Ensaio Energético

O desafio da flexibilização na bioeconomia

O desenvolvimento das biorrefinarias é um elemento central para o avanço da bioeconomia. Apenas com elas é possível processar a biomassa em uma ampla variedade de produtos, desde os produtos básicos, como alimentos e bioenergia, até produtos de maior valor agregado, como biomateriais avançados, biofarmácos e biocombustíveis avançados.

Há diversos autores que fazem analogia das biorrefinarias com as refinarias de petróleo, uma vez que elas recebem um insumo, no caso a biomassa, e o transforma em vários produtos (DE JONG; JUNGMEIER, 2015). Porém, diferente do petróleo, a biomassa não é um produto homogêneo e suas características se alteram de acordo com o tipo de vegetal, a forma de sua produção e as condições edafoclimáticas regionais. Ainda, a biomassa possui conteúdo energético muito inferior ao do petróleo e não se encontra em estado líquido, duas características que dificultam o transporte econômico da biomassa por longas distâncias.

Consequentemente, as biorrefinarias precisam ser colocadas próximas às fontes de matérias-primas e possuir tecnologias adaptadas às diferentes realidades. Ela representa, em relação a refinaria de petróleo, uma quebra paradigmática pois requer a descentralização, em vez da escala, e a personalização, em vez da padronização (OECD, 2018).

Esse novo paradigma não garante a sustentabilidade pois a biomassa, apesar de renovável, pode ser produzida de forma não sustentável. Vale lembrar que a agricultura, juntamente como a mudança do uso do solo que ela ocasiona, são responsáveis por cerca de um quarto das emissões de gases de efeito estufa (MCKINSEY, 2020).

Uma das formas de tornar a bioeconomia mais sustentável e com maior geração de renda local é desenvolver cadeias de abastecimento de matérias-primas que utilizem culturas vegetais regionais e que valorizem os resíduos (agrícolas, urbanos e florestais). Todavia, uma maior dependência desses recursos intensifica a sazonalidade e a heterogeneidade na oferta de matérias-primas aumentando a necessidade de mecanismos de flexibilização, tanto pelo lado da oferta quanto pelo lado da demanda.

Dificuldades para criação de mecanismos de flexibilização no caso da biomassa

A flexibilização é elemento essencial para o amadurecimento da bioeconomia. Tanto pelo lado da oferta de matérias-primas quanto pelo lado da demanda, os mecanismos de flexibilização são necessários para que variações de curto e de médio prazo no mercado de matérias-primas e/ou de bioprodutos possam ser prontamente atendidas, evitando assim quebras contratuais e permitindo o pleno funcionamento das biorrefinarias.

Pelo lado da oferta, no caso da biomassa, os principais mecanismos de flexibilização envolvem variações da oferta provenientes de estoques e a diversificação de fornecedores. Pela demanda, os mecanismos são contratuais, com a utilização de contratos interruptíveis, e com a criação de um mercado secundário, isto é, um ambiente de negociação de contratos (IEA, 2002). Nestes casos, é importante que as biorrefinarias possuam a capacidade de operar com mais de uma matéria-prima pois, no caso da quebra do fornecimento de um fornecedor, ela possa migrar para outras opções.

As questões de flexibilização também são relevantes para a indústria do petróleo, todavia, diferente do caso da biomassa, o petróleo pode ser estocado com maior facilidade e transportado de forma mais eficiente. Outro ponto, é que o petróleo já conta com grande diversidade de fornecedores e compradores, de forma que, em caso de falta de petróleo, uma refinaria consegue adquirir rapidamente petróleo no mercado spot. Caso haja excesso de petróleo, uma refinaria pode revender ou estocar o petróleo com certa facilidade.

Além dos já citados problemas de heterogeneidade e baixo conteúdo energético, muitas das possíveis fontes de biomassa, principalmente as culturas vegetais, não são perenes e apresentam uma sazonalidade natural. Outro ponto é que a produção de biomassa está sujeita às variações climáticas adversas e outros riscos, como contaminação por pragas, tornando sua oferta bem mais incerta do que a do petróleo.

O uso de resíduos acrescenta mais complexidade à construção de cadeias eficientes de biomassa uma vez que sua oferta depende produção do bem primário (aquele que gera o resíduo). Esse produto primário pode sofrer influência de mercados distintos daqueles atendidos pela biorrefinaria de forma que, a oferta de biomassa residual não depende das necessidades da biorrefinaria.

