Ensaio Energético

Biogás de resíduos da pecuária: uma comparação do caso da Califórnia e de Minas Gerais

Califórnia e Minas Gerais são grandes estados produtores de biogás em seus países. Em particular, os dois são os estados com maior número de plantas de biogás que utilizam resíduos da pecuária, principalmente, dejetos de gado leiteiro e dejetos de suínos. Apesar desta similaridade, o perfil da produção e uso do biogás são bem distintos entre cada um deles.

Este artigo compara a atual indústria do biogás entre os dois estados identificando os motivos que explicam o maior foco da produção de biometano no caso da Califórnia e o maior foco em eletricidade em Minas Gerais. Além do perfil de produção de cada estado, as regulações voltadas para energias renováveis, as políticas de fomento de energias renováveis e a facilidade de acesso à infraestrutura são avaliados.

A principal conclusão é que, na Califórnia os programas de fomento aos biocombustíveis, Renewable Fuel Standard (RFS), federal, e Low Carbon Fuel Standard, (LFCS), estadual, são fatores determinantes pela opção do biometano. Em Minas Gerais, o sistema de compensação de energia e a falta de infraestrutura de gás natural são os determinantes pela opção por geração elétrica.

Este artigo torna-se mais relevante uma vez que o Estado de Minas Gerais estuda aumentar a produção de biogás e, em particular, a produção de biometano com o avanço da Política Estadual do Biogás e do Biometano (PL 5.240/2018). Em julho, a FIEMG lançou o documento “Proposta de Fomento à Produção de Gás Natural Renovável em Minas Gerais” que apresenta o mapa de biogás do estado e sugestões de regulação e de políticas necessárias para avançar o mercado.

Barreiras para a produção de biogás de dejetos animais

A produção de biogás a partir do uso de dejetos de animais possui diversos benefícios ambientais e econômicos, incluindo a geração de energia, a redução de emissão de gases de efeito estufa (GEE) e uma solução para o tratamento de dejetos.

Na produção de gado leiteiro e de suínos o trato com os dejetos varia de acordo com o tamanho da produção e a localidade da criação dos animais. Todavia, em grandes produções, costuma-se gerenciar os dejetos usando sistemas de coleta de descarga usam grandes volumes de água para coletar e remover o esterco dos currais e das salas de ordenha. Em seguida, o esterco é encaminhado para lagoas ou esterqueiras onde, sem o devido tratamento, são fontes de emissão de metano (EPA, 2022).

Nestas condições, a aplicação de sistemas de produção de biogás é uma possibilidade para a captura de metano e produção de energia. Porém, a realização dos investimentos necessários encontra uma série de barreiras que, principalmente para pequenos produtores, inviabilizam os projetos.

A principal barreira são os elevados custo de capital necessários para implementar um projeto de geração de eletricidade ou de produção de biometano. Biodigestores, geradores e purificadores são investimentos caros que, muitas vezes, precisam ser adaptados às condições de oferta das matérias-primas (EPA, 2022).

Outro ponto é a necessidade de contratação de mão-de-obra em bases quase diárias e com algum grau de qualificação para a operação dos equipamentos e para o cumprimento de exigências técnicas de qualidade dos produtos. Tanto o biometano quanto a eletricidade são produtos regulados que necessitam atingir níveis mínimos qualidade de injeção (EPA, 2022).

Pequenos pecuaristas tipicamente possuem dificuldades de acesso ao capital necessário para realizar os investimentos. Mesmo que os benefícios da produção de biogás sejam conhecidos, como a captura de metano e redução da geração de odores, há a necessidade de criação de meios de monetização dessas externalidades e subsídios, para que viabilidade econômica seja alcançada. No restante do artigo, exemplos de políticas e regulações que possibilitaram o avanço do biogás em diferentes regiões serão apresentados.

 

Perfil da produção na Califórnia e em Minas Gerais

Segundo base de dados da EPA (EPA, 2022), há na Califórnia 83 usinas de biogás que utilizam dejetos animais, todas com base dejetos de gado leiteiro. A produção média de biogás das usinas é de 5,7 Mm³/dia e a média de cabeças de gado leiteiro por unidade é de 6 mil [1].

Quanto ao uso do biogás, o principal destino é a purificação e posterior produção de biometano. Como o Gráfico 1 mostra, 67% das plantas de biogás são dedicadas à produção de biometano e apenas 18% dedicadas à geração de eletricidade. Dentro de mistas há 3 usinas que produzem eletricidade e biometano e 2 usinas que produzem biometano e energia térmica.

 

Gráfico 1- Principais uso do biogás nas plantas da Califórnia

Fonte: elaboração própria com dados da EPA (2022).

