Ensaio Energético

O novo marco legal da Geração Distribuída (Lei nº 14.300/2022) e suas principais mudanças

No artigo “Geração Distribuída e o Projeto de Lei 5.829/2021 que agradou mais os “gregos do que os troianos” lançado no Ensaio Energético em novembro de 2021 tratamos do Projeto de Lei 5.829/2021 que visava modificar a regulação da Geração Distribuída (GD) no Brasil. Tal artigo mostrou que:

(i) a Resolução Normativa (RN) nº 482/2012 foi importante para estimular a GD no Brasil, principalmente por conta do sistema de compensação de energia que valorava igualmente a eletricidade produzida pelos sistemas de GD com a fornecida pela distribuidora;

(ii) a eletricidade produzida pelos sistemas de GD era remunerada por todos os componentes tarifários (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição – TUD; e Tarifa de Energia – TE), o que de fato funciona como um subsídio à GD dado que, por exemplo, as Unidades Consumidoras (UC) com GD continuam utilizando as redes de distribuição e transmissão, mas não pagam por tal serviço;

(iii) tal subsídio, aliado ao encarecimento da eletricidade no Brasil e à queda do preço dos sistemas de GD, estimula a adoção da GD e, consequentemente, gera a questão da chamada “espiral da morte”;

(iv) visando reduzir os subsídios e minimizar os problemas da “espiral da morte”, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) realizou estudos e sugeriu mudanças na valoração da eletricidade proveniente dos sistemas de GD. A ANEEL, via o relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) nº 003/2019, sugeriu que as seguintes componentes deveriam deixar de remunerar a energia produzida pelos sistemas de GD: Fio A, Fio B, Encargos (TUSD e TE) e Perdas (TUSD) (ANEEL, 2019). Para ficar mais claro, segue abaixo a figura 1 que apresenta a composição da tarifa de eletricidade.

 

Figura 1 – Composição da tarifa

Fonte: Rigo et al (2021).

(v) o debate levantado pela ANEEL sobre a precificação da eletricidade proveniente dos sistemas de GD culminou com a elaboração do Projeto de Lei nº 5.829/2021, projeto este que foi analisado no referido artigo do Ensaio Energético.

O fato é que em 06 de janeiro de 2022 foi sancionada a lei nº 14.300, conhecida como “Novo Marco Legal da GD”. Veremos agora alguns dos principais pontos e possíveis consequências trazidas por essa nova regulação.

A lei nº 14.300/2022 estabeleceu, em seu artigo nº 26, que todos as UC com sistemas de GD que conseguirem acesso até janeiro de 2023 permanecerão com a valoração dos créditos de energia inalterada até 31 de dezembro de 2045, ou seja, permanecerão recebendo a mesma quantidade de subsídios dada pela RN nº 482/2012 (BRASIL, 2022). A manutenção do subsídio para as UC que já possuem sistemas de GD é positivo no sentido de manter o direito adquirido, no entanto, a lei estimula uma “corrida” pela adoção de sistemas de GD nesse ano ao estender tal subsídio para as UC que instalarem tais sistemas até janeiro de 2023. Tal corrida já se iniciou dado que o ano de 2022 foi o que apresentou a maior potência instalada de GD no período entre janeiro e abril. Para se ter uma ideia, o Brasil possui atualmente uma potência de GD instalada de 10,5 GW, dos quais 12% foram instalados entre janeiro e abril de 2022. A tabela 1 apresenta a evolução da potência instalada de GD por ano a partir de 2014 no Brasil.

 

Tabela 1 – Evolução da potência instalada de GD por ano entre 2014 e abril de 2022

Fonte: ANEEL[1]. Elaboração Própria.

Em seu artigo nº 27, a lei 14.300/2022 passa a tratar dos subsídios cruzados. Tal artigo afirma que após 12 meses de vigência da lei, os novos sistemas de GD passarão a pagar até 2029, de forma escalonada, os seguintes componentes tarifários:

(a) Os novos sistemas de GD do tipo Geração junto à Carga, Geração Compartilhada, empreendimentos de múltiplas unidades consumidoras (EMUC) ou Autoconsumo remoto com até 500 KW passarão a pagar um percentual do componente Fio B, começando com 15% em 2023 e aumentando 15% ao ano até chegar a 90% em 2028; e

(b) Os novos sistemas de minigeração distribuída acima de 500 KW do tipo Autoconsumo remoto ou Geração compartilhada em que um único CPF ou CNPJ receba mais do que 25% do excedente de eletricidade, passarão a pagar por 100% do componente Fio B, 40% do Fio A e 100% dos encargos Tarifa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE) e Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética (P&D_EE).

