Ensaio Energético

A Transformação digital e seus impactos no Setor de Energia

Introdução

A digitalização da economia tem transformado a produção de bens e serviços e a maneira como as pessoas consomem e se relacionam entre si. No setor de energia, essa transformação tem sido impulsionada por diversas tendências tecnológicas, como a ‘Internet das Coisas’ (Internet of Things – IoT), a inteligência artificial, a análise de dados, a automação e a robótica.

Em paralelo, discute-se cada vez mais uma ‘transição energética de baixo carbono’ estimulando a penetração de fontes renováveis, uma maior eficiência no consumo, conservação de energia e circularidade. Tudo em prol dos objetivos climáticos que têm se reforçado não apenas por novos alertas científicos (IPCC, 2023), mas também por compromissos políticos, iniciativas de empresas e sociedade civil.

A literatura de transições frequentemente conecta esses dois processos, associando de um lado as transformações das tecnologias da informação e comunicação (TIC) com avanços em direção a sociedades descarbonizadas, tendo o setor de energia um papel integrante e fundamental nisso tudo (TAVARES, 2019).

Este artigo tem como objetivo explorar de forma breve os aspectos e efeitos da digitalização das atividades, com particular foco na promoção da produtividade, eficiência energética e sustentabilidade.

As revoluções industriais e a relação com a energia

A chamada “Revolução Industrial”, expressão consagrada pelo historiador inglês Arnold Toynbee no final do século XIX, descreve as transformações socioeconômicas e tecnológicas ocorridas na Inglaterra a partir do século XVIII, marcadas pelo surgimento das fábricas movidas por máquinas e da produção em larga escala impulsionada pela energia a vapor.

Por ter se baseado na queima de combustíveis fósseis (sobretudo carvão) a dita “primeira” Revolução Industrial foi um ponto de inflexão na trajetória de consumo energético e de emissões de gases de efeito estufa. Por sua vez, a “segunda” Revolução Industrial (meados do século XIX a início do século XX) se associou a avanços em indústrias como siderurgia, indústria química, transporte e, no setor de energia, no uso do petróleo, gás natural e da eletricidade.

Diversos autores classificam uma “terceira” Revolução Industrial (meados do século XX até o presente) que estaria diretamente influenciada pelas mudanças nos sistemas energéticos e na evolução das TIC (RIFKIN, 2011) resultando em transformação em várias atividades, como transporte (e.g., veículos inteligentes), manufatura (e.g. manufaturas aditivas e impressão 3D) e energia (e.g. geração solar distribuída).

Kander et al. (2013) descrevem as revoluções industriais por suas características e efeitos aos sistemas energéticos. Argumentam que dado o aumento expressivo do consumo de energia na primeira Revolução Industrial, esta seria “energo-expansiva” (necessitando volumes crescentes de energia). Já a segunda Revolução Industrial teria sido dual, i.e., ao mesmo tempo “energo-expansiva” (baseada no petróleo e carvão) e “energo-poupadora” (baseada em tecnologias elétricas e sistemas mais eficientes). Na visão dos autores a terceira Revolução Industrial em curso seria “energo-poupadora” por centrar-se em tecnologias de informação e comunicação (TIC) que seguem uma trajetória de eletrificação aliada a uma maior eficiência energética.

Mas será que as atuais tecnologias dessa terceira Revolução Industrial de fato poupam energia?

 

A digitalização e sua relação com a energia

A digitalização traz uma série de vantagens do ponto de vista energético. Ela permite com que indústrias monitorem e controlem remotamente a produção, a distribuição e o consumo de energia em tempo real (e.g. smart grids), otimizando e proporcionando eficiência e menores custos de produção. A coleta e análise de dados contribuem para a simulação da produção (e.g. digital twins), previsão da demanda e ajustes em tempo real da produção.

Um impacto relevante da digitalização no setor de energia é o da criação de novos modelos de negócios baseados em tecnologia.

