Ensaio Energético

A importância da metodologia para cálculo da capacidade de transporte de gás natural

Introdução

Com o processo de abertura do setor de gás natural no Brasil, muitas novidades tem surgido. Dentre as novidades mais complexas está a adoção e efetiva implementação do Modelo de Entrada e Saída aos moldes do que foi desenvolvido nos mercados de gás europeus.

O Modelo de Entrada e Saída, dentre outras características, ao simplificar o processo de comercialização da molécula de gás natural em pontos virtuais de negociação (PVN), tende a tornar a operação física do transporte de gás mais complexa já que seus usuários (carregadores) deixam de contratar rotas de transporte pré-definidas (‘Ponto-a-Ponto’ ou origem-destino), para contratar o “acesso ao sistema” por pontos de entrada e pontos de saída de forma independente (Tavares, 2020).

Na configuração do modelo de Entrada e Saída do setor de gás natural, o conceito de capacidade do sistema de transporte se altera visando aumentar a capacidade que pode ser oferecida no mercado. Assim, a capacidade é mais dependente do comportamento dos fluxos comerciais que podem ser imprevisíveis, sobretudo do ponto de vista do transportador.

Calcular a capacidade disponível (CD) de transporte se torna uma tarefa mais difícil, sendo fundamental entendê-la para que seja garantida uma utilização ótima das infraestruturas e determinando uma gestão eficiente do sistema de transporte.

Este artigo tem como objetivo levantar algumas das características fundamentais do cálculo da capacidade de transporte no Modelo de Entrada e Saída, tendo como base as discussões realizadas quando do desenvolvimento desse modelo na Europa (ERGEG, 2007). As discussões travadas ressaltam conceitos relevantes que podem auxiliar no desenvolvimento de processos de aferição e oferta de capacidade no Brasil.

 

O contexto europeu e a consulta dos reguladores sobre cálculo de capacidade

Nos anos 1990-2000, o setor de gás e eletricidade na Europa passava por transformações profundas, buscando uma abertura de mercado ampla e desverticalização de segmentos dominados por grandes companias nacionais. Nesta época, as principais preocupações na região eram o acesso a terceiros às infraestruturas e a promoção da concorrência.

No contexto das reformas no setor de gás natural, em 2007, o grupo de reguladores europeu (European Regulators’ Group for Electricity and Gas – ERGEG; hoje chamado ACER) abriu consulta pública para tratar da seguinte questão:

Quanta capacidade firme o sistema de transporte de gás existente pode oferecer?

O grupo tinha interesse em discutir essa questão para que a regulação e os sistemas de transporte em cada país seguissem buscando maximizar a capacidade ofertada, ao mesmo tempo mitigando congestionamentos nas interconexões. A preocupação quanto a falta de coordenação entre os sistemas era um risco que afetaria os objetivos de funcionamento de um mercado interno europeu competitivo.

Assim, era crucial entender o processo de avaliação da capacidade de transporte para então ser possível discutir:

  1. a oferta ao mercado da capacidade disponível,
  2. as necessidades de reservas operativas,
  3. os requisitos de balanceamento,
  4. a necessidade de expansão das redes.

Uma das premissas da Consulta da ERGEG era que não seriam questionados os modelos de cálculo de rede física utilizados pelos operadores de transporte. No entanto, seriam discutidas possíveis atualizações desses modelos de rede de acordo com os novos conceitos e serviços de transporte, juntamente com a necessidade de recálculo regular da capacidade da rede, de requisitos para novos sistemas/softwares, bem como a necessidade de capacitação de pessoal.

 

A relevância da metodologia de cálculo de capacidade

O conceito principal que se pretendia chegar com este debate não era calcular a capacidade em gasodutos individualmente (cálculo baseado em estudos termo-hidráulicos), mas sim calcular a capacidade disponível (CD) dos sistemas interligados em malhas complexas (caso das redes europeias), tendo em conta a plena interação dos fluxos e operações no novo modelo de Entrada e Saída. Para tanto seria preciso discutir processos de cálculo baseados em “cenários de rede” e que estes fossem comunicados de forma transparente ao mercado.

