Ensaio Energético

Geopolítica da transição energética: analisando as implicações da difusão das novas fontes renováveis

As crescentes preocupações sobre a necessidade de conter os impactos da atividade humana sobre o aumento das temperaturas e a mudança nas condições ambientais da terra, vem ganhando espaço entre as decisões de política pública dos governos e as estratégias das empresas. No centro desses esforços, o aumento dos compromissos governamentais com a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) gerados pelas indústrias de energia parecem apresentar sinais de não retorno na decisão de impulsionar a descarbonização das matrizes nacionais de energia. Governos e empresas devem se preparar para administrar as distintas implicações de um processo de transformação que não tem precedentes desde a primeira revolução industrial, dentre elas, as implicações sobre a geopolítica da energia.

De uma discussão monopolizada pela interface entre petróleo, geografia e relações internacionais, a aceleração da descarbonização das matrizes de energia tem o potencial de sacudir as premissas que tinham norteado as análises sobre a geopolítica por mais de um século. Entendendo essas possibilidades, as seguintes linhas buscam analisar as implicações geopolíticas que irremediavelmente deverão vir acompanhadas com o processo de transformação energética. A análise é realizada a partir da comparação dos principais elementos que dominam as correntes teóricas sobre geopolítica da energia na atualidade.

 

1. Uma era que ainda não acabou

Um bom ponto de partida para entender as condições atuais da geopolítica da energia e o escopo das transformações que deverão ocorrer para alcançar as metas de descarbonização, é revisar a importância dos combustíveis fósseis nos dias de hoje (ver Gráfico 1).

 

Gráfico 1. Consumo de energia primária em 2020 (Em exajoules)

Fonte: elaboração própria a partir de BP Statistical Review, 2021.

Como pode-se observar no Gráfico 1, a matriz energética mundial é dominada em mais de 80% por fontes fósseis, e, em 56% só por petróleo e gás natural. Dada a importância dessas fontes para alimentação dos sistemas energéticos, entende-se que a evolução das condições dessas indústrias tem um impacto marcante sobre os indicadores econômicos, a estabilidade política e as preocupações com o meio ambiente em escala global.

Essa posição dominante das fontes fósseis parece estar longe de acabar. Um exemplo para ilustrar a questão pode ser encontrado na evolução e nas projeções da demanda por petróleo para os próximos anos. Entre 2010 e 2019, o consumo de petróleo e outros líquidos passou de 88 mb/d para pouco mais de 100 mb/d, representando um crescimento de 113% durante essa década (BP, 2021). As projeções mais realistas estimam que, nas condições atuais, a demanda por petróleo deverá continuar a crescer pelo menos até meados de 2030 ou depois (IEA, 2021a; OPEP, 2018; BP, 2019).

Dado o peso dos combustíveis, uma das questões mais problemáticas para viabilizar a descarbonização das matrizes energéticas, é o atendimento da infraestrutura de energia existente dependentes dessas fontes, a qual, na maioria dos casos está vinculada a regulações ou termos contratuais de longo prazo (IEA, 2020a). Essas condições representam um dos principais desafios a ser atendido uma vez que os combustíveis fósseis concentram ativos estimados em US$ 25 trilhões, e continuam adicionando um trilhão de dólar em investimentos a cada ano (IRENA, 2019; IEA, 2020b). Por essas razões, espera-se que as características mais dominantes da arquitetura geopolítica moldada ao redor dos combustíveis fósseis possam se manter, inclusive após o atingimento do pico da demanda por petróleo.

 

2. Os principais elementos da geopolítica do petróleo

Nossa definição de geopolítica da energia parte dos conceitos tradicionais, porém tentando adaptá-los ao contexto atual para incluir variáveis que hoje parecem estar ganhando mais relevância. Para os objetivos deste trabalho, aderimos à definição feita por Overland (2019), que define a geopolítica como o estudo da influência da geografia nas relações de poder entre os Estados e as relações internacionais. Essa definição parte de uma ampla perspectiva, com ênfase na importância estratégica dos recursos naturais, sua localização, as rotas de transporte e nos pontos de controle (checkpoints). Com o aumento das preocupações com a crise climática e os crescentes compromissos dos Estados para descarbonizar suas matrizes energéticas, novas variáveis – conhecimento (tecnologia) e as finanças – aparecem como elementos dinamizadores da arquitetura geopolítica que tem governado os sistemas energéticos no planeta por mais de um século.