As TIC têm permitido ainda criar mercados de energia descentralizados com participação dos consumidores (prosumers) a partir de estruturas de blockchain, modificando a organização e dinâmica de mercados de energia. No rol de inovações relacionadas à resposta da demanda temos alguns modelos:

  • Comercializadores Varejistas/Distribuidoras: ofertas de diferenciação de tarifas adaptadas ao perfil dos consumidores (e.g. tempo real);
  • Agregadores independentes: companhias de software que agregam demandas distintas tornando mais eficiente a contratação de energia;
  • Fornecedores de dispositivos inteligentes (veículos elétricos, eletro-eletrônicos, etc.): oferta de serviços/benefícios complementares aos usuários em troca da sua utilização, podendo também servir de agregadores de usuários com os mesmos dispositivos;
  • Comunidades de energia: grupos de pessoas/cooperativas que podem se organizar para participar diretamente no sistema ou ter controle sobre sistemas próprios;
  • Pequenos consumidores-geradores ativos em negociação (Peer-to-Peer): consumidores que detém ativos de geração distribuída que podem transacionar sua produção diretamente com outros usuários do sistema.

Para que estes modelos de negócios possam vir a se viabilizar são necessários importantes ajustes na regulação e na organização dos mercados de energia, encarando a demanda como um ator ativo do sistema.

Tais modelos de negócios digitais têm uma vantagem em relação aos modelos tradicionais, pois são orientados por software fazendo uso de dados mais granulares e recursos analíticos avançados. Empresas podem oferecer serviços de gerenciamento de energia baseados em nuvem permitindo que o consumidor monitore e controle seu consumo de energia. Ao final, o setor de energia se tornou um laboratório de inovações digitais.

Não é à toa que empresas do setor de tecnologia tem investido pesadamente em geração renovável, seja por buscarem reduzir impactos ambientais, por reputação, mitigar volatilidade de preços de energia, mas também estarem mais próximas de tecnologias (e.g. solar fotovoltaica) e poderem elas mesmas desenvolver avanços na área. Os operadores de data centers de hiperescala lideram a aquisição corporativa de energia renovável, principalmente por meio de contratos de compra de energia (PPAs). Empresas como Amazon, Microsoft, Meta e Google são os quatro maiores compradores de PPAs corporativos de energia renovável (Gráfico 1).

 

Gráfico 1 – Contratação global de energia renovável por setor

Fonte: IEA (2022).

 

Outras contribuições em torno da sustentabilidade por meio da digitalização que poderíamos citar seriam a:

  1. substituição de bens ou processos físicos por alternativas digitais: exemplos livros e jornais digitais, vídeo-conferências, simulações de processos (digital twins).
  2. facilitação do acesso a fontes de produção e consumo sustentáveis: exemplos compras digitais de insumos ou produtos mais sustentáveis e com maior rastreabilidade.

 

Desafios da digitalização

No entanto, apesar de tantas inovações e vantagens da digitalização, ela também traz seus desafios e efeitos muitas vezes difusos.

Em 1987, o economista ganhador do prêmio Nobel Robert Solow enunciou o que ficou conhecido como paradoxo de Solow (ou “paradoxo da produtividade”), no qual observava-se a penetração do uso de computadores em todos os lugares, exceto nas estatísticas de produtividade. Portanto, não ficava claro qual seria a real contribuição das tecnologias no desenvolvimento e crescimento econômico.

Mas especificamente no setor de energia, quais desafios a digitalização traria?

Um primeiro desafio, é o da necessidade de garantir o abastecimento do ponto de vista da segurança cibernética das redes e da proteção de dados do consumidor. Com o aumento da dependência e da complexidade das tecnologias empregadas, falhas e interrupções do fornecimento de energia podem ser fruto de vulnerabilidades associadas à digitalização.