Portanto, a lei nº 14.300/2022 reduz os subsídios para os projetos de GD que conseguirem acesso após janeiro de 2023, no entanto, tal redução será menos acentuada do que a defendida pela ANEEL na AIR nº 003/2019. Ademais, destaca-se que mais subsídios podem ser cortados visto que o artigo nº 17 desta lei determina que a ANEEL apresente, em até 18 meses após a publicação da mesma, uma nova forma que irá valorar a eletricidade proveniente da GD a partir de 2029.

A lei nº 14.300/2022 também diz, em seu artigo nº 25, que serão usados temporariamente recursos da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para bancar parte dos subsídios, o que demonstra outra forma de subsídio cruzado.

É preciso destacar também que a lei nº 14.300/2022 possui regras que tornam GD mais rentável, como o fato de deduzir da base de cobrança da bandeira tarifária a energia gerada pelo sistema de GD. Ocorre que ao adotar novas regras que aumentam a rentabilidade dos projetos de GD, aliado ao fato de preservar a maior parte dos subsídios à tarifa, esta lei mantém o alto incentivo à adoção de GD e, consequentemente, mantém existente a questão da “espiral da morte”.

Um ponto importante da lei nº 14.300/2022 é que esta passou a levar em consideração os riscos que o crescimento da GD pode causar às distribuidoras ao reduzir sua demanda. O artigo nº 21 afirma que as distribuidoras passarão a poder considerar a energia inserida no sistema pela GD como sobrecontratação involuntária para fins de revisão tarifária extraordinária, o que reduz o impacto negativo da GD sobre elas.

Por fim, sabemos que a população de baixa renda fica praticamente impossibilitada de adquirir os sistemas de GD e obter seus benefícios por conta do relativo alto investimento necessário para a aquisição de tais sistemas. A lei nº 14.300/2022 mostra estar ciente de tal problema e busca minimizá-lo com a criação do Programa de Energia Renovável Social (PERS), que se destina a investimentos na instalação de sistemas fotovoltaicos e de outras fontes renováveis aos consumidores da Subclasse Residencial Baixa Renda. Os recursos financeiros para este programa virão dos recursos reservados para promover Eficiência Energética, de fontes de recursos complementares ou ainda de parcela de Outras Receitas das atividades exercidas pelas distribuidoras convertida para a modicidade tarifária nos processos de revisão tarifária (BRASIL, 2022). Sobre este assunto, um recente artigo do Ensaio Energético (Transição Energética justa: Instalação de sistemas de geração de eletricidade solar para atender domicílios de baixa renda) mostrou que apesar do PERS ser importante, para atingir uma parcela significativa da população de baixa renda seria necessária uma ação mais estruturada.

Podemos concluir que a lei nº 14.300/2022, que traz transparência e segurança jurídica para a GD no Brasil, apenas reduziu os subsídios à GD e, consequentemente, manteve o problema dos subsídios cruzados e da “espiral da morte”, questões estas que terão que ser tratadas num futuro próximo. A GD permanece rentável no Brasil e a tendência é que continue atrativa nos próximos anos, seja por conta da queda dos preços dos equipamentos (como das placas FV e inversores) ou por conta da tendência de elevação da tarifa de eletricidade no Brasil. Por fim, é preciso salientar que tal lei mostrou estar ciente tanto da dificuldade da população de baixa renda ter acesso aos sistemas de GD quanto do risco que o crescimento da GD traz às distribuidoras, o que é um avanço.

 

Referências

AGÊNCIA NACIONAL DE ENRGIA ELÉTRICA (ANEEL). Relatório de Análise de Impacto Regulatório nº 003/2019-SRD/SGT/SRM/SRG/SCG/SMA/ANEEL. 2019.

BRASIL. Lei nº 14.300, de 6 de janeiro de 2022. 2022. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14300.htm >. Acesso em: 19 abril. 2022.

RIGO, P.D.; REDISKE, G.; SANTOS, J. R. G.; FREITAS, C.V.; LORENZONI, L.P.. (2021). Relatório Trimestral SOLARMAP: A fatura de energia elétrica brasileira e os incentivos à Geração Distribuída. Vol. 2, nº2, 2021.

[1] Endereço do site: < https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiY2VmMmUwN2QtYWFiOS00ZDE3LWI3NDMtZDk0NGI4MGU2NTkxIiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9 >. Acesso em: 04/05/2022.

 

Sugestão de citação: Ferreira, W. (2022). O novo marco legal da Geração Distribuída (Lei nº 14.300/2022) e suas principais mudanças. Ensaio Energético, 09 de maio, 2022.

Autor do Ensaio Energético. Economista, Mestre e Doutor em Economia pela UFF. Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.

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