Durante a era do petróleo a maior parte das análises sobre geopolítica foi influenciada pelas preocupações com o acesso seguro a reservatórios de petróleo para alimentar a atividade econômica e a máquina militar dos Estados (Torres Filho, 2004). Ao ser considerado um recurso escasso por muito tempo, sua distribuição desigual provocou um aumento na relevância dos países e regiões detentores de grandes volumes de reservas. Assim, o controle centralizado das reservas de petróleo se converteu num recurso de poder assimétrico, além de um objeto de competição e interdependência entre os Estados.

Em decorrência disso, o acesso a fontes seguras de abastecimento tem sido uma causa recorrente de tensões e conflitos entre os países – podendo ser, em grande escala, violentos (Colgan, 2013). Nessa realidade, ao ser uma indústria em rede, organizada numa longa cadeia produtiva que vai do poço ao posto, e operando num mercado globalmente integrado, a indústria petrolífera é vulnerável a qualquer evento que possa afetar algum dos elos da cadeia produtiva, principalmente nas principais regiões produtoras. Portanto, qualquer situação que possa se constituir num risco sobre a continuidade do suprimento desse energético tem o potencial de impactar no comportamento dos principais indicadores desses mercados (preços) nas distintas latitudes do planeta (ver Gráfico 2).

 

Gráfico 2. Evolução do comportamento dos preços do petróleo em série histórica (USD por barril)

Fonte: Refintiv/FT, apud. Valor Econômico, 2022.

 

Por essa razão, tem existido uma preocupação por parte dos maiores países consumidores em preservar o fluxo ininterrupto do comércio de petróleo através do apoio militar em regiões de grande relevância geopolítica e propensas a tensões, com é o Oriente Médio. Essa preocupação também se estende para áreas geográficas que abrangem as rotas de navegação por onde circulam grandes volumes desse energético, e são mais suscetíveis a eventos capazes de provocar interrupções à sua circulação.

Do lado dos países produtores, a relevância desses recursos tem-lhes fornecido grande capacidade de influência no sistema internacional. Isso tem sido possível tanto pela capacidade de afetar a estrutura de oferta – usando esses recursos como arma política, ou, simplesmente por maximizar suas receitas -, quanto pela utilização das rendas auferidas por essas atividades para financiar seus planos de projeção internacional (Clavijo e Almeida, 2020). A competição pelo controle de fatias de mercado entre os países produtores, atendendo interesses econômicos, políticos ou até religiosos, também é uma constante no mercado internacional de petróleo, principalmente em contextos de sobreoferta desse energético. Países com custos de produção menores, utilizam essa vantagem em períodos de preços baixos para tirar do mercado aqueles concorrentes com estrutura de custos mais elevados (Almeida et al. 2016).

Para países importadores, que aglutinam 80% da população mundial, essa situação de dependência deixa-os em condição de grande vulnerabilidade perante os períodos de volatilidade de preços e pela possibilidade de interrupções na oferta desse energético decorrentes da instabilidade política, conflitos armados ou ataques terroristas nos países produtores. A necessidade de importar petróleo também coloca um peso elevado no balanço comercial de alguns países consumidores, gerando impactos sobre o crescimento econômico, a inflação, e outros indicadores macroeconômicos (IRENA, 2019).

Apesar de não deter tanta relevância, a capacidade tecnológica e produtiva aplicada ao fornecimento de equipamentos e serviços para esta indústria também aparece como um driver de mudanças na geopolítica petrolífera. Isso tem sido possível, graças à possibilidade de viabilizar o desenvolvimento de reservatórios com características geológicas e geográficas mais desafiadoras, introduzir flexibilidade na indústria do gás natural.