Quanto mais interligadas e enredadas são as redes de transporte de gás, mais interativas se tornam as ações individuais dos usuários e dos operadores, tornando mais complexo e mais sofisticado o cálculo da capacidade. Além disso, a noção de que a reserva de capacidade de transporte por um agente (carregador) significaria a reserva da capacidade física ao longo de uma rota determinada (modelo ‘Ponto-a-Ponto’) estaria longe da nova realidade do modelo de Entrada e Saída, onde a capacidade da rede é gerenciada como um todo sistêmico. Dadas as incertezas de fluxos, seria um erro supor que a CD em qualquer ponto do sistema fosse um número fixo ao longo do tempo.

Assim, suposições ou escolhas feitas durante o processo de cálculo influenciariam bastante o nível de CD a ser oferecido ao mercado. Usualmente, são os Transportadores que propõem e definem as premissas e restrições operacionais para calcular as capacidades disponíveis. Eles têm discricionaridade e flexibilidade na forma como as propõem, porém não significa que tenham informação completa para a tomada de decisão. Os chamados ‘cenários de rede’ envolveriam questões setoriais que vão desde a decisão de nível de segurança e risco de abastecimento, até a probabilidade de eventos no sistema (e.g. evolução futura de oferta e demanda, redirecionamento e localização de fluxos). A diferença de conceito fundamental seria deixar de assumir os fluxos como certos (determinísticos), mas tratá-los como fluxos possíveis (probabilísticos) baseados tanto no histórico da operação quanto em cenários futuros.

De acordo com a ERGEG (2007), na ausência de diretrizes estabelecidas no âmbito europeu, a flexibilidade decisória nas mãos de transportadores individuais levantava preocupações sobre o cálculo adequado de CD nos seguintes quesitos:

  1. garantia de coordenação: não havia diretrizes para a seleção de cenários de rede disponíveis;
  2. alinhamento de objetivos: não havia garantia que o julgamento do operador do transporte estaria alinhado com o objetivo de criar um mercado mais fluido e competitivo;
  3. consistência: não havia garantia de consistência ao longo do tempo e entre as redes europeias;
  4. maximização da capacidade: não havia garantia que o nível de capacidade disponível gerado corresponderia à capacidade máxima do sistema;
  5. transparência e confiabilidade: ausência de transparência quanto a eventuais riscos residuais de interrupção associados às premissas de fluxo utilizadas.

A falta de coordenação no planejamento e operação dos sistemas de transporte poderia gerar efeitos adversos, desde gargalos inter-sistemas (que afetariam as condições de comercialização do gás no mercado) até a necessidade de expansão das malhas de forma sub-ótima.

 

Mas afinal, o que é a capacidade disponível (CD)?

A capacidade de transporte é geralmente definida em unidades de volume por unidades de tempo (e.g. metros cúbicos por dia). De forma simplificada, a capacidade disponível (CD) pode ser descrita como:

Onde:

  • Capacidade Técnica: Capacidade física teórica máxima
  • Margem Operacional: Capacidade necessária para a operação do transporte (de acordo com as políticas de segurança e eficiência estabelecidas)

Apesar de parecerem elementos técnicos rígidos, eles podem variar bastante no tempo e no espaço. Inclusive, a depender de como a capacidade seja contratada ao longo do sistema, estes elementos também irão variar.

Do ponto de vista contratual, normalmente, a CD é ofertada em modalidade firme ou interruptível. Como os fluxos físicos de oferta e demanda na prática variam ao longo do tempo, os contratos de capacidade de transporte precisam versar sobre flexibilidades, penalidades e restrições para atender a volumes que desviam daqueles contratados.

 

Figura 1 – Evolução da Capacidade em um Ponto de Entrada

Fonte: Baseado em ERGEG (2007).

 

A Figura 1 ilustra a complexa dinâmica da capacidade de um ponto de entrada (injeção de gás) ao longo do tempo (do planejamento à operação).

  • a capacidade técnica ou capacidade útil (azul escuro) varia por efeitos de rede,
  • a capacidade nomeada (azul claro) varia de acordo com as necessidades de injeção do carregador desta entrada,
  • a margem operacional (verde) varia de acordo com a política operacional do transportador (assumida constante nesta Figura),
  • a capacidade reservada (preto) muda de acordo com a contratação dos carregadores que podem reservar de maneira diferente (diferentes volumes e durações de contrato)
  • a capacidade operacionalmente disponível (vermelho) representa o quanto está disponível no horizonte de tempo operativo (curto prazo),
  • a capacidade disponível de longo prazo (laranja) é a diferença entre a capacidade técnica menos a margem operacional (de acordo com o cenário de fluxo de rede aplicado), menos a capacidade reservada

Para que o serviço de transporte seja eficiente, o transportador deve oferecer a maior capacidade disponível possível a um nível de segurança adequado.

