Ensaio Energético

Geração Distribuída e o Projeto de Lei 5.829/2021 que agradou mais os “gregos do que os troianos”

Introdução

A geração distribuída (GD) é uma expressão utilizada para descrever a geração de eletricidade realizada no local ou próxima ao local de consumo. A GD é uma estratégia de geração descentralizada, que emprega geradores de pequeno porte e se contrapõe ao modelo tradicional de geração centralizada (onde se observa, por exemplo, grandes empreendimentos de geração de eletricidade).

A ANEEL, de acordo com o potencial de geração do empreendimento, classifica a geração distribuída em dois grupos: Microgeração distribuída e Minigeração distribuída. Segundo a ANEEL (2012):

“Art. 2º Para efeitos desta Resolução, ficam adotadas as seguintes definições:

(i) Microgeração distribuída: central geradora de energia elétrica, com potência instalada menor ou igual a 75 kW e que utilize cogeração qualificada, conforme regulamentação da ANEEL, ou fontes renováveis de energia elétrica, conectada na rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras;

(ii) Minigeração distribuída: central geradora de energia elétrica, com potência instalada superior a 75 kW e menor ou igual a 5 MW e que utilize cogeração qualificada, conforme regulamentação da ANEEL, ou fontes renováveis de energia elétrica, conectada na rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras. ” (ANEEL, 2012, p.1)

Portanto, a GD abrange os sistemas de geração provenientes de fontes renováveis ou cogeração qualificada com potência de até 5 MW, localizados junto ou próximo ao consumidor e que estão conectadas à rede de distribuição.

O Brasil possui atualmente uma potência de GD instalada de 7.665,34 MW, dos quais 91% foram instalados a partir de 2019, 97,5% (7.474,90 MW) são provenientes da fonte Solar Fotovoltaica (FV) e cerca de 41% advém da classe residencial. A tabela 1 apresenta a evolução da potência instalada de GD por ano a partir de 2010 no Brasil.

 

Tabela 1: Evolução da potência instalada de GD por ano entre 2010 e novembro de 2021

Fonte: ANEEL[1]. Elaboração Própria.

 

A tabela 1 deixa claro que a instalação de sistemas de GD ganhou impulso a partir de 2012, ano da publicação da RN nº 482 da ANEEL. A partir de 2019 verificamos novo impulso à GD [2], estando tal fato relacionado principalmente com:

  • A diminuição dos custos dos sistemas de GD: Segundo Márcio Takata, CEO da Greener, enquanto um sistema de 4 kWp (quilowatt pico) custava ao consumidor em 2016 cerca R$35 mil, o mesmo em 2021 custava em torno de R$ 19 mil, o que representa uma queda de 44% em 5 anos (TADEU, 2021);
  • O encarecimento da energia elétrica no Brasil: Segundo relatório da Evolução das Tarifas Residenciais presente no site da ANEEL [3], de 2017 a 2021 houve um aumento de 29,8% na tarifa média residencial de eletricidade (saiu de 477,5 R$/MWh para 619,6 R$/MWh). É importante frisar que tal aumento não leva em consideração outros elementos que fazem parte da conta de luz, como as bandeiras tarifárias (essas que tiveram seus valores reajustados em 2021);
  • A perspectiva de mudança na regulação da GD em 2021: o Projeto de Lei (PL) nº 5.829/2021 reduz os subsídios à GD e o mesmo já foi aprovado na Câmara dos Deputados e a expectativa é que seja posto em votação ainda em 2021 no Senado Federal.

Dado que a regulação da GD é fator importante para a evolução deste setor, o objetivo desse trabalho é apresentar a regulação atual e o debate que vem ocorrendo em torno da nova regulação proposta pelo PL nº 5.829/2021. Para tanto, veremos na sequência a regulação atual da GD e seus problemas, a proposta da ANEEL para mudanças na regulação, as críticas à proposta da ANEEL e, por fim, as principais mudanças presentes no PL nº 5.829/2021.