Apesar de o Brasil ainda não possuir uma bioeconomia avançada estabelecida, ele conta com alguns setores intensivos no processamento de vegetais que exemplificam bem as dificuldades em lidar com a biomassa, como é o caso do setor de etanol.

A flexibilidade na indústria do etanol

O Brasil é atualmente o segundo maior produtor mundial de etanol, perdendo apenas para os EUA. Apesar do produto ser o mesmo, os dois países apresentam indústrias bem díspares, pois, enquanto o Brasil baseia sua indústria na utilização de cana-de-açúcar e possui um mercado competitivo de etanol hidratado, nos EUA, a indústria utiliza majoritariamente o milho e o mercado é praticamente apenas de etanol anidro.

Essas diferenças da indústria brasileira impõem dificuldades a mais no que tange a necessidade de flexibilização. Porque, diferente do milho, a cana-de-açúcar não pode ser estocada uma vez que, após seu corte, ela começa a se degradar rapidamente (BNDES, 2008). Portanto, uma vez colhida, a cana precisa ser imediatamente processada. A impossibilidade de estocagem ainda limita o processamento da cana-de-açúcar aos meses de colheita que, na região Centro-Sul do Brasil, principal região produtora, estende-se entre os meses de abril e de novembro. A safra de cana não pode ser adiada por longos períodos pois gera perda na produtividade. O Gráfico 1 apresenta a evolução mensal da moagem de cana no Brasil.

Gráfico 1 – Moagem mensal de cana-de-açúcar no Brasil

Fonte: Elaboração própria com dados do (MAPA, 2020).

Tradicionalmente, a inflexibilidade em relação à oferta de cana-de-açúcar sempre foi respondida na indústria do etanol com a paralização da produção nos meses entressafra. Isto é, entre os meses que não tem colheita de cana, as usinas de etanol simplesmente desligam as fábricas e aguardam a próxima safra (BNDES, 2008). Parar a produção por cerca de três meses é algo impensável para uma refinaria de petróleo pois quanto menor a produção, maiores os custos médios e maior o preço final dos derivados.

Durante a safra, observa-se uma sobre oferta de cana-de-açúcar. Para lidar com esse excesso, a maioria das usinas brasileiras tem a opção de produzir etanol ou açúcar. Essa flexibilidade entre os dois produtos permite que as empresas destinem mais matérias-primas para o mercado que apresenta melhores condições. Assim, em caso de restrições na demanda de etanol, por exemplo, as usinas podem deslocar a produção para o açúcar.

Porém, mesmo essa flexibilidade tem um limite e nem todas as usinas são mistas (produzem açúcar e etanol) (RODRIGUES; SOARES, 2020). Assim a outra opção é armazenar o etanol. Neste caso, o Brasil possui uma grande capacidade de estocagem construída ao longo das décadas. Atualmente, cerca da metade da produção anual de etanol pode ser armazenada (ANP, 2020).

A estocagem de etanol é de fato uma opção para escoar a produção das usinas durante a safra e abastecer o mercado durante o período de entressafras. Todavia, ela não é solução para as situações de queda na oferta de cana para o etanol, que pode ser em virtude de problemas climáticos e disparada de preços do açúcar no mercado internacional, que tende a deslocar a produção das usinas para açúcar. Nessas situações, não há muito o que fazer a não ser elevar o preço do etanol.

Diferente dos EUA, onde o mercado é quase todo regulado com os mandatos, no Brasil, grande parte da produção do etanol disputa diretamente com a gasolina pelo consumidor, a maior parte da frota de veículos leves é de carros flex. Portanto, o preço da gasolina impõe um teto ao preço do etanol.

Nas últimas décadas, o custo de produção do etanol tem crescido em função, principalmente, dos custos relacionados às matérias-primas (NYKO et al., 2013; RODRIGUES & SOARES, 2020). Essa elevação, juntamente com o baixo preço do petróleo tem restringido as margens de operação dos produtores de etanol e dificultando a expansão do setor.

 Uma opção que tem sido adotada para aliviar o mercado de etanol em situação de restrições é a variação dos mandatos obrigatórios de etanol anidro a gasolina. Com a redução da obrigatoriedade da mistura, libera-se mais etanol para o mercado de hidratado. O Gráfico 2 mostra a variação na obrigatoriedade de mistura do anidro e que, desde 2015, a porcentagem tem se mantido em 27%. Todavia, este é um mecanismo determinado pelo governo e, portanto, suscetível às pressões políticas, e com impacto limitado.

Gráfico 2 – Variações no mandato de mistura obrigatória de etanol anidro à gasolina

Fonte: Elaboração própria com dados (MAPA, 2020).

Desde 2012, no Brasil, começou a produção do etanol de milho com a adaptação das usinas de etanol de cana-de-açúcar para operar também com o milho. Há, atualmente, 13 usinas caracterizadas como flex, isto é, que podem operar com a cana e com o milho (ROCHA, 2019). Nestes casos, o objetivo principal é aproveitar a segunda safra do milho (milho safrinha) que é colhido no período de entressafra da cana. O Gráfico 3 mostra o processamento de milho para a produção de etanol no Brasil. É interessante notar que o processamento cresce de forma complementar à queda no processamento de cana, observado no Gráfico 1. Com isso, as usinas de etanol conseguem reduzir a ociosidade de suas plantas e, consequentemente, reduzir o custo final do etanol. Elas também passam a comercializar o GDS, um subproduto originado do processamento do milho e utilizado como ração animal.

Gráfico 3 – Processamento mensal de milho para a produção de etanol no Brasil

Fonte: Elaboração própria com dados da ANP (2020).

A Figura 1 mostra uma seleção de usinas de etanol localizadas em municípios com produção anual do milho safrinha superior a 100.000 toneladas. Na seleção foram encontradas 34 usinas que se localizam próximas a grande disponibilidade do milho safrinha, o que pode tornar a conversão em usinas flex mais vantajosa. Rocha (2019) estimou o potencial de conversão de usinas de etanol em usinas flex, dado o acesso às fontes de produção de milho, e chegou à conclusão de que, no Brasil, cerca de 132 usinas poderiam se tornar flex atendendo condições de fácil acesso à produção nacional de milho. Ainda, com a adaptação, as usinas poderiam ocupar cerca de 70% da sua capacidade ociosa (ROCHA, 2019).

Figura 1 – Produção municipal do milho safrinha em 2019 e seleção de usinas de etanol localizadas em municípios com produção superior a 100.000 toneladas

Fonte: Elaboração própria com dados do (IBGE, 2020) e (EPE, 2020).

Aprendizados para a bioeconomia

Uma transição para uma economia de baixo carbono perpassa pelo desenvolvimento da bioeconomia pois apenas a biomassa é capaz de substituir as fontes fósseis nos mercados de químicos, de plásticos e de materiais. Porém, para atingir critérios de sustentabilidade, é importante que o fornecimento de biomassa seja sustentável, tanto ambientalmente como socialmente. Isto implica no aproveitamento de resíduos e de culturas regionais, que insiram na cadeia produtiva os produtores familiares.

Uma maior dependência da biomassa para atender mercados essenciais irá reforçar a necessidade de criar meios de garantir o pleno funcionamento de matérias-primas e formas de integração vertical não são recomendadas, pois, como dito, deseja-se a inserção de pequenos produtores na cadeia.

Pela experiência apresentada no caso da indústria do etanol, percebe-se que a diversificação da produção é um elemento importante de flexibilidade. Porém, é necessário que a produção caminhe para bens de maior valor agregado e diferenciados. O que permite que as empresas fiquem menos reféns das flutuações de mercado.

 A capacidade de processamento de mais de uma matéria-prima é, sem dúvida, um dos principais mecanismos de flexibilização. Porém, cada matéria-prima possui características únicas e a diversificação do processamento requer a anexação de pacotes específicos de pré-tratamento. A cada acréscimo de módulos de novas tecnologias de pré-tratamento, maior complexidade é acrescentada ao funcionamento da biorrefinaria (DE JONG; JUNGMEIER, 2015).

Essa complexidade deve-se ao caráter modular das biorrefinarias, cujo processo produtivo envolve diferentes etapas que precisam atuar de forma harmônica. Ou seja, a plena operação de uma biorrefinaria envolve a atuação sistemática de diferentes elos e a dificuldade em operacionalizar um elo inviabiliza a eficiência do todo (GEELS; RAVEN, 2006).

Ainda, a diversificação de matérias-primas exige necessariamente o crescimento das empresas que passam a lidar com novos fluxos de subprodutos e de resíduos, como o caso do DGS na produção do etanol de milho. Muitas vezes, para se evitar o descarte ou uso ineficiente dos resíduos é preciso buscar novas tecnologias e novos potenciais usos, acrescentando novamente mais complexidade.

Uma forma de tratar a complexidade discutida na literatura é a da adoção de novas formas de organização industrial, como o caso da simbiose industrial. Nesta situação, a biorrefinaria não seria apenas de uma empresa, mas contemplaria diversas empresas especializadas em alguns segmentos de mercado atuando em conjunto no compartilhamento de resíduos, de insumos básicos, de infraestrutura e de serviços básicos (CHERTOW, 2007).

Claro que a estruturação de simbioses industriais não é algo simples pois exige um comportamento mais aberto das empresas, maior predisposição na busca de relações win-win e uso mais intensivo de tecnologias da informação.

Há, além da questão organizacional, uma ampla variedade de meios de se buscar maior flexibilização. A produção de pellets, por exemplo, busca uma fonte de matéria-prima capaz de ser transportada por longas distâncias de forma competitiva. Outro ponto é o avanço de tecnologias de pré-tratamento cada vez mais flexíveis, como o caso das tecnologias de segunda geração. Porém, ainda há desafios a ser superado, como mostra o caso das plantas comerciais de etanol de segunda geração.

O que este artigo buscou apresentar é que, para a construção da bioeconomia, há desafios além dos tecnológicos pois o estabelecimento de cadeias de abastecimento de novas matérias-primas precisa também levar em conta maneiras de lidar com a sazonalidade, a diversidade e as incertezas da produção de biomassa. Portanto, também são necessários a criação de novos modelos de negócios, novas formas organizacionais e infraestrutura auxiliar.

Referências

BNDES. Bioetanol de cana-de-açúcar: energia para o desenvolvimento sustentável. [s.l.] Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2008.

CHERTOW, M. R. “Uncovering” Industrial Symbiosis. Journal of Industrial Ecology, v. 11, n. 1, p. 11–30, 2007.

DE JONG, E.; JUNGMEIER, G. Chapter 1 – Biorefinery Concepts in Comparison to Petrochemical Refineries. In: PANDEY, A. et al. (Eds.). . Industrial Biorefineries & White Biotechnology. Amsterdam: Elsevier, 2015. p. 3–33.

EPE. EPE WEBMAP. Disponível em: <https://www.epe.gov.br/en/publications/publications/webmap-epe>. Acesso em: 9 out. 2020.

GEELS, F.; RAVEN, R. Non-linearity and Expectations in Niche-Development Trajectories: Ups and Downs in Dutch Biogas Development (1973–2003). Technology Analysis & Strategic Management, v. 18, n. 3–4, p. 375–392, 1 jul. 2006.

IBGE. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br/home/ipca/brasil>. Acesso em: 9 out. 2020.

IEA. Flexibility in Natural Gas Supply and Demand. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.oecd-ilibrary.org/energy/flexibility-in-natural-gas-supply-and-demand_9789264033917-en>. Acesso em: 11 mar. 2020.

MAPA. Agroenergia. Disponível em: <https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sustentabilidade/agroenergia/agroenergia>. Acesso em: 9 out. 2020.

MAPA. MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Disponível em: <http://sistemasweb.agricultura.gov.br/sislegis/action/detalhaAto.do?method=abreLegislacaoFederal&chave=50674&tipoLegis=A>. Acesso em: 9 out. 2020.

MCKINSEY. Agriculture and climate change. p. 52, 2020.

ROCHA, B. Etanol de milho: Oportunidades para usinas flex no BrasilMonografia, , 2019.

RODRIGUES, N.; SOARES, G. Impacto do novo coronavírus no mercado de biocombustívelEnergia Hoje, 21 maio 2020. Disponível em: <https://energiahoje.editorabrasilenergia.com.br/impacto-do-novo-coronavirus-no-mercado-de-biocombustivel/>. Acesso em: 9 out. 2020.


Sugestão de citação: Soares, G. A. (2020). O desafio da flexibilização na bioeconomia. Ensaio Energético, 13 de outubro, 2020.

Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutorando em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da UFRJ. É consultor na Prysma E&T Consultores atuando no mercado de gás natural e de biocombustíveis no Brasil.

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