Desta forma, no horizonte operacional (curto prazo), o operador do transporte deve oferecer capacidade equivalente a ‘capacidade operacionalmente disponível’ (vermelho), normalmente através de produtos de curto prazo.

No horizonte de planejamento (longo prazo), o operador do transporte deve oferecer capacidade firme e de longo prazo equivalente a ‘capacidade firme disponível (longo prazo)’ (laranja) que estará diretamente associada aos cenários de fluxos que forem adotados por ele no cálculo de capacidades. Serão justamente estes cenários de fluxo as premissas utilizadas no cálculo de capacidade que determinarão quanto de CD firme será ofertada.

 

Etapas de cálculo e trade-offs

Resta agora entender como seria o processo de cálculo de capacidades na prática. Suas etapas poderiam ser resumidas da seguinte forma​:

  1. A CD é calculada de acordo com hipóteses de fluxos por área de controle operacional identificada pelo transportador; ​
  2. Cada conjunto de fluxos estabelecido gera um nível diferente de CD;
  3. O Transportador seleciona um conjunto e apresenta o valor simulado como CD;
  4. Essa seleção é baseada nos julgamentos e na política do Transportador.

A lógica geral no Modelo de Entrada e Saída e a relevância da metodologia de cálculo de capacidade podem ser deduzidas por comparação ao Modelo Ponto-a-Ponto. Dessa forma, supondo injeções e retiradas conhecidas em cada ponto e em cada momento, podem ser obtidas as pressões que maximizam a capacidade em cada ponto do sistema. A dificuldade, nesse contexto, é a limitada flexibilidade proporcionada às injeções e retiradas. Portanto, a capacidade oferecida ao mercado seria significativamente limitada, exceto nos casos em que se permita uma considerável flexibilidade temporal. Essa é, portanto, a lógica do Modelo Ponto-a-Ponto.

A transformação implantada no Modelo Entrada e Saída se constrói sobre a ideia de que o gás injetado pode sair em qualquer ponto do sistema. Consequentemente, requer um aumento da flexibilidade para os carregadores.

Seguindo a lógica de otimização do transporte, se a flexibilidade aumenta, o número de potenciais situações e combinações a serem consideradas no cálculo das pressões também aumenta. O que pode levar à diminuição da capacidade. No limite, deveria-se considerar todas as combinações (para cada unidade possível de entrada frente a qualquer ponto de saída, e saídas para qualquer ponto de entrada). O resultado da capacidade calculada dessa forma se torna relativamente pequena, pois se restringiria ao pior cenário.

A CD a ser ofertada irá depender do nível de risco assumido para um dado cenário. Existe portanto um claro trade-off (Figura 2) entre o cenário assumido e a CD. Ou seja, quanto mais conservadoras forem as premissas do transportador (cenário mais restrito): (i) menores as capacidades técnicas, (ii) maiores serão as margens operacionais e (iii) menor será a CD ofertada ao mercado. O contrário é verdadeiro, quanto menos conservador em premissas (cenário menos restrito), maior CD poderá ser ofertada.

 

Figura 2Trade-off da capacidade disponível baseada no tipo de cenário de rede

Fonte: Baseado em ERGEG (2007).

 

O desafio com o Modelo Entrada e Saída é que o “pior cenário” é pouco provável e muito custoso (visto que diminui muito a capacidade disponível). É preciso buscar uma solução entre o modelo tradicional sem flexibilidade e o modelo com flexibilidade extrema (muito pouco provável). O Modelo Entrada e Saída visa exatamente proporcionar essa alternativa, i.e., estimar os fluxos mais prováveis para evitar restrições diretas nos contratos de transporte. Duas opções são possíveis para gerenciar a capacidade limitada:

  • Opção #1: Incluir restrições nas retiradas ou injeções. Como resultado, diminuindo a flexibilidade.
    • O desafio é que não seria compatível com os princípios de Entrada e Saída, pois no limite voltaria-se ao modelo original Ponto-a-Ponto.
  • Opção #2 : Estimar os fluxos mais prováveis, calculando a capacidade “como se” alguns cenários muito desfavoráveis não pudessem acontecer. Permitiria obter capacidade espacialmente flexível.
    • O desafio seria o da habilidade do sistema de corrigir cenários desfavoráveis.