 

Início da Regulação da GD no Brasil: Resolução Normativa nº 482/12 e Atualizações

A GD no Brasil é regulada basicamente pela Resolução Normativa (RN) nº 482/2012 da ANEEL, esta que foi atualizada e alterada através das resoluções normativas nº 512/2012, nº 687/2015 e nº 786/2017 da ANEEL. Sobre a RN nº 482/2012 e suas posteriores alterações, podemos destacar os seguintes pontos:

  • Tornou possível o consumidor de eletricidade no Brasil produzir parte ou a totalidade da eletricidade que consome;
  • Estabeleceu as regras de acesso aos sistemas de distribuição;
  • Instituiu o sistema de compensação de energia elétrica (SCEE) (Net Metering), o qual permite que o consumidor que gerar mais eletricidade do que consome (em um mês) utilize esses créditos de energia nos próximos 60 meses para: (i) compensar uma possível geração abaixo do consumo; ou (ii) utilizar em outras unidades consumidoras (UCs) de mesma titularidade e que estejam localizadas dentro da mesma área de concessão/permissão;
  • Instituiu as modalidades de participação no sistema de compensação, que são:
    • Geração de Energia junto à carga: permite que o consumidor instale uma central de GD em seu espaço físico e consuma a energia no mesmo local;
    • Autoconsumo remoto: permite que um consumidor gere a energia em local diferente de onde será consumida, desde que o local esteja sob a mesma titularidade e dentro da mesma área de concessão/permissão;
    • Geração Compartilhada: permite que um conjunto de consumidores de uma mesma área de concessão/permissão se juntem (via cooperativa ou consórcio) para a instalação de uma central de GD (que se localizará em local diferente das UCs nas quais a energia excedente será compensada) e compartilhem a energia injetada na rede (conforme as cotas estabelecidas no contrato firmado entre os participantes);
    • Empreendimento de múltiplas unidades consumidoras (EMUC): permite que UCs de um mesmo condomínio (residencial/comercial e horizontal/vertical), ou seja, de um mesmo espaço, repartam a energia gerada. O sistema de geração pode compensar o consumo de eletricidade das áreas comuns e de uso coletivo do condomínio e o consumo de cada UC, conforme cotas predefinidas entre os integrantes.

A regulamentação da GD através da RN nº 482/2012 e posteriores alterações estimulou a adoção de sistemas de GD, mas também gerou algumas preocupações por parte de agentes do setor. Dentre elas podemos destacar duas:

i) A questão da chamada “espiral da morte”: que basicamente diz que a adoção de sistemas de GD por parte dos consumidores cativos (aqueles que demandam energia das distribuidoras) reduziria a demanda das distribuidoras e levaria a reajustes tarifários, fato que estimularia a demanda por GD e reiniciaria o processo. O resultado seria o contínuo encarecimento da eletricidade para os consumidores que permanecerem na rede e o contínuo estímulo à adoção da GD.

ii) A questão dos subsídios cruzados: A tarifa de eletricidade é o preço cobrado por unidade de energia (R$/kWh). Assim, o valor da chamada “conta de luz” que chega em nossas residências é dado pela tarifa multiplicada pelo consumo (KWh). A tarifa dos consumidores cativos é formada, conforme mostra a figura 1, pelos custos de geração, transmissão e distribuição de eletricidade, além dos encargos setoriais e impostos.

 

Figura 1 – Composição da tarifa

Fonte: Rigo et al (2021).

 

A parte da tarifa referente a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) busca cobrir os custos relativos ao uso do sistema de distribuição (Fio B) e transmissão (Fio A), além das perdas e encargos setoriais. Já a parte da tarifa referente a Tarifa de Energia (TE) busca cobrir os custos de geração de energia, além das perdas, encargos setoriais e dos custos de transporte e rede básica da hidrelétrica de Itaipu. O fato é que o sistema de compensação atualmente vigente valora a energia injetada na rede pelo sistema de GD em 100% da tarifa cobrada pelas distribuidoras, o que significa uma sobrevalorização. É como se os consumidores que possuem sistema de GD deixassem de contribuir, por exemplo, com os encargos setoriais e com os custos das redes de distribuição e transmissão, valores esses que serão pagos pelos consumidores cativos sem GD (daí subsídios cruzados). Ou seja, os consumidores com sistemas de GD, por exemplo, continuam utilizando as redes de distribuição e transmissão (pois, quando há excedente de geração, esta é destinada à rede da distribuidora; e quando a geração é menor do que o consumo, o consumidor demanda energia da rede), mas não estão pagando por esse serviço.