Das plantas que produzem biometano, 61% distribuem o biometano pelas distribuidoras e o distribui por GNC, como é exibido no Gráfico 2.

 

Gráfico 2- Distribuição do biometano pelas plantas da Califórnia

Fonte: elaboração própria com dados da EPA (2022).

Há 2 distribuidoras de gás natural na Califórnia, a SocalGas, com 17 usinas conectadas, e a PG&E com 20 usinas. A SocalGas é um caso interessante pois trata-se da maior distribuidora de gás natural dos EUA e, em 2021, distribui pela sua rede aproximadamente 1 MMm³/dia de biometano, considerando aqui produção de outras fontes. A distribuidora tem a meta de distribuir cerca de 20% de biometano do total de suas operações até o ano de 2030[2].

Por fim, é interessante que na Califórnia, nos EUA como um todo, há a existência de três tipos de produção. A produção em de fazendas individuais, onde um produtor individual é responsável pela produção (81 plantas na Califórnia e 319 nos EUA), a produção centralizada, onde os dejetos de várias fazendas são canalizados para um grande biodigestor centralizado (1 planta na Califórnia e 14 nos EUA) e a produção de multi-fazendas, onde os biodigestores são descentralizados e o biogás é canalizado para um purificador centralizado (1 planta na Califórnia e 16 nos EUA).

Minas Gerais, segundo dados da Abiogás, conta com 243 plantas de biogás com uma capacidade média de 0,9 Mm³/dia (Abiogás, 2022). Considerando fatores de conversão presentes no Relatório ABiogás (2020), em média, cada unidade produtiva teria cerca de 488 cabeças de vaca leiteira  (Abiogás, 2020).

Quanto ao uso do biogás, pelo gráfico 3, observas se que 238 plantas (97% do total) produzem eletricidade. Apenas uma planta, segundo a Abiogás, produz biometano.

 

Gráfico 3- Principais uso do biogás nas plantas em Minas Gerais

Fonte: Elaboração própria com dados da Abiogás (2022).

Com dados da Aneel, identifica-se que a maior parte das usinas e da capacidade instalada em Minas Gerais, são de geração distribuída (GD). A Capacidade média instalada por planta de geração centralizada é de 0,45 MW e a de geração distribuída é de 0,11 MW (Aneel, 2022) (Aneel, 2022). A proporção de GD e GC pode ser vista no gráfico 4.

 

Gráfico 4- Categorias das plantas de geração em Minas Gerais

Fonte: Elaboração própria com dados Aneel (2022).

Comparando os dois casos, Califórnia e Minas Gerais, observam-se profundas diferenças sendo as mais marcantes a diferença no uso do biogás, preferencialmente biometano na Califórnia e eletricidade em Minas gerais. Outra grande diferença é o tamanho médio das usinas, havendo na Califórnia plantas bem maiores de biogás.

 

Incentivo ao biogás e ao biometano na Califórnia e no Biometano

Incentivos ao biometano

Na Califórnia, há dois grandes programas de incentivo que premiam o atributo verde do biometano e geram créditos aos produtores que podem ser comercializados. São os casos do Renewable Fuel Standard (RFS) e o Low Carbon Fuel Standard (LCFS). No Brasil, o Renovabio é o programa de incentivo aos biocombustíveis responsável por gerar créditos aos produtores.

O RFS é um programa federal de incentivo ao uso de biocombustíveis que estipula metas crescentes de biocombustíveis que devem ser misturados aos combustíveis fósseis. Ele estipula metas para diferentes categorias de biocombustíveis que variam de acordo com o índice de carbono[3]. Pelo programa, a cada unidade de biocombustível produzido é associado um crédito (RIN) específico à categoria que ele pertence[4].

No caso do biometano, ele se enquadra da categoria biocombustível celulósico e portanto, cada unidade produzida gera um RIN D3 com preço estabelecido por condições de mercado. Cada m³ de biometano geram cerca de 0,43 RIN (Von Wald, Stanion, Rajagopal, & Brandt, 2019).

O LCFS é um programa do estado da Califórnia que estabelece metas de descarbonização para setores regulados. Empresas destes setores geram créditos de carbono quando descarbonizam além de suas metas. Empresas que não batem as metas podem bater as metas comprando créditos no mercado de carbono. O produtor de biometano pode precificar sua molécula com base no poder de descarbonização. Cada MJ de biometano produzido, há uma redução média de 263 g de CO2e, isto é, produzir biometano reduz o carbono na atmosfera (Von Wald, Stanion, Rajagopal, & Brandt, 2019).