Dentre os elementos a serem considerados para se desenvolver cenários de rede, haverão elementos estáticos (características técnicas da própria rede), elementos dinâmicos (forma com que a rede é utilizada, por exemplo pelos carregadores), restrições operacionais e obrigações contratuais.

O Transportador geralmente têm o melhor conhecimento da física da rede e de sua arquitetura. Porém, a modelagem física do sistema não seria suficiente para calcular seu desempenho. Antes que as capacidades possam ser calculadas, os modelos de rede devem ser alimentados com um grande conjunto de dados e condições relacionadas às condições iniciais e de contorno da rede. Muitos desses parâmetros são exógenos e estão sujeitos a um grau variável de certeza, reforçando a importância de tratar tais informações com os agentes de mercado e o regulador.

 

Recomendações ERGEG e lições para o Brasil

A partir destas constatações quanto a natureza dinâmica e probabilística dos resultados do cálculo da capacidade disponível de transporte a partir de cenários de rede, as principais conclusões trazidas pela ERGEG após a consulta foram:

  1. a necessidade de maior transparência e comunicação quanto ao cálculo da CD nas diversas redes europeias; e
  2. o desenvolvimento de diretrizes de cálculo de capacidade, aprovação pelo regulador de metodologias e premissas principais.

A gestão de risco, critérios de confiabilidade e periodicidade de recálculo foram alguns dos mecanismos de aprimoramento destacados para trazer eficiência ao processo.

No contexto brasileiro de desenvolvimento de mercado, existem muitas variáveis que influenciam a evolução do Modelo de Entrada e Saída e do sistema de transporte no Brasil, e estão fora do controle dos transportadores ao assumir cenários de rede para planejamento e oferta de CD.

Pelo lado das variáveis de oferta e demanda mais relevantes, temos:

  • o declínio da oferta existente (gás boliviano, declínio de campos produtores),
  • a entrada de novas fontes de oferta (nova produção de gás e terminais de GNL),
  • a evolução da demanda industrial, e
  • o nível de despacho das termelétricas a gás natural.

Além destas, existem ainda variáveis relacionadas com a evolução da concorrência por outros energéticos e por alternativas logísticas ao gás que não o transporte (e.g. GNL small scale e instalações desconectadas ao transporte), entre outros.

Neste sentido, seria importante estabelecer procedimentos e diretrizes regulatórias que tragam transparência ao cálculo da capacidade, com algum grau de participação dos usuários do transporte de gás. Com a recente constituição do chamado Conselho de Usuários do Sistema de Transporte, o debate sobre cenários poderá ter um fórum apropriado.

Finalmente, vale destacar que, diferentemente do caso europeu, por tratar-se de uma única jurisdição sob regulação da ANP, o caso brasileiro poderá garantir maior coordenação dos sistemas, consistência e alinhamento quanto aos objetivos de mercado competitivo. Para isto acontecer, e como lição do caso europeu, seria preciso desenvolver diretrizes coordenadas de cálculo e uma maior participação dos agentes.

 

Referências

ERGEG (2007) Calculation of Available Capacities: Understanding and Issues. Public Consultation Paper. C06-CAP-06-03 / E07-PC-20-01. European Regulators’ Group for Electricity and Gas – ERGEG. Disponível em:

https://www.ceer.eu/eer_consult/closed_public_consultations/gas/capacity_calculation#

Tavares, F. B. (2020). Elementos para implantação de sistemas de Entrada e Saída: algumas lições dos mercados europeus. Ensaio Energético, 30 de novembro, 2020.

 

Sugestão de citação: Tavares, F. B. & Vazquez, M. (2023). A importância da metodologia para cálculo da capacidade de transporte de gás natural. Ensaio Energético, 18 de setembro, 2023.

Autor do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ, mestre em Economia e Gestão de Indústrias de Rede pela Universidade de Comillas (Espanha) e Paris Sul XI (França) e Fulbright scholar na Universidade de Columbia (Estados Unidos).

Miguel Vazquez

Consultor independente, pesquisador associado da SDA Bocconi, e Conselheiro na Escola de Regulação de Florença. Doutor em Engenharia Industrial pela Universidad Pontificia Comillas, Madrid, e Engenheiro Industrial pela Universidad Politecnica de Madrid.

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