Os defensores dos subsídios argumentam que estes são importantes para estimular a geração limpa e renovável, especialmente a solar, além de tornar o sistema elétrico brasileiro menos dependente das hidrelétricas e das termelétricas (poluentes e caras), ponto bastante citado neste momento de crise hídrica. Já os contrários aos subsídios defendem que parte dos custos de um sistema de GD, geralmente adotados por agentes de elevado poder aquisitivo, são subsidiados pelos demais consumidores cativos, que em grande parte são de baixo poder aquisitivo, e, portanto, temos o cenário em que os mais pobres estariam subsidiando a eletricidade dos mais ricos. De fato, grande parte dos agentes do setor vem defendendo nos últimos anos mudanças na regulação que façam com que os consumidores com sistemas de GD deixem de receber, em parte ou totalmente, tais subsídios.

 

Estudos da ANEEL e propostas de mudanças na regulamentação da GD

A partir de 2018, visando minimizar os problemas da “espiral da morte” e dos subsídios cruzados, a ANEEL estabeleceu uma agenda regulatória com o intuito de sugerir mudanças nas regras aplicáveis à GD, com destaque para o sistema de compensação de energia. Dentro dessa agenda podemos citar: a Consulta Pública nº10/2018, o Seminário Internacional sobre Micro e Minigeração Distribuída de 2018, a Audiência Pública n° 01/2019 e a Consulta Pública nº 25/2019. É importante frisar que a própria RN nº 482/12, em seu artigo 15, já determinava a revisão das regras até 2019.

Com base nas contribuições recebidas na Consulta Pública n° 10/2018 foi elaborada a Análise de Impacto Regulatório (AIR) nº004/2018, que apresentou uma proposta de um novo modelo de sistema de compensação. Em 2019, a ANEEL aprimorou a análise realizada na primeira versão da AIR e, por meio do Relatório AIR nº 003/2019, disponibilizado na Consulta Pública n° 25/2019, apresentou nova proposta para o sistema de compensação.

É importante lembrar que a ANEEL realizou consultas públicas e buscou criar alternativas para o fim gradual dos subsídios, mas tal processo foi interrompido devido pressões de agentes do setor, que na época chamaram esse processo de tentativa do governo de “taxar o sol”, expressão falaciosa, mas bastante midiática. Em 2019, a ANEEL (2019) estimou em R$ 56 bilhões o custo dos subsídios à GD para o período entre 2020 e 2035. No fim de 2020 o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou à ANEEL que apresentasse em 90 dias um plano para acabar com a diferenciação tarifária entre os consumidores (para dar fim aos subsídios), mas tal determinação foi suspensa em 2021 [4].

Mas como seria o novo sistema de compensação sugerido pela ANEEL (no AIR nº 003/2019) e que visava tratar, principalmente, do problema dos subsídios cruzados?

Na AIR nº 003/2019 a ANEEL apresentou 5 Alternativas para um novo sistema de compensação. As alternativas sugeridas se diferenciam quanto aos componentes da tarifa que são utilizados para valorar a energia dos sistemas de GD. Por exemplo, na “Alternativa 0” (que representa o sistema de compensação da regulação vigente) a energia injetada na rede é remunerada por todos os componentes tarifários. Já na “Alternativa 1”, a energia não seria remunerada pelo componente “Fio B” e, portanto, seria remunerada por 73% da tarifa. A tabela 2 descreve as 5 alternativas.

 

Tabela 2 – As 5 alternativas para um novo SCEE

Fonte: ANEEL (2019). Elaboração própria.