Outro ponto seria quanto aos reais ganhos de eficiência para a redução do consumo agregado de energia (ponto relevante nas discussões de mudanças climáticas). Apesar da digitalização tornar processos de consumo mais eficientes, onde poupamos tempo, poupamos esforço de busca e recursos, estudos demonstram que ela comumente gera um “efeito rebote”[1], elevando a demanda total por produtos e serviços e sem necessariamente substituir demandas ‘não digitais’. Quando falamos sobre a velocidade em que novos dados digitais são gerados e no crescimento exponencial da capacidade de armazenamento e processamento destes dados, é preciso entender quais são seus impactos em termos da demanda de energia de equipamentos.

De acordo com a IEA (2022), apesar do tráfico da internet ter crescido 440% de 2015 a 2021 e a carga de trabalho dos data centers em torno de 260%, o consumo de energia destes centros teria crescido apenas 10-60% no mesmo período, sendo resultado de ganhos dramáticos de eficiência por melhorias tecnológicas. No entanto, estes valores não incluem o consumo de energia de atividades como a de mineração para criptografia e criptoativos que nos últimos anos elevou-se consideravelmente (Gráfico 2). A Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index estima que a mineração apenas da criptomoeda Bitcoin consome cerca de 0,6% de toda eletricidade produzida no mundo, montante superior ao que países como Noruega ou Argentina consomem.

 

Gráfico 2 – Tendências do consumo de energia e digitalização

Fonte: IEA (2022).

Considerações Finais

Como se discutiu até aqui, a digitalização é um processo irreversível e tem um impacto significativo no setor de energia. Ao mesmo tempo que as inovações digitais resolvem problemas das sociedades atuais, elas são capazes de moldar o próprio funcionamento dessas sociedades.

Embora traga inúmeras oportunidades e benefícios, a digitalização também apresenta desafios que exigem atenção. É necessário um equilíbrio entre o aproveitamento das inovações digitais para promover a produtividade, eficiência e consumo sustentável de energia, ao mesmo tempo em que se tratam as questões de segurança cibernética e proteção de dados. A busca por inovações digitais alinhadas aos objetivos de sustentabilidade e clima deve ser incentivada, tornando a terceira Revolução Industrial em um verdadeiro ponto de inflexão na trajetória energética global.

 

Referências

IEA (2022) Data Centres and Data Transmission Networks. https://www.iea.org/reports/data-centres-and-data-transmission-networks

CAMBRIDGE BITCOIN ELECTRICITY CONSUMPTION INDEX: Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index (CBECI) (ccaf.io)

IPCC (2023) Synthesis Report of the IPCC Sixth Assessment Report (AR6). Intergovernamental Pannel on Climate Change.

KANDER, A.; et al (2013) Power to the People: Energy in Europe over the Last Five Centuries. Princeton University Press, 2013.

RIFKIN, J. The Third Industrial Revolution: How Lateral Power Is Transforming Energy, the Economy, and the World. St. Martin’s Press, 2011.

TAVARES, Felipe Botelho (2019) Política energética em um contexto de transição: a construção de um regime de baixo carbono Tese de doutorado, Instituto de Economia – UFRJ, 2019.

 

[1] “Efeito rebote” trata da relação entre eficiência de recursos e a demanda por estes tal que, para cada unidade de valor são necessários menos recursos e menos energia, mas, como significativamente mais unidades são produzidas a um custo unitário inferior, o resultado geral não será um declínio na demanda por energia e recursos, mas um nível continuamente alto de demanda, ou mesmo um aumento.

 

Sugestão de citação: Tavares, F. B. (2023). A Transformação digital e seus impactos no Setor de Energia. Ensaio Energético, 05 de junho, 2023.

Autor do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ, mestre em Economia e Gestão de Indústrias de Rede pela Universidade de Comillas (Espanha) e Paris Sul XI (França) e Fulbright scholar na Universidade de Columbia (Estados Unidos).

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