Ensaio Energético

Uso do gás de cozinha na América Latina: panorama atual e desafios para superar a pobreza energética

  1. Introdução

No atual cenário de incremento de preços de uma das principais fontes energéticas modernas para cozinhar, o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), a América Latina e o Caribe (AL&C) enfrentará o desafio de garantir o suprimento de energia segura e sustentável. Neste contexto, é interessante analisar o panorama atual de acesso a essa fonte energética, incluindo os principais obstáculos presentes para se alcançar, na América Latina, uma das metas do sétimo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS7).

Em setembro de 2015, 193 países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) acordaram objetivos para o ano de 2030 de alcançar a sustentabilidade econômica, social e ambiental dos Estados membros. A agenda 2030 incluiu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, que orientarão a planificação de políticas nacionais para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade.

Destaca-se que, pela primeira vez, foi incorporado um objetivo relacionado a dimensão energética, especificamente no sétimo objetivo, segundo o qual os países devem “assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia, para todos” (UN, 2015).

Do ODS7 se desdobraram três metas que contribuirão para o seu alcance: i) assegurar o acesso universal, confiável, moderno e a preços acessíveis a serviços de energia (Meta 7.1); ii) aumentar substancialmente a participação de energias renováveis na matriz energética global (Meta 7.2), e; iii) dobrar a taxa global de melhoria da eficiência energética (Meta 7.3).

De acordo com Jiménez e Yépez-García (2020), na região da América Latina e o Caribe, 80% dos domicílios usam gás doméstico para cozinhar (GLP ou gás natural), enquanto os 20% restantes dependem de combustíveis tradicionais, como lenha ou carvão vegetal. Os combustíveis tradicionais emitem altos níveis de dióxido de carbono (CO2) e outras substâncias nocivas, que ocasionam problemas respiratórios, câncer, cegueira e outras doenças. As mulheres e as crianças são as principais afetadas devido à alta exposição a essas fontes (WHO, 2018).

 

  1. O mercado do GLP na América Latina

Na América Latina, a produção de GLP é liderada pelo Brasil e o México. No entanto, estes também são os maiores importadores da região, com uma participação de 23,7% e 49,6%, respectivamente, do total do seu consumo energético para o período de 2017 (AIGLP, 2020).

A porcentagem de participação do gás doméstico na matriz energética residencial dos países da região mostra uma variabilidade significativa, que vai de 1% até 70%. Os países da América Central, Haiti, Nicarágua, Honduras e Guatemala, são os que registram menor consumo relativo de gás doméstico e, por sua vez, são os países com maior proporção de consumo de lenha. O consumo residencial de gás doméstico é proporcionalmente maior na Argentina, no Equador, na Bolívia e no México (Gráfico 1).

 

Gráfico 1 – Participação do consumo energético residencial por tipo de fonte e país, 2013

 

Fonte: Elaboração própria com dados de Jiménez e Yépez-García (2020).

Nota: combustíveis de transição inclui o carvão e o querosene. O combustível tradicional refere-se à lenha.

 

Nos últimos anos, o preço do GLP registrou um aumento de 262%, ao passar de 0,40 dólares por galão, em abril de 2020, para 1,45 dólares, no início do mesmo mês de 2022 (AIGLP, 2022). Os preços do GLP estão vinculados principalmente com o preço do petróleo. Com a disparada dos preços do petróleo e seus derivados em todo o mundo após da pandemia, em decorrência da redução da oferta nos Estados Unidos, a alta demanda da Ásia (especialmente a Índia e a China) e com a guerra entre Rússia e Ucrânia, os preços do GLP têm experimentado altas volatilidades. A depreciação das moedas dos países da região frente ao dólar também tem pressionado o aumento de preços do combustível na América Latina. Nos países importadores do GLP o efeito nos preços é maior.

O Gráfico 2 mostra o preço do GLP ao consumidor final, em dólares correntes, nos países da América Latina, no período de 2001 a 2021. É possível observar que o Chile tem liderado os preços do GLP no período de análise, seguido pelo Brasil e Uruguai. A Venezuela, o Equador e a Bolívia são os países que registraram os menores preços durante o período.

 

Gráfico 2 – Preço final do GLP em países da América Latina, 2001-2021 (GLP em dólares correntes por quilograma)

Fonte: Elaboração própria com dados da Cepal (2022).

 

  1. Acesso a gás doméstico para cozinhar na América Latina

O uso de energias limpas para cozinhar na região passou de um patamar de 80,11%, no ano 2000, para 88,69%, em 2020. Destaca-se nesse cenário um conjunto importante de países com alta cobertura no acesso ao gás doméstico, como foi observado na Argentina (100%), no Chile (100%), no Uruguai (100%) e no Brasil (95,9%). Mudanças impulsionadas por processos de urbanização, pela progressiva substituição de combustíveis tradicionais pelo GLP, por uma forte penetração da eletricidade e, em países como a Argentina, pelo uso intensivo do gás natural no consumo doméstico (CEPAL, 2017). Como contraparte, observa-se a existência de um grupo de países com cobertura menor a 60% em 2020: o Haiti (4,5%), a Guatemala (50,1%), Honduras (48,3%) e a Nicarágua (56,2%). Verifica-se que os países da América Central têm o maior déficit em termos de acesso a fontes modernas de energia para cozinhar.