Nas últimas décadas, o desenvolvimento de distintas soluções tecnológicas permitiu a vários países reduzir sua vulnerabilidade externa através da viabilização de projetos de exploração e produção de petróleo em áreas não convencionais, tais como os reservatórios de tight oil e shale gas nos Estados Unidos, areias betuminosas no Canadá, e águas profundas e ultra profundas no Brasil. No campo do gás natural, a difusão das tecnologias de liquefação tem permitido introduzir novos ganhos de flexibilidade no setor, e a diversificação das fontes de abastecimento desse recurso mais além do comércio via gasoduto com países geograficamente mais próximos (Almeida et al. 2016).

Igualmente, a restrição no acesso a essas tecnologias têm sido um dos instrumentos adotados pelos países detentores desses recursos de poder para buscar mudanças de comportamento de países produtores de petróleo e gás natural através de sanções setoriais. Os casos mais notórios para exemplificar essa questão tem sido as experiências recentes de imposição de sanções ao Irã, Rússia e Venezuela (Clavijo e Almeida, 2020).

 

3. A esperança nas fontes renováveis: um longo caminho por trilhar

Contudo, apesar do elevado valor energético e competitividade dos combustíveis fósseis, a necessidade de atender a crise climática e atenuar o impacto de fenômenos como a invasão russa à Ucrânia sobre a estabilidade dos mercados de energia, podem acelerar os esforços de descarbonização das matrizes energéticas, e, com isso, acelerar a mudança na arquitetura da geopolítica.

Os crescentes compromissos políticos, e a difusão competitiva de tecnologias de energia de baixo carbono, principalmente as renováveis não despacháveis, mostram sinais de uma mudança em curso ganhando cada vez mais força. Nesse processo, é possível identificar uma tensão entre os atores associados ao regime sociotécnico hoje dominante – dos combustíveis fósseis -, e aqueles apoiadores de um novo, relacionado com uma nova constelação de tecnologias que ainda se encontra em processo de construção. Se bem-sucedido, os esforços por reduzir as emissões de GEE podem fazer que, nas próximas décadas, os elementos da geopolítica do petróleo passem a conviver com as implicações da difusão das energias limpas em grande escala.

Apesar da participação das fontes renováveis na matriz energética mundial ainda ser pequena – 13% da demanda mundial de energia primária (BP, 2019) – os ganhos de competitividade da energia solar e eólica, tem permitido uma difusão cada vez mais rápida. De acordo com dados da BP (2021), a capacidade instalada de geração a partir das novas fontes renováveis passou de 761,2 TWh em 2010 para 3.747 TWh em 2020, o que representa um crescimento de quase 500% durante esses onze anos. Entre as razões desse bom desempenho, encontra-se a impressionante redução dos custos de geração a partir dessas fontes. De acordo com dados da IRENA (2020), entre os anos 2010 e 2020, os custos de geração em grande escala caíram 85% no caso da energia solar, 56% no caso da energia eólica onshore, e 48% no caso da energia eólica offshore (ver Gráfico 3).

 

Gráfico 3. Custo Médio Global Ponderado de Eletricidade (LCOE) de tecnologias de geração de energia renovável em escala de utilidade recentemente comissionadas, 2010-2020

Fonte: IRENA, 2020.

 

No entanto, para que a eletrificação como alternativa aos combustíveis fósseis seja viável, é preciso superar os entraves criados pela intermitência das fontes renováveis variáveis. Com esse intuito, distintas opções tecnológicas vêm aparecendo como opções para servir como fontes de backup, trazendo flexibilidade e segurança aos sistemas de energia. Assim, tecnologias complementares vêm obtendo ganhos de competitividade para exercer essa função no setor elétrico – sistemas de armazenamento a baterias e a introdução de tecnologias digitais, por exemplo -, e para descarbonizar setores de difícil abatimento como o setor industrial e transporte – soluções a hidrogênio e biocombustíveis avançados (Almeida et al., 2019).

Dessa forma, com o avanço da solução da emergência climática, a partir de uma maior difusão das tecnologias na escala necessária para atingir as metas de descarbonização, o conhecimento sobre a dinâmica dessas fontes de energia pode orientar a análise sobre as implicações geopolítica decorrentes de essa mudança.