 

A ANEEL apresenta as seguintes justificativas para a cobrança dos componentes:

  • (Fio B + Fio A): A UC com GD utiliza as redes do sistema (distribuição e transmissão), logo também devem arcar com seus custos;
  • Encargos Setoriais (TUSD e TE): os encargos setoriais possuem previsão legal para repasse aos usuários do sistema e, por utilizar o sistema, a UC com GD também deveria arcar com tais custos;
  • Perdas (TUSD): A UC com GD deve arcar com as perdas:
    • Não técnicas: pois prevalece o entendimento de que esta se trata de um ônus da concessão e, assim, deve ser arcada por todos os consumidores da área de concessão;
    • Técnicas: é fato que ao utilizar a energia injetada para compensar a energia consumida, a UC com GD em nada se diferencia de um consumidor sem GD na sua parcela de consumo e, portanto, deve arcar com as perdas técnicas da mesma forma.

Diante do exposto, a ANEEL (2019) concluiu que a Alternativa 5 seria aquela que minimizaria a redistribuição de custos aos demais usuários da rede e às distribuidoras. Definida a alternativa 5, a ANEEL realizou estudo para determinar uma trajetória para sua adoção. As variáveis de decisão utilizadas para escolher a trajetória foram:

i) Taxa Interna de Retorno (TIR) e Payback de quem instala a GD;

    • Para os cálculos da TIR e payback do projeto de GD foram estimados os custos e benefícios sob a ótica de quem instala a GD. Tais custos e benefícios estão descritos no quadro 1.

 

Quadro 1 –  Custos e benefícios sob a ótica de quem instala GD

Fonte: ANEEL (2019)

 

ii) Estimativa da projeção da potência instalada de GD até 2035;

    • Calculada via modelo de Bass.

iii) Valor Presente Líquido (VPL) para o setor elétrico acumulado entre 2020 e 2035;

iv) Impacto sob a ótica tarifária aos demais usuários no período entre 2020 e 2035.

    • Após estimar a quantidade de GD que seria instalada em cada ano até 2035 (ii), a ANEEL estimou os custos e benefícios que compõem o VPL do setor (iii) e os impactos sob o ponto de vista tarifário para as distribuidoras e para os demais usuários (iv). A análise de custo-benefício considerou impactos positivos e negativos dessa geração sob a perspectiva dos demais consumidores e da distribuidora, conforme consta no quadro 2.

 

Quadro 2 –  Custos e benefícios sob a ótica dos demais consumidores

Fonte: ANEEL (2019).

 

Destaca-se que a ANEEL levou em consideração apenas custos e benefícios da GD ligados ao setor elétrico. Segundo a ANEEL (2019), benefícios como redução de gases de efeito estufa, redução de poluição do ar e de uso do solo, geração de empregos e outros são externalidades que extrapolam os limites do setor elétrico e, portanto, não devem fazer parte das análises quantitativas apresentadas pela agência dado que esse tipo de avaliação é característica da implementação de políticas públicas, papel desempenhado pelo Congresso Nacional ou pelo Poder Concedente.

Realizado os cálculos, a ANEEL (2019) chegou aos seguintes resultados:

  • O subsídio cruzado em decorrência do uso da “Alternativa 0” (regulação atual) foi de R$205 milhões em 2018 e R$315 milhões em 2019.
  • A manutenção da “Alternativa 0” geraria R$55 bilhões em custos para o sistema elétrico entre 2020 e 2035 (valor do subsídio cruzado). Tal valor seria de R$48 bilhões quando se leva em consideração os benefícios da GD ao setor elétrico;
  • A “Alternativa 5”, em comparação às outras alternativas, leva aos maiores valores de VPL (do setor elétrico) e aos menores valores de redistribuição de custos entre os demais consumidores, o que mostra que a análise quantitativa corrobora a análise conceitual.
  • A melhor opção de trajetória para a adoção da Alternativa 5 seria:
    • As UC que já possuem GD (local ou remota): continuariam com as regras atualmente vigentes (Alternativa 0) aplicáveis a seus empreendimentos até o final de 2030 (31/12/2030).
    • As UC que adotarem sistema de GD Remota após publicação da norma: seria aplicada a “Alternativa 5”.
    • As UC que adotarem sistema de GD local após publicação da norma: seria aplicada a “Alternativa 2” até o sistema atingir uma potência instalada adicional de 4,7 GW, quando então a “Alternativa 5” passaria a ser adotada.
  • Mesmo diminuindo os incentivos à GD, o novo sistema de compensação manteria os projetos em GD economicamente rentáveis. Por exemplo, um projeto médio de GD Local teria TIR em torno de 15% ao ano.