No Brasil, o Renovabio é um programa onde os produtores de biocombustíveis geram créditos Cbios por unidade produzida e pela intensidade de carbono. Estes CBios devem ser comprados pelas distribuidoras, partes reguladas, para baterem as metas de descarbonização (1 CBIO = 1 Ton CO2e).  Atualmente, há três usinas de biometano cadastradas no Renovabio e nenhuma delas é de Minas Gerais (ANP, 2022). A GNR fortaleza, no estado do Ceará, é a única a injetar o biometano em gasoduto e, segundo dados da ANP, cada m³ produzido pela empresa gera cerca de 0,0029666 Cbios (ANP, 2022).

O gráfico 5 compra o prêmio pago nos diferentes mercados ao m³ de biometano.

 

Gráfico 5- Preço pago pelo m³ de biometano nos diferentes mercados regulados

Fonte: elaboração própria com dados da EPA, da ANP, B3 e CARB.

Os programas apresentados impactam diretamente na viabilidade das plantas de biometano ao separa ao permitir que o atributo ambiental seja desassociado da molécula e gerar receita extra com a venda de créditos.

 

Incentivos à geração distribuída

Tanto no Brasil quanto na Califórnia há um sistema de compensação para geração distribuída. Por meio desse sistema, produtores de eletricidade de fontes renováveis com capacidade instalada de até 5MW (esse limite vale para o Brasil e para a Califórnia) possam compensar energia gerada em outras unidades consumidoras ou em meses subsequentes.

Sistemas de geração distribuídas tornam-se vantajosos quando o preço da eletricidade em mercados cativos, isto é, o preço da eletricidade ofertada pelas distribuidoras, são elevados e/ou há algum subsídio tributário ou regulatório.

Minas Gerais é, no Brasil, o único estado que aplica isenção de ICMS em todas as modalidades de geração distribuída e em todas as faixas de potência. Não à toa, Minas Gerais, é o estado com maior capacidade de GD do Brasil.

 

Infraestrutura de gasodutos entre os estados

Nos EUA, infraestruturas para gás natural são bem mais difundidas. A figura 2 apresenta apenas a malha de gasodutos na Califórnia e a localização de hubs de comercialização presentes no estado.

 

Figura 1- Malha de transporte e hubs de comercialização na Califórnia

Fonte: elaboração própria.

Além de possuir uma malha de gasodutos de transporte que liga ponta a ponta do estado, a existência de hubs de comercialização revela que o mercado de gás natural no estado é muito líquido, havendo a possibilidade de compra e venda de gás natural e biometano diariamente no mercado spot. Para produtores ou consumidores de biometano, mercado spot de gás natural é um importante instrumento de flexibilidade pois permite que os agentes lidem com a intermitência da produção. Vale aqui lembrar que o biometano, apesar de ser substituto do gás natural, é um biocombustível e, portanto, sofre com a intermitência na produção.

Interessante que na Califórnia há uma política de incentivo a conexão de plantas de biometano da rede de distribuição. Pelo Decreto 39 de 2020, há um subsídio de até 50% dos custos de interconexão de plantas de biometano a rede de distribuição. O incentivo está limitado a US$ 3 milhões por projeto ou a US$ 5 milhões para clusters de plantas de biometano de resíduos de gado (três ou mais plantas)[5].

Outro diferencial dos EUA é a existência de enorme capacidade de estocagem de gás natural, o que oferece maior flexibilidade ao sistema e possibilidade de escoamento de produção mesmo em situações de sobreoferta. A figura 2 mostra o nível de estoques por região nos EUA. Na região do pacífico, onde se encontra a Califórnia, o nível de estoque atual é de 243 bilhões de pés cúbicos (cerca de 19 MMm³/dia)[6] .

 

Figura 2- Estoques de gás natural nos EUA (até dia 19 de agosto de 2022)

Fonte: EIA (2022).

A figura 3 apresenta o mapa de Minas Gerais e a malha de gasodutos de transporte e de distribuição presente no estado. Ele confronta e infraestrutura existente com a localização da produção de gado leiteiro e usinas de etanol (também potenciais fontes de substrato para biogás).

 

Figura 3- Malha de gasodutos e usinas de biogás de minas gerais

Fonte: elaboração própria.

Pela figura 3 fica evidente que a malha de gasodutos de Minas Gerais é limitada e distante das regiões com maior concentração de usinas de biogás e das regiões com potencial de produção. Além disso, o mercado de gás natural no Brasil encontra-se em processo de liberalização não havendo possibilidade de contratação de gás natural de forma rápida e flexível para atender as variações de oferta e demanda. Não há também estoques de gás natural no Brasil.

 

Discussões finais

Apesar da Califórnia possuir menos plantas de biogás de dejetos de animais que Minas Gerais, o primeiro conta com plantas de médio e grande porte e com a produção voltada para purificação do biogás em biometano. A opção pelo biocombustível se justifica pelos elevados prêmios pagos ao biometano de resíduos da pecuária que possuem emissões negativas.

