Ensaio Energético

Transição Energética Brasileira: A liderança renovável e seus desafios

Em uma definição ampla, a transição energética consiste no processo descarbonização da matriz energética, através da substituição de fontes fósseis por fontes limpas e de ganhos de eficiência energética. A transição energética é peça fundamental do esforço global de mitigação das mudanças climáticas, uma vez que as emissões do setor de energia corresponderam a 76% das emissões mundiais de gases de efeito estufa em 2019 (WRI, 2022).

A difusão de fontes renováveis para a geração de eletricidade é o aspecto que mais avançou da transição e já é uma tendência consolidada. Atualmente, 156 países contam com incentivos para fontes renováveis (REN21, 2022). Desde 2012, a expansão da capacidade instalada renovável é superior à não renovável. Em 2021, a adição de capacidade de geração renovável representou 84% da expansão total da capacidade instalada (REN21, 2022).

Desde o relatório de 2018 do IPCC, que caracterizou a situação de emergência climática, as ações de mitigação de emissões passaram a enfatizar o objetivo de zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa. O objetivo de emissões líquidas zero possibilita um critério comum para o engajamento de países e instituições. Nesse sentido, a Agência Internacional de Energia desenvolveu um guia para o mundo atingir emissões líquidas zero em 2050 (IEA, 2021). A Conferência do Clima de Glasgow (COP26) priorizou o objetivo de zerar emissões líquidas na metade do século. Segundo REN21 (2022), 135 países já contam com políticas net zero.

Ainda que a explosão de preços do gás natural provocada pela invasão da Ucrânia tenha implicado em elevação das emissões de gases de efeito estufa, uma vez que centrais a carvão foram reativadas para contornar o problema, o impacto de longo prazo da invasão tende a estimular maiores investimentos em renováveis conforme os planos europeu (REPowerEU) e norte-americano.

No âmbito das experiências nacionais, a transição energética não é única. Os processos de transição energética têm diferentes pontos de partidas, objetivos e instrumentos. Países como o Brasil, que conta com elevada participação de renováveis na matriz energética (45%) e na geração de eletricidade (85%), têm desafio muito distinto de países com dominância do carvão como a África do Sul (70% da matriz energética e 86% da geração de eletricidade) (BP, 2022). Ao contrário de países que contam com sistemas energéticos maduros, em países em que o suprimento de eletricidade não é universalizado, como a Índia, o objetivo de transição deve incorporar aspectos sociais. Os instrumentos utilizados são também diversos, com elementos de controle (padrões de emissões) e incentivos (precificação do carbono, tarifas feed in, leilões, net metering).

A transição energética brasileira é caracterizada pela abundância de recursos energéticos. A elevada participação de renováveis implica em uma vantagem na trajetória de descarbonização. Na figura 1, é projetada a intensidade de emissões mundial na geração de eletricidade segundo o cenário de net zero da Agência Internacional de Energia. Atualmente, a média mundial de intensidade de emissões de gases de efeito estufa é 6 seis vezes superior à intensidade do sistema energético brasileiro. Se o plano de mitigação de emissões proposto pela Agência Internacional de Energia for seguido pelos países, a intensidade mundial de emissões vai alcançar a intensidade brasileira somente 2035. Ou seja, o Brasil está 15 anos na frente na descarbonização da geração de eletricidade em relação ao resto do mundo.

Figura – Intensidade da emissão de CO2: Brasil (2022) e Meta Mundial (IEA cenário net zero) – gCO2/kWh

Nota: Metas anuais obtidas a partir da projeção linear a partir dos valores divulgados para 2030 e 2040 pela IEA (World Energy Outlook – 2021). Valores brasileiros calculados para 2020 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTIC, 2022).

 

Portanto, o desafio de descarbonização da geração de eletricidade no Brasil consiste em manter a elevada participação de renováveis para os próximos anos. A situação atual resulta do histórico de predomínio hidrelétrico, trajetória que já atingiu seu limite. Assim, a manutenção da participação das fontes renováveis dependem da difusão de energia eólica e solar.

O Brasil iniciou a expansão de eólica e solar de forma tardia, mas o ritmo de difusão foi forte. A expansão da energia eólica foi calcada nos leilões de energia para o mercado regulado. Nos anos mais recentes, quando a quantidade de energia contratada nos leilões foi reduzida, a contratação no mercado livre sustentou a dinâmica de crescimento da capacidade instalada. Em 2021, a capacidade de geração eólica alcançou 21,6 GW, representando a 2ª fonte com maior capacidade instalada no Brasil. Nesse ano, a adição de capacidade de geração eólica foi de 3,8 GW (sendo 2,0 GW orientada para o mercado livre, o que foi superior ao mercado regulado) e o Brasil foi o 3º país que mais adicionou capacidade de geração eólica, ficando atrás apenas de China e Estados Unidos (ABEEÓLICA, 2022).

O Boom solar brasileiro foi mais recente. Inicialmente, também foi impulsionado pelos leilões de energia para o mercado regulado. No entanto, é a instalação de painéis em geração distribuída que causou a aceleração dos últimos três anos. O regime de net metering (compensação líquida) oferece atratividade à instalação desses sistemas em contexto de redução de custos de instalação e elevação das tarifas das distribuidoras. Em alguns estados brasileiros, como Minas Gerais, o tempo de retorno (payback) da instalação de placas solares é inferior a 4 anos. Como o novo marco de geração distribuída impõe uma redução dos incentivos a partir de 2023, houve uma corrida por instalações. A capacidade de geração solar já atingiu 13,7 GW em 2021 (33% em geração centraliza – fazendas solares, e 67% geração distribuída).

A difusão da energia solar e eólica deve continuar nos próximos anos. As duas fontes lideram a adição de capacidade no Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2031. O PDE prevê um acréscimo de 29 GW de geração solar distribuída e 15 GW de solar e eólica centralizada. A expansão poderia ser mais significativa caso os leilões de centrais termelétricas no Norte e Nordeste, que foram um condicionante do processo de privatização da Eletrobras, não estivessem presentes no plano.

A transição energética singular do Brasil, apesar de contar com um ponto de partida vantajoso, envolve alguns desafios.  Em primeiro lugar, como é destacado no plano da Agência Internacional de Energia, as emissões líquidas só serão zeradas se novas tecnologias se estabelecerem, como biocombustíveis avançados, baterias, Estocagem, Sequestro e Uso de Carbono (CCUS) e hidrogênio. A liderança brasileira é concentrada em tecnologias tradicionais e há necessidade de esforço tecnológico significativo para manter a posição em novas tecnologias.

Com o desenvolvimento do Pré-sal, o Brasil experimenta abundância em recursos fósseis. As duas trajetórias podem ser conciliadas com a exportação de petróleo e a utilização de renováveis para atender o consumo doméstico. No entanto, se a abundância de hidrocarbonetos se reverter em subsídios para derivados e gás natural no mercado doméstico, a transição pode ser comprometida.

Outro aspecto importante é que frente à redução de custos das fontes solar e eólica, os incentivos para a difusão, seja centralizada ou distribuída, estão sendo retirados. No entanto, as fontes renováveis evitam externalidades negativas e esse benefício deve se traduzir em sinais econômicos. O desenvolvimento de mercados de carbono é considerado a forma mais eficaz de incentivar fontes limpas. Isso deve guiar a substituição da estrutura de incentivos para renováveis no Brasil.

Por fim, dada a situação de vulnerabilidade de parcela relevante da sociedade brasileira é recomendável que a transição energética brasileira incorpore objetivos sociais, caracterizando uma Transição Energética Justa. Em postagem passada, apontamos que a difusão de painéis solares em comunidades carentes pode ser uma forma eficiente de mitigar a pobreza energética no Brasil.

 

Referências

ABEEÓLICA, 2022. Boletim Anual, 2021. Disponível em: https://abeeolica.org.br/wp-content/uploads/2022/07/ABEEOLICA_BOLETIMANUAL-2021_PORT.pdf.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (2022) Plano Decenal de Expansão de Energia – 2031. Disponível em: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Documents/PDE%202031_RevisaoPosCP_rvFinal_v2.pdf

IEA, 2021, Net Zero by 2050 – A Roadmap for the Global Energy Sector. Disponível em: https://www.iea.org/reports/net-zero-by-2050

IEA, 2022. World Energy Outlook 2021. Disponível em: www.iea.org/weo

MCTIC, 2022. Fator médio – Inventários corporativos. Disponível em: https://antigo.mctic.gov.br/mctic/opencms/ciencia/SEPED/clima/arquivos/emissoes_co2/Inventario_2021_jan-a-dez.xlsx.

REN21, 2022. Renewables 2022 Global Status Report. Disponível em: https://www.ren21.net/reports/global-status-report/

WRI, 2022. Climate Watch. Disponível em: https://www.climatewatchdata.org/

 

Sugestão de citação: Losekann, L. (2022). Transição Energética Brasileira: A liderança renovável e seus desafios.  Ensaio Energético, 17 