 

Críticas à proposta da ANEEL

A “Alternativa 5” proposta pela ANEEL como novo SCEE para a GD foi criticada por alguns agentes do setor, como a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR). A ABSOLAR (2021) apresenta as seguintes justificativas para a não cobrança dos seguintes componentes tarifários:

  1. Fio B: a GD gera energia no local de consumo, usando menos a rede e postergando novos investimentos na expansão e reforços da rede de distribuição, pagos por todos os consumidores;
  2. Fio A: a eletricidade da GD fica em baixa e média tensão, não usa as linhas de transmissão e ainda posterga novos investimentos em transmissão, pagos por todos os consumidores;
  3. Encargos (TUSD): a GD contribui para a redução de encargos ao diversificar a matriz elétrica e aumentar a segurança de suprimento com fontes renováveis;
  4. Perdas (TUSD): a GD reduz perdas ao gerar eletricidade junto ou próximo ao consumo, reduzindo esses custos para os demais consumidores;
  5. Encargos (TE): a GD contribui para a redução de encargos, pois traz inovação tecnológica, infraestrutura e promove uma matriz elétrica mais limpa;

Quanto ao ponto “a”, a ANEEL (2019) afirma que não inseriu a expansão evitada do sistema de distribuição no cálculo dos benefícios para o sistema pois a postergação de investimentos na rede de distribuição ocorreria caso o sistema de GD estivesse no local certo (onde há alta demanda de carga e pouca “folga” da rede), na hora certa (operasse no horário de demanda máxima) e fosse confiável (estivesse disponível independentemente de condições climatológicas) e controlável (despachável conforme a necessidade da rede), mas essa não é a realidade dos sistemas de GD que estão sendo instalados no Brasil, que em sua maioria são sistemas solar FV (ANEEL, 2019).

Em relação ao ponto “b”, a redução da capacidade máxima do sistema de transmissão (postergando a necessidade de investimentos) é levada em consideração nos cálculos do benefício dos sistemas de GD para o setor elétrico. No entanto, é inegável que as UC com sistemas de GD permanecem utilizando a rede de transmissão. Quando a UC produz menos eletricidade do que consome, esta demanda excedente será atendida por energia proveniente da rede (geração centralizada).

Já em relação aos Encargos Setoriais (pontos “c” e “e”), a ANEEL (2019) afirma que estes devem ser pagos por todos que usam o sistema. Ademais, os benefícios apontados em “c” e “e” pela ABSOLAR também ocorrem quando a geração é eólica ou solar FV centralizada e, portanto, será que o governo também deveria isentar tais formas de geração desses encargos?

Por fim, o ponto “d” é levado em consideração pela ANEEL (2019) no cálculo do benefício que a GD traz ao setor elétrico ao reduzir as perdas na transmissão e distribuição. No entanto, segundo a ANEEL (2019), o fato dos sistemas de GD continuarem usando as redes mantém a necessidade destes arcarem com as perdas.

 

Projeto de Lei nº 5.829/2021 agradou mais aos “gregos do que os troianos”

Novas mudanças na regulação da GD estão em andamento. No dia 18 de agosto de 2021 foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) nº 5.829 (BRASIL, 2021), chamado de Marco Legal da GD, cujos principais pontos são:

i) Os atuais detentores de sistemas de GD vão continuar se beneficiando dos subsídios até 31 de dezembro de 2045, dado que a regra de valoração dos créditos de energia fica inalterada. Ademais, tal benefício se estenderá para os consumidores que aumentarem a capacidade de seu sistema ou que instalarem novos empreendimentos de GD em até 12 meses após a publicação da lei;

ii) Em até 18 meses após a publicação da lei, a ANEEL deverá publicar um estudo em que irá valorar os custos e benefícios que a GD traz para o setor elétrico, com base nas diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), de modo que este estudo oriente o estabelecimento de uma nova forma de valorar os créditos de energia a partir de 2029 ou 2031.