 

4. A nova geopolítica da energia: discutindo mudanças possíveis

A difusão das novas tecnologias de baixo carbono está alterando as formas de gerar e distribuir energia, de operar os sistemas energéticos, e, também, o papel tradicional que os produtores e os consumidores vinham exercendo por mais de um século. Esse processo, inevitavelmente, está gerando a construção e expansão de novas cadeias produtivas com uma dinâmica e organização distinta daquelas associadas aos combustíveis fósseis (WEC, 2019). Em decorrência disso, a penetração das energias renováveis nas indústrias de energia tem o potencial de reconfigurar a relevância dos espaços geográficos, dos recursos naturais, e a influência de determinados Estados no sistema internacional (IRENA, 2019).

Uma mudança radical advinda com a reconfiguração da geopolítica da energia está relacionada com a relevância dos recursos. Países autossuficientes na geração de energia, reduzem substancialmente suas preocupações relacionadas com escassez de recursos, salvo no caso dos minerais críticos necessários para a fabricação dessas tecnologias (Vakulchuk et al. 2020).

A nova dinâmica imposta pela eletrificação também reduz parcialmente a importância da localização geográfica, relacionado a proximidade entre os centros de produção e os mercados de consumo. No caso das fontes renováveis não despacháveis, solar e eólica, é mais provável que a energia possa ser produzida e comercializada em mercados locais ou regionais, devido às dificuldades e aos elevados custos de transporte em longas distâncias. Nesse sentido, a eletrificação tem o potencial de reduzir, porém não acabar, com os riscos decorrentes da necessidade de importar (IRENA, 2019; Bordoff e O’Sullivan, 2022).

A introdução massiva das novas renováveis teria o potencial de reduzir as preocupações com a segurança no abastecimento. Ao reduzir a necessidade de importar recursos, também reduz a vulnerabilidade externa e a possibilidade da ocorrência de conflitos associados a energia entre os Estados. Nesse sentido, a nova dinâmica das energias renováveis oferece a possibilidade de reduzir a assimetria de poder entre os Estados em termos de poder de mercado, baseada na instrumentalização da energia como recurso de poder no sistema internacional.

No entanto, a difusão dessas novas fontes também vem criando outras formas de competição por poder e influência entre os Estados capazes de serem os drivers das futuras tensões e conflitos associados à energia. Uma delas está associada a competição por liderar o desenvolvimento das novas tecnologias de geração de energia de baixo carbono. O interesse por atingir ou manter a liderança tecnológica no setor responderia a três objetivos principais: (i) reduzir as emissões de GEE para cumprir com os compromissos internacionais fixados a partir do acordo de Paris; (ii) aproveitar a onda de novos negócios associados à contenção da emergência climática para impulsionar o desenvolvimento econômico nacional; e (iii) construir recursos de poder nos mercados de energia a partir da definição dos padrões globais nas especificações de equipamentos, desenvolvimento de infraestrutura e normas de certificação dessas tecnologias. Dessa forma, o país líder no desenvolvimento de inovações também adquire a capacidade de favorecer a difusão de seus produtos e a criação de barreiras concorrenciais (Bordoff e O’Sullivan, 2022).

Visando atingir os objetivos anteriormente descritos, países e regiões vem aumentando seus esforços de desenvolvimento de capacidade tecnológica e produtiva local. A China tem sido destaque pelos resultados alcançados a partir da implementação de políticas industriais nas últimas década, e levantando preocupações em outras potências tecnológicas que também almejam a liderança nesse setor (Allison et al., 2021) (ver Figura 1).

 

Figura 1. Composição das cadeias produtivas para o desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono específicas

Fonte: Nakano, 2021.

 

A Figura 1 apresenta a participação de países e regiões nas cadeias de produção de baterias, usinas eólicas e painéis fotovoltaicos. Nela é possível visualizar a dominância que a China exerce sobre as distintas etapas da produção desses equipamentos. Visando reverter a vantagem chinesa, está ocorrendo uma retomada na implementação de pacotes de política industrial em distintos países do globo. Entre os instrumentos adotados, observa-se o aumento do financiamento de atividades de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), políticas de proteção da indústria local, tais como, subsídios aos produtores locais de equipamentos e até a imposição de barreiras à entrada de produtos estrangeiros, principalmente chineses (Nakano, 2021; Bordoff e O’sullivan, 2022).

