutura de tabela e não em estrutura de base em dados em linha, estrutura fundamental para a análise de dados. Embora a tabela seja um bom formato expositivo, ele não é prático para a análise de dados.

Isso não se enquadra somente aos dados da etapa de transporte, mas à quase todos os dados disponíveis sobre o mercado de gás natural no Brasil, com pouquíssimas exceções existentes na divulgação de informações sobre etapa de exploração de produção realizadas pela ANP. Por exemplo, o Boletim gás é disponibilizado em formato PDF e é estruturado em formato de tabela, disponibilizando um arquivo por mês. Cabe desatacar que o Boletim de gás tem avançado nesse tema e, atualmente, está disponibilizando dados históricos em formato Excel. No entanto, esses dados, além de estarem em estrutura de tabela, não abrangem todas as informações disponibilizados no Boletim de gás.

Cabe menção a atual tendencia de divulgação de informações através de painéis dinâmicos (e.g., Power BI). Muitas das vezes esses painéis não permitem o download dos dados apresentados. Veja por exemplo o painel dinâmico da ANP sobre Campos em Desenvolvimento e Produção. Os painéis dinâmicos são uma ótima forma de divulgação de informações, ao permitir ao usuário realizar uma exploração inicial dos dados. Mas a possibilidade de download desses dados expostos no painel dinâmico é imprescindível para análises mais detalhas e complexas, que são necessárias para avalição da abertura do mercado de gás natural do Brasil.

 

Falta de confiabilidade

Embora a falta de confiabilidade represente um menor desafio na divulgação de informações do setor de gás natural, esse desafio também se faz presente e, em algumas situações especificas, impossibilita a utilização dos dados divulgados. Ou seja, além das informações poderem não ser divulgadas, estarem defasadas e serem de difícil acesso, elas ainda podem conter erros.

O exemplo que mais se destaca nesse caso é o dado de Movimentação de Gás Natural em Gasodutos de Transporte divulgados pela ANP. Esses dados apresentam inconsistências sucessivas, como por exemplo, erros de digitação (e.g., digitação de espaçamento entre os números e o sinal de negativo – “- 1”), falta de padronização de categorias (e.g., nomeação de carregador em certas situações como “Galp Energia Brasil S.A – GALP” e em outras como “GALP ENERGIA BRASIL S.A.”) e falta de preenchimento de dados (e.g., em algumas situações informar que o ponto de entrega de Aracruz se localiza no município de Aracruz e em outras deixar de informar). Cabe destacar que tudo isso não inviabiliza a utilização dos dados, mas impõe a necessidade de esforços contínuos de checagem de dados e, quando não há formas de verificação, exige fé por parte dos pesquisadores.

A falta de confiabilidade nos dados do setor de gás natural também surge da incompatibilidade entre as diferentes fontes de dados. Para dar apenas um exemplo, a comparação entre os dados da ANP sobre Movimentação de Gás Natural em Gasodutos de Transporte e os dados da TBG de volumes programados e realizados ilustram essa inconsistência. O Gráfico 1 compara essas fontes de dados para os volumes realizados no ponto de recebimento de Mutun (Corumbá), referente a importação de gás boliviano, localizado na malha TBG. É possível notar que esses dados apresentam diferenças significativas. Como identificar quais dados estão corretos e quais estão incorretos?

 

Gráfico 1 – Volumes realizados de gás natural no ponto de recebimento de Mutun (Corumbá) segundo fonte de dados selecionadas

Fonte: Elaboração própria dos autores com dados da ANP e da TBG.

Conclusão

Essa breve apresentação das dificuldades na obtenção de informação buscou demostrar que existe um custo significativo na obtenção de dados sobre o mercado de gás natural no Brasil. Esse custo gera grandes assimetrias de informações, o que não somente impõe barreiras a entrada de novos players, mas também dificulta análises independentes sobre o processo de abertura do mercado de gás natural. A ampla divulgação de informações confiáveis, atualizadas e de fácil acesso é essencial para dar subsídios a um debate rigoroso e fundamentado sobre os rumos do mercado de gás brasileiro.

Portanto, é fundamental que os órgãos competentes analisem essa situação minuciosamente. Em especial, a ANP, além de buscar melhorar a sua divulgação de dados como já vem fazendo, deve buscar regulamentar o artigo 2 da Nova Lei do Gás, como por exemplo, através da implementação da resolução acerca do acesso de terceiros às infraestruturas essenciais. A ANP também deve buscar melhorar a divulgação dos dados que já se encontram disponíveis atualmente através das modificações de regulamentações existentes, visando a facilidade do acesso ao público em geral. Especificamente, a ANP poderia estipular uma melhor padronização na divulgação dos dados de transporte, através de possíveis modificações na Portaria ANP nº 1, de 06/01/2003. Além disso, as agências reguladoras estaduais devem buscar fornecer transparência ao setor de distribuição exigindo a divulgação de informações sobre a movimentação de gás natural nos gasodutos de distribuição e, em especial, sobre o mercado livre.

 

Sugestão de citação: Rocha, F. F. & Soares, G. (2024). O Mercado de Gás Natural às Cegas: a dificuldade de acesso a informações sobre o setor de gás natural no Brasil. Ensaio Energético, 29 de abril, 2024.

Felipe Freitas da Rocha

Formado em Economia, mestre e doutor em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio e consultor na Prysma E&T Consultores.

Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutorando em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da UFRJ. É consultor na Prysma E&T Consultores atuando no mercado de gás natural e de biocombustíveis no Brasil.

Gostou do artigo? Compartilhe

Deixe um comentário

Se inscrever
Notificar de
guest

0 Comentários
Comentários em linha
Exibir todos os comentários

Receba nosso conteúdo por e-mail!

Artigos recentes

Temas

Mídia Social