iii) Estabeleceu que após 12 meses de vigência da lei, os novos sistemas de GD passarão a pagar, de forma escalonada ao longo dos anos, alguns componentes tarifários:

  • Os novos sistemas de GD do tipo Geração junto à Carga, Autoconsumo remoto com até 500 KW, Geração Compartilhada, EMUCA ou com GD de fonte despachável, passarão a pagar pelo componente Fio B.
  • Os novos sistemas de GD do tipo Autoconsumo remoto acima de 500 KW ou Geração compartilhada em que um único CPF ou CNPJ receba mais do que 25%, passarão a pagar pelos componentes Fio B, 40% do Fio A, Tarifa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE) e o Encargo de Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética (P&D_EE).

iv) Estabeleceu um período de transição em que:

  • Os consumidores que protocolarem solicitação de acesso à rede de novo sistema de GD entre o 13º e 18º mês de vigência da lei terão seus créditos de energia valorados até 2030 conforme uma das duas regras vistas no ponto “iii”. A partir de 2031 a valoração dos créditos seria através da metodologia elaborada pelo estudo da ANEEL;
  • Os consumidores que protocolarem solicitação de acesso após o 18º mês de vigência da lei terão seus créditos de energia valorados até 2029 conforme uma das duas regras vistas no ponto “iii”. A partir de 2030 a valoração dos créditos seria através da metodologia estabelecida pelo estudo da ANEEL;

v) as distribuidoras poderão considerar a energia inserida no sistema pelos micro e minigeradores como sobrecontratação involuntária para fins de revisão tarifária extraordinária, o que reduz o impacto negativo da GD sobre as distribuidoras.

vi) Foi criado o Programa de Energia Renovável Social (PERS), destinado a investimentos na instalação de sistemas fotovoltaicos e de outras fontes renováveis, na modalidade local ou remota compartilhada, aos consumidores da Subclasse Residencial Baixa Renda. Os recursos financeiros para este programa virão dos Programas de Eficiência Energética, de fontes de recursos complementares ou ainda de parcela de Outras Receitas das atividades exercidas pelas distribuidoras convertida para a modicidade tarifária nos processos de revisão tarifária.

   O que observamos com essa nova regulamentação é que ela:

  • Trará transparência e segurança jurídica, uma vez que define regras de mais longo prazo de funcionamento do mercado e, em consequência, tende a estimular o investimento;
  • Incentivará a adoção de sistemas de GD no curto prazo, em função da perda dos subsídios 12 meses após a publicação da lei;
  • Reduzirá o impacto negativo da GD sobre as distribuidoras dado que estas poderão considerar a energia inserida no sistema pelos micro e minigeradores como sobrecontratação involuntária para fins de revisão tarifária extraordinária, o que trará mais custos aos consumidores cativos;
  • Mostra estar ciente da dificuldade dos consumidores de baixa renda adotarem sistemas de GD e, com isso, criou o PERS visando minimizar tal problema;
  • Fica entre a proposta da ABSOLAR (2021) e a proposta da ANEEL, uma vez que a energia injetada na rede pela UC não mais será remunerada (até 2029 ou 2030) por, pelo menos, o componente tarifário Fio B. No entanto, poderíamos dizer que a proposta descrita no PL nº 5.829/2021 está mais próxima da regulação atual do que da proposta da ANEEL, ou seja, os subsídios foram reduzidos, mas longe de serem eliminados.

Podemos dizer que a proposta da PL nº 5.829/2021, por estar mais próxima da proposta da ABSOLAR (2021) do que da proposta da ANEEL, acabou agradando mais aos “gregos do que aos troianos”. Se por um lado o PL retirou parte dos subsídios dados aos projetos de GD em função da cobrança de alguns componentes tarifários, por outro lado essa cobrança foi aquém da apontada como ideal pela ANEEL e, portanto, tal PL acabou minimizando a retirada dos subsídios dados à GD. Ademais, se por um lado o PL se atentou aos custos causados às distribuidoras pela GD, por outro o PL repassou tais custos aos consumidores cativos.