Associado ao desenvolvimento da capacidade tecnológica, um elemento de crescente preocupação nas discussões sobre segurança energética está relacionado às novas vulnerabilidades decorrentes da incorporação de tecnologias digitais para a gestão dos sistemas de energia. A crescente adoção de tecnologias digitais para gerir os sistemas de energia tem deixado o setor suscetível à ocorrência de ataques cibernéticos. Exemplos de ataques cibernéticos ocorreram no sistema elétrico ucraniano em 2016, e, ano passado, nos Estados Unidos com a paralização do Colonial Pipeline (Zetter, 2016;e Político, 2021).

Outro elemento de conflito na nova geopolítica das energias renováveis está relacionado à competição pelo acesso e controle aos minerais críticos necessários para a fabricação dessas novas tecnologias.

Diferentes dos combustíveis fósseis, as novas renováveis são intensivas em recursos minerais. De acordo com estimativas da Agência Internacional de Energia (2021b), desde 2010 a demanda por minerais para o setor aumentou em 50%, puxada pela necessidade de insumos para a fabricação de tecnologias de energia de baixo carbono. Projeções até 2040 da mesma agência, estimam que essa demanda deve duplicar ou quadruplicar dependendo da velocidade dos esforços nacionais de descarbonização. Dessa forma, a capacidade de garantir um fornecimento adequado de recursos minerais é elemento chave para o desenvolvimento dos equipamentos necessários para impulsionar a transição com custos acessíveis.

A grande concentração da produção de minerais críticos em poucos países produtores, e, o baixo nível de desenvolvimento das estruturas de mercado existentes para a comercialização de alguns recursos, passa a ser um fator de risco (ver Gráfico 4).

 

Gráfico 4.  Participação dos três principais países produtores na produção total de minerais e combustíveis fósseis selecionados, 2019

Fonte: IEA, 2021b.

 

Como se observa no Gráfico 4, na atualidade, mais de 50% da produção dos cinco principais tipos de minerais críticos concentra-se num país só. Essa característica traz à tona as preocupações dos Estados com a segurança no abastecimento. Soma-se outros riscos sobre a possibilidade de garantir um fornecimento estável desses recursos, associados a incapacidade de alguns países produtores garantir condições de governança adequadas para a gestão das atividades de extração desses minerais (Clavijo, 2021).

No atual contexto de competição pela liderança global, a dominância chinesa sobre as cadeias de extração e refino de alguns desses recursos é um elemento de preocupação para os Estados Unidos e outros países consumidores. A situação tem incentivado a adoção de estratégias para diversificar as fontes de abastecimento – é o caso da União Europeia, o Reino Unido, Japão, Austrália, entre outros (Nakano, 2021). E a preocupação não é infundada. Em 2010, a China embargou as exportações de terras raras para o Japão em decorrência das tensões provocadas pela disputa territorial que ambos os países mantêm sobre as ilhas Senkaku, e, recentemente passou a impor controles as exportações visando sua reorientação para satisfazer a demanda interna.

Dessa forma, ao ocupar um papel de destaque na nova onda de inovações tecnológicas que está experimentando a economia mundial, a fabricação de tecnologias de energia também tem se convertido num dos principais espaços de disputas pelo poder no sistema internacional.

 

5. Os vencedores e os perdedores

O processo de transformação energética claramente mudará o poder e a influência de distintos Estados no sistema internacional, marcado pela dominância dos combustíveis fósseis.

Entre os vencedores, figuram os países líderes no desenvolvimento de capacidade tecnológica que norteará a condução dos esforços de descarbonização das matrizes de energia, assim como, os países detentores de reservas dos minerais críticos necessários para a produção desses equipamentos. Na primeira categoria, entre os países e regiões beneficiárias aparecem a China, os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão.