Outro conjunto de países, El Salvador, o Paraguai e o Peru se sobressaem porque mostraram um significativo progresso, entre o ano 2000 e 2020, no acesso a energias limpas para cozinhar, graças à promoção de programas para substituir fogões a lenha por GLP.

 

Gráfico 3 – Proporção da população com acesso a gás doméstico para cozinhar, 2000 e 2020

Fonte: Elaboração própria com dados do Banco Mundial (2022).

 

Apesar do uso de combustíveis limpos para cozinhar ser predominante na América Latina, 20% dos domicílios da região ainda dependem de combustíveis tradicionais, especialmente nas áreas rurais. Mais do 50% da população das áreas rurais empregam a biomassa, dado que o acesso a gás para cozinhar é mais limitado, e também é mais caro (Jiménez e Yépez-García, 2020). A evidência empírica também tem mostrado que nas áreas rurais é comum o uso combinado de combustíveis modernos e tradicionais, sendo revezados na cozinha, em função do tempo gasto para o preparo de cada alimento, da capacidade financeira das famílias e das necessidades de cocção.

Nas áreas urbanas da AL&C, 17% dos domicílios de menor renda ainda usam lenha como o principal combustível para cozinhar. Isto tem sido mais evidente com o incremento dos preços do GLP, principalmente no cenário da pandemia, que causou a deterioração do mercado de trabalho e da renda.

No Brasil, há relatos de famílias que tem substituído, parcial ou integralmente, o GLP pela lenha, ou até mesmo o álcool, como alternativa para cozinhar, em razão dos altos preços do GLP. As famílias de menor renda improvisam fogões para usar a lenha nas refeições que demandam maior tempo de cozimento, usando o GLP para as refeições que gastam menor tempo para cozinhar. Crianças e mulheres têm sofrido intoxicações e queimaduras por manuseio de lenha ou álcool para cozinhar.

 

  1. Considerações finais

A análise evidenciou que o nível de renda e os preços dos combustíveis tem um papel fundamental no uso de combustíveis modernos. Famílias de menor renda, tanto das áreas rurais quanto das áreas urbanas, ainda dependem de combustíveis tradicionais para cozinhar.

As famílias de baixa renda são as mais vulneráveis a incrementos de preços do GLP, pois suas despesas energéticas têm um peso maior no orçamento familiar, se comparado com as famílias de renda alta. O aumento dos preços do GLP tem sido uma barreira para o uso desse combustível na América Latina e, portanto, no alcance da meta 7.1 do ODS7: “Assegurar o acesso universal, confiável, moderno e a preços acessíveis a serviços de energia”.

Mesmo em países com alta cobertura no acesso ao gás doméstico, as famílias têm optado por revezar o uso de GLP e lenha, como uma forma de garantir o seu suprimento energético. A lenha é usada na preparação de alimentos que requerem maior tempo, como o feijão, enquanto o GLP é utilizado nas refeições que não demandam muito tempo de cozimento.

O debate sobre como reduzir a proporção de domicílios que cozinham com combustíveis tradicionais deve ter prioridade nas economias da região, tendo em vista as consequências negativas para a população e para o meio ambiente. A falta de acesso à energia moderna para cozinhar tem efeitos na desigualdade de gênero, na poluição do ar, nos baixos níveis de expectativa de vida, na saúde e na segurança alimentar, sendo também um limitante para a assistência a escola, especialmente das mulheres.

Os países da região devem fazer um esforço para implementar políticas para compensar os choques dos preços do GLP, uma vez que as famílias de menor renda são as mais vulneráveis diante do incremento de preços do GLP. Nesse sentido, é preciso focalizar as políticas para essa população, de forma que possam adquirir o gás doméstico para cozinhar. Nesse caso, o uso de tecnologias e sistemas de informação são importantes para alcançar a eficiência e a efetividade nas políticas.

 

Bibliografia

AIGLP. (2022). Asociación Internacional de Gas Licuado de Petróleo. Disponível em: https://aiglp.org/es/precios-del-glp-seguiran-altos-hasta-2023/

AIGLP. (2020) Asociación Internacional de Gas Licuado de Petróleo (AIGLP). Benchmark del mercado de GLP envasado en América Latina. Disponível em: https://aiglp.org/src/uploads/2020/11/aiglp_espanhol_site.pdf

Banco Mundial. Base de datos de Energía Sostenible para Todos (SE4ALL). (2022). Disponível em: https://datos.bancomundial.org/indicator/EG.CFT.ACCS.ZS?end=2020&start=2020&view=map

CEPAL. (2017). Avances en materia de energías sostenibles en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe.

CEPAL. (2022). Comisión Económica para América Latina y el Caribe. División de estadísticas. Disponível em: https://statistics.cepal.org/portal/cepalstat/dashboard.html?indicator_id=1352&area_id=429&lang=es

Jiménez, R., Yépez-García, A. (2020). Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). ¿Cómo consumen energía los hogares?: evidencia de América Latina y el Caribe.

ONU. (2015). Organização das Nações Unidas. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment/es/2015/09/la-asamblea-general-adopta-la-agenda-2030-para-el-desarrollo-sostenible/

WHO. Burning opportunity: clean household energy for health, sustainable development, and wellbeing of women and children

 

Sugestão de citação: Melo, Y. (2022). Uso do gás de cozinha na América Latina: panorama atual e desafios para superar a pobreza energética. Ensaio Energético, 07 de novembro, 2022.

Autora do Ensaio Energético. Economista e mestre em Economia pela Universidade Nacional de Colômbia, sede Medellin, doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

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