Destaca-se que os prêmios pagos pelo biometano não são subsídios pois trata-se de remuneração pelo serviço ambiental que o biometano provê ao capturar carbono da atmosfera e evitar emissão dos combustíveis fósseis. Os valores elevados observados no RFS são determinados por mercado, ou seja, não foram pré determinados pelo governo. Outro ponto, a categoria que o biometano se enquadra no RFS, biocombustível celulósico, possui mandato de mistura muito pequeno, apesar de crescente, em relação ao tamanho do mercado de combustíveis portanto, o cumprimento da meta de descarbonização impacta muito pouco no preço final dos combustíveis.

Além dos prêmios, o mercado de gás natural nos EUA é líquido e com elevada capacidade de estocagem, ou seja, capaz de absorver excesso de oferta e complementar déficits de produção, e possui ampla malha de gasodutos, o que facilita a conexão de novas plantas.

Minas Gerais, por sua vez, possui infraestrutura limitada de gasodutos e distante dos principais polos produtores de biogás. A opção pela geração distribuída deve-se a existência abundante de matérias-primas, fácil acesso às redes de distribuição de eletricidade e subsídios presentes no sistema de compensação.

Importante destacar que a Califórnia também possui um sistema de compensação de eletricidade, todavia, a opção por biometano deve-se aos elevados prêmios pagos pelos mercados regulados de carbono e a facilidade de acesso às infraestruturas de gás natural.

 

Bibliografia

Abiogás. (2020). O Potencial Brasileiro de Biogás. Fonte: https://abiogas.org.br/wp-content/uploads/2020/11/NOTA-TECNICA_POTENCIAL_ABIOGAS.pdf

Abiogás. (2022). Biogásmap. Fonte: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiODc2NThhOGItOTc2Ny00ZDc1LWI5MT

MtYjYwZTRlYjFiOWQ3IiwidCI6ImMzOTg3ZmI3LTQ5ODMtNDA2Ny1iMTQ2L

Tc3MGU5MWE4NGViNSJ9&pageName=ReportSection6ed365e9760a3c113b0d

Aneel. (2022). Relação de empreendimentos de Geração Distribuída. Fonte: https://dadosabertos.aneel.gov.br/dataset/relacao-de-empreendimentos-de-geracao-distribuida

Aneel. (2022). SIGA – Sistema de Informações de Geração da ANEEL. Fonte: https://dadosabertos.aneel.gov.br/dataset/siga-sistema-de-informacoes-de-geracao-da-aneel

ANP. (2022). Painel Dinâmico de Certificações de Biocombustíveis RenovaBio. Fonte: https://www.gov.br/anp/pt-br/centrais-de-conteudo/paineis-dinamicos-da-anp/paineis-dinamicos-do-renovabio/painel-dinamico-de-certificacoes-de-biocombustiveis-renovabio

EPA. (2022). Anaerobic Digestion on Dairy Farms. Fonte: https://www.epa.gov/system/files/documents/2021-09/anaerobic_digestion_on_dairy_farms.pdf

EPA. (2022). Livestock Anaerobic Digester Database. Fonte: https://www.epa.gov/agstar/livestock-anaerobic-digester-database

Von Wald, G., Stanion, A., Rajagopal, D., & Brandt, A. (2019). Biomethane addition to California transmission pipelines: Regional simulation of the impact of regulations. Applied Energy.

 

Notas

[1] A média de produção de biogás utilizou uma amostra de 11 plantas e a média de cabeças de vacas uma amostra de 47 plantas. Os dados originais de biogás estavam em pés cúbicos/dia

[2] https://www.sempra.com/2021-brings-more-renewable-natural-gas-socalgas-pipelines

[3] As categorias são biocombustível tradicional (20% de redução de gee), Diesel verde (50% de redução de gee), Biocombustível Celulósico (60% de redução de gee) e Biocombustível avançado (50% de redução de gee).

[4] https://www.epa.gov/renewable-fuel-standard-program/renewable-identification-numbers-rins-under-renewable-fuel-standard

[5] https://www.socalgas.com/sustainability/renewable-gas/biomethane-monetary-incentive-program

[6] https://www.eia.gov/naturalgas/storage/dashboard/

 

Sugestão de citação: Soares, G. (2022). Biogás de resíduos da pecuária: uma comparação do caso da Califórnia e de Minas Gerais. Ensaio Energético, 30 de agosto, 2022.

Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutorando em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da UFRJ. É consultor na Prysma E&T Consultores atuando no mercado de gás natural e de biocombustíveis no Brasil.

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