De um modo geral, podemos dizer que essa nova regulamentação se mostra um avanço uma vez que reconheceu o problema dos subsídios cruzados e da espiral da morte, mas o remédio sugerido para combater tais problemas não será forte o suficiente para tal. É provável que nos próximos anos o debate sobre os subsídios não desapareça uma vez que a GD tende a ganhar impulso em função, por exemplo, do aumento do preço da eletricidade no Brasil. A título de exemplificação, a ANEEL estima que as tarifas de energia sofram um reajuste médio de 21% em 2022 (BORGES, 2021).

 

Notas

[1] Endereço do site: < https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZjM4NjM0OWYtN2IwZS00YjViLTllMjItN2E5MzBkN2ZlMzVk IiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05MmQ0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9 >. Acesso em: 11/11/2021.

[2] Entre 2019 e 2021 o potencial de GD instalada no Brasil aumentou em cerca de 7,5 GW, o que representa 40% da potência eólica instalada no país em outubro de 2021 (19,77 GW) (ABEEÓLICA, 2021).

[3] Endereço do site: < https://www.aneel.gov.br/relatorio-evolucao-tarifas-residenciais >. Acesso em: 11/11/2021.

[4] A ANEEL publicou a Nota Técnica nº 0030/2021 em resposta ao pedido do TCU.

 

Referências

ABEEOLICA (Associação Brasileira de Energia Eólica). (2021). Infovento 22 – Outubro de 2021. Disponível em: < http://abeeolica.org.br/wp-content/uploads/2021/11/2021_06_InfoVento22.pdf >. Acesso de 11/11/2021.

ABSOLAR (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica). (2021). Projeto de Lei nº 5.829/2019 – Marco Legal da Geração Distribuída Renovável. Disponível em: <  https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdc/apresentacoes-em-eventos/apresentacoes-de-convidados-em-eventos-em-2021/geracao-de-energia/apresentacao-absolar/view >. Acesso de 11/11/2021.

ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). (2012). Resolução Normativa nº 482, 17 de abril de 2012. Disponível em: < http://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2012482.pdf >. Acesso em: 11/11/2021.

ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). (2019). Relatório de Análise de Impacto Regulatório nº 003/2019-SRD/SGT/SRM/SRG/SCG/SMA/ANEEL.

BORGES, André. (2021). Reajuste de 21% estimado para a conta de luz em 2022 pode ser o maior em 7 anos. O Estado de São Paulo: 12 nov. 2021. Disponível em: < https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reajuste-de-21-estimado-para-a-conta-de-luz-em-2022-sera-o-maior-em-7-anos,70003897111#:~:text=%22Nossas%20estimativas%20apontam% 20para%20um,triplica%20a%20alta%20de%202021. >. Acesso em 12/11/2021.

BRASIL. Câmara dos Deputados. (2019). Projeto de Lei nº 5.829 de 05 de novembro de 2019. Institui o marco legal da microgeração e minigeração distribuída, o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) e o Programa de Energia Renovável Social (PERS); altera as Leis nºs 10.848, de 15 de março de 2004, e 9.427, de 26 de dezembro de 1996; e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2228151 >. Acesso em: 11/11/2021.

RIGO, P.D.; REDISKE, G.; SANTOS, J. R. G.; FREITAS, C.V.; LORENZONI, L.P.. (2021). Relatório Trimestral SOLARMAP: A fatura de energia elétrica brasileira e os incentivos à Geração Distribuída. Vol. 2, nº2, 2021.

TADEU, Erivelto. (2021). Instalação de painéis solares cresce em meio à escalada da conta de luz: marco legal da microgeração e minigeração distribuída deve estimular crescimento do mercado. Valor Econômico: São Paulo, 27 out. 2021. Disponível em: < https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/noticia/2021/10/27/instalacao-de-paineis-solares-cresce-em-meio-a-escalada-da-conta-de-luz.ghtml >. Acesso em: 11/11/2021.

 

 

Sugestão de citação: Ferreira, W. (2021). Geração Distribuída e o Projeto de Lei 5.829/2021 que agradou mais os “gregos do que os troianos”Ensaio Energético, 22 de novembro, 2021.

Autor do Ensaio Energético. Economista, Mestre e Doutor em Economia pela UFF. Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.

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