Igualmente, países com grande dotação de minerais estratégicos devem ganhar relevância geopolítica nos próximos anos. Países como a Bolívia, Chile e Argentina, destacam-se pelas reservas de lítio. Enquanto Indonésia, Austrália, Brasil e Rússia figuram como maiores detentores de reservas de níquel.  China, Vietnã e Brasil aparecem com as maiores reservas de terras raras. Dessa forma, é possível observar como o mapa geopolítico deve mudar no relativo à importância dos recursos naturais.

Entre os perdedores, sem dúvida figuram os países produtores de petróleo. Na disputa entre as grandes potências globais, a Rússia certamente será o Estado mais afetado, uma vez que boa parte dos recursos do país dependem da exportação de matérias primas, principalmente petróleo. A Rússia instrumentaliza seu poder de mercado nas indústrias de petróleo e gás natural para influenciar a ordem internacional (Rouvinski, 2020).

Em suma, os Estados mais afetados são aqueles que se encaixam na categoria de Petro-Estados. Ao manter uma dependência econômica excessiva nas atividades de produção de petróleo, um eventual declínio da demanda por esse energético pode levar esses países a sofrer situações de crise econômica acompanhadas de forte instabilidade política, com possíveis reverberações para além das fronteiras (IRENA, 2019). Em alguns casos, discute-se a possibilidade de que essa mudança radical nas condições econômicas, possa dar lugar a processo de democratização em regiões produtoras, como o Oriente Médio (Vakulchuk et al. 2020).

O impacto não deverá ser igual para todos os Petro-Estados. Alguns deles já se encontram implementando planos visando a diversificação das suas economias – Catar, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Oman, entre outros -, ou traçando estratégias para estender a monetização de seus recursos fósseis (IRENA, 2019). Nesse quesito, a aposta em recursos não convencionais, que o tempo de duração dos projetos é mais curto, e no gás natural, pela maior pureza no processo de combustão, figuram como alternativas que estão sendo contempladas. Associada ao aproveitamento das reservas de gás natural, países como Japão e Arábia Saudita apostam no desenvolvimento de hidrogênio azul junto com a adoção de tecnologias de captura e armazenamento de carbono para reposicionar seu papel no setor de energia.

 

6. Referências

Allison, G.; Klyman, K.; Barbesino, K.; Yen, H. (2021). The Great Tech Rivalry: China  vs the U.S. Belfer Center for Science and International Affairs Harvard Kennedy School.

Almeida, E.; Losekann, L.; Prade, Y.; Nunes, L.; Botelho, F. (2016). CUSTOS E COMPETITIVIDADE DA ATIVIDADE DE E&P NO BRASIL. Texto da discussão. Disponivel em: https://www.ibp.org.br/personalizado/uploads/2016/07/TD-custosecompetitividade.pdf.

Almeida, E.; Losekann, L.; Clavijo, W. (2019). Enfrentando os Desafios Técnicos e Econômicos da Transição Energética: Lições da Experiencia Brasileira. ISPG Energy Journal, n2.

Bordoff, J.; O’Sullivan, M. (2022). Green Upheaval: The New Geopolitics of Energy. Foreign Affairs. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/world/2021-11-30/geopolitics-energy-green-upheaval.

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Clavijo, W.; Almeida, E. (2020). A Venezuela na geopolítica do petróleo norte-americana:  uma análise à luz das novas realidades do mercado. OIKOS, v 19, n. 1, p. 68-88.

Clavijo, William (2021). Implicações geopolíticas do processo de transformação energética: analisando o impacto da demanda por minerais críticos. Blog Infopetro. Disponivel em: https://infopetro.wordpress.com/2021/09/23/implicacoes-geopoliticas-do-processo-de-transformacao-energetica-analisando-o-impacto-da-demanda-por-minerais-criticos/.

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Sugestão de citação: Vitto, W. A. C. (2022). Implicações geopolíticas do processo de transição energéticaEnsaio Energético, 15 de março, 2022.

Autor do Ensaio Energético. Cientista Político pela Universidad Católica del Táchira (Venezuela), mestre e doutor em Políticas Públicas, Estratégias e desenvolvimento (PPED), pela UFRJ. Especialista em Análise Econômica e Sustentabilidade no Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (IBP).

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