Ensaio Energético

A Transição Energética e os Combustíveis “abrasileirados”

O atual governo colocou a transição energética e o desenvolvimento verde como eixo transversal das políticas públicas para o desenvolvimento do país. Vários ministérios criaram secretarias voltadas aos temas da sustentabilidade ambiental e transição energética. O Ministério de Minas e Energia (MME) criou a Secretaria da Transição Energética; o Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e Comércio e Serviços (MDIC) criou a Secretaria de Economia Verde, etc. Vários órgãos do governo têm repetido a ideia de que o Brasil está em condições privilegiadas para competir na produção de energia renováveis e na transição energética, graças à ampla disponibilidade de recursos e competitividade da produção das energias verdes no Brasil.

Efetivamente, o Brasil encontra-se numa uma posição privilegiada quando avaliamos a disponibilidade de recursos energéticos renováveis. O país detém um volume desses recursos mais que suficientes para viabilizar a transição energética nacional e ainda permitir exportações de energia verde, seja na forma de biocombustíveis ou de combustíveis derivados do hidrogênio sustentável. Ademais, o país tem tradição nas energias renováveis, uma vez que já trilhou uma boa parte desta transição. Atualmente, cerca de 49% da energia consumida no país é proveniente de fontes renováveis em 2020. Este patamar está muito acima da média mundial que ficou em torno de 14% em 2019 (CEBRI, 2023).

Entretanto, a disponibilidade de recursos não garante a competitividade necessária para a transformação dos recursos energéticos do vento, do sol e da biomassa em energia elétrica e combustíveis sustentáveis. Pelo contrário, a substituição dos combustíveis fósseis vai exigir políticas públicas sofisticadas para regular e desenhar mercados para as novas fontes de energia como o hidrogênio, eólicas offshore, amônia, combustíveis sustentáveis de aviação (SAF). Ademais, vai exigir políticas de precificação das emissões dos combustíveis fósseis e utilização dos recursos públicos para incentivar as energias renováveis para reduzir a distância entre os custos das novas fontes de energia renováveis e os custos das energias fósseis.

Ao mesmo tempo em que abraçou a transição energética como um dos eixos transversais da política de desenvolvimento, o governo vem priorizando uma agenda de política pública que é absolutamente contraditória com a transição, que é a ideia de barateamento dos combustíveis fósseis. Desde a campanha eleitoral o presidente Lula vem vendendo a ideia de que os preços dos combustíveis praticados no Brasil são injustos porque o país se tornou um exportador de petróleo. Vendeu-se a ideia de que os consumidores brasileiros merecem um preço mais baixo que o internacional, e que esse preço deveria ser definido pelo custo de produção e não pelo valor no mercado internacional. Criou-se inclusive um slogan político para melhor vender essa ideia, que é “abrasileirar” os preços dos combustíveis.

Até recentemente, não se sabia exatamente o que significaria “abrasileirar” os preços dos combustíveis. Esta ideia começou a se materializar na discussão sobre a taxação dos combustíveis e da política de preços da Petrobras. Basicamente, a ideia é vender combustíveis no Brasil por um valor da commodity mais baixo que o praticado no mercado internacional. Isto se daria através de dois mecanismos complementares. O primeiro é o da taxação das exportações de petróleo pelo Brasil em 9,2%. Esta taxação tem o potencial para reduzir o valor do petróleo para o mercado interno, já que o país produz mais petróleo que consome. Para além do efeito potencial nos preços do petróleo fornecido ao mercado interno, o governo e a própria Petrobras através do seu presidente anunciaram a intenção de buscar novas fórmulas de precificação dos combustíveis que levem em conta os custos de produção e não o preço do mercado internacional.

Não existe ainda uma discussão concreta sobre qual seria o preço “abrasileirado” dos combustíveis. Se o governo e a Petrobras insistirem na ideia de apurar o custo de produção do petróleo, irão rapidamente perceber que não existe um número mágico. Por um lado, cada campo de petróleo tem uma reserva, um custo de produção e um nível de taxação específico. Por outro lado, só é possível calcular o custo do óleo já descoberto. O custo do barril óleo que ainda deverá ser descoberto para repor cada barril consumido não é conhecido. Ademais, cada refinaria tem seu custo de transformação do óleo e seu custo logístico para levar os combustíveis até o consumidor final. Enfim, o preço “abrasileirado” acabará sendo uma escolha das autoridades energéticas e/ou dos administradores da Petrobras. Estes administradores e autoridades estariam assumindo a responsabilidade de definir diretamente o que consideram um preço justo para o Brasil e uma rentabilidade justa para Petrobras.

A implementação de novas estratégias e fórmulas de preço em um contexto de mercado aberto à concorrência deverá enfrentar muitos desafios para respeitar as regras internas da empresa, do mercado de capitais, dos órgãos de controle externo e de defesa da concorrência. Entretanto, a empresa já trilhou os caminhos tortuosos do desalinhamento de preços durante o governo Dilma e eventualmente poderá encontrar novos caminhos criativos para praticar preços desalinhados com o mercado internacional.

Se esta estratégia for adiante, a Petrobras e a sociedade brasileira, enfrentarão várias consequências indesejáveis. Como a Petrobras não é a única fornecedora de combustíveis fósseis no país, se somente a Petrobras tiver a obrigação de “abrasileirar” seus preços, as refinarias privadas e os importadores privados irão praticar preços muito mais elevados que a Petrobras. Isto criará grandes assimetrias entre os preços praticados pelas refinarias da Petrobras, as refinarias privadas e os importadores. Por outro lado, se Petrobras tentar reduzir as assimetrias de preços através da concorrência com as refinarias privadas e importadores, simplesmente vai eliminar a competição e terá que reassumir o monopólio na oferta de combustíveis.

No fim das contas, “abrasileirar” os preços dos combustíveis é uma forma diferente de batizar a criação de subsídios aos combustíveis fósseis. Este subsídio representaria um alívio no bolso dos consumidores e certamente alavancaria muitos votos no curto prazo. Mas certamente vai comprometer gravemente a capacidade do governo para fomentar a transição energética e economia verde. Isto porque os preços dos combustíveis fósseis são uma variável determinante da competitividade dos combustíveis renováveis no Brasil. A produção atual de biocombustíveis no Brasil não recebe subsídios diretos e a competitividade do etanol e do biodiesel depende dos preços da gasolina e do diesel respectivamente.

Os novos combustíveis sustentáveis (derivados do hidrogênio verde, SAF e novos biocombustíveis) ainda apresentam uma competitividade muito baixa frente aos combustíveis fósseis. Estas novas energias estão sendo fortemente subsidiadas nos países ricos. Nos Estados Unidos, a lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act – IRA), aprovada em agosto de 2022, autorizou US$ 370 bilhões em subsídios para apoiar fontes de energia limpa e acelerar a transição dos combustíveis fósseis e cumprir os objetivos de emissões líquidas zero até 2050. Na Europa, o programa European Green Deal vai receber cerca de 600 bilhões de euros da comissão Europeia para investimentos em projetos relacionados com a transição energética. Parte destes recursos serão aplicados na forma de subsídios diretos aos projetos (fundos não reembolsáveis).

No Brasil, todas as nossas fichas estão colocadas na ideia de que temos uma vantagem na dotação de recursos que resultam numa competitividade natural das fontes renováveis de energia. Ou seja, o governo Lula está apostando na ideia de que nossos recursos renováveis são tão melhores que no resto do mundo, que não precisam de subsídios e ainda podem competir com os preços “abrasileirados” de gasolina e diesel. No entanto, não existem estudos que demonstrem que as novas formas de energia renováveis já são competitivas com os combustíveis fósseis no Brasil. Os fatos tampouco validam esta ideia. O fato é que Brasil não está liderando a área dos novos combustíveis renováveis no mundo. Os projetos na área de hidrogênio sustentável, SAF e novos biocombustíveis estão proliferando justamente na Europa, nos Estados Unidos e na China, onde contam com forte subsídios do governo. No Brasil assistimos muitos anúncios e propaganda de toda sorte, mas poucas iniciativas concretas.

Se o governo Lula realmente pretende levar a transição energética para além de um bordão de campanha política, terá que encarar a economia da transição energética. Para isto, o primeiro passo é aceitar que os preços de combustíveis fósseis representam a principal variável para viabilizar projetos de energia renováveis no país. É também importante considerar que o Brasil não tem como competir com a Europa, Estados Unidos e China na alocação de subsídios às energias renováveis. Portanto, nossa única chance de competir na transição energética é praticar uma política preços de combustíveis aderente à realidade do mercado. Ou seja, uma política de preços que acompanhe os preços dos derivados no mercado internacional, que inclua o preço do carbono emitido e um nível mínimo de impostos que permita ao governo arrecadar recursos para investir na transição. Por sua vez, os escassos recursos públicos disponíveis devem ser orientados para apoiar as fontes renováveis e não as energias fósseis.

Nos últimos anos o Brasil errou demais tanto na promoção da transição energética quanto na inação diante desse grande desafio. Ao mesmo tempo em que as autoridades energéticas alardeavam aos quatro cantos as nossas vantagens para transição energética, faziam pouco para acelerar investimentos para a descarbonização da economia, e não hesitaram em renovar subsídios para o carvão, em criar subsídios para o diesel, em aprovar leis para a contratação obrigatória de termelétricas, e medidas para desonerar totalmente o diesel, gasolina e GLP. Com o acúmulo de erros, nossa liderança na transição energética ficou cada vez mais comprometida. Nossa suposta vantagem nas novas energias renováveis se distancia da realidade e cada vez mais se transforma num wishfull thinking coletivo.  O “abrasileiramento” do preço do petróleo é uma teimosia míope, a repetição de erros do passado, mas agora também inconsistente com o proclamado comprometimento com uma política coordenada de transição ao baixo carbono.

A ênfase que o novo governo Lula deu ao tema da transição energética parecia apontar para um novo momento na política energética brasileira. Entretanto, o subsídio aos combustíveis fósseis através de uma política tributária heterodoxa e do controle dos preços da Petrobras poderá se tornar no maior de todos os erros já praticados pela política energética nacional em relação à promoção da transição energética.

 

Referências

EUROPEAN PARLIAMENT (2020). European Green Deal Investment Plan: Main elements and possible impact of the coronavirus pandemic. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2020/649371/EPRS_BRI(2020) 649371_EN.pdf

CEBRI (2023). Neutralidade de carbono até 2050: Cenários para uma transição eficiente no Brasil. Programa de Transição Energética.

 

Sugestão de citação: Almeida, E. (2023). A Transição Energética e os Combustíveis “abrasileirados”. Ensaio Energético, 06 de março, 2023.

É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França. Conselheiro Editorial do Ensaio Energético.

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1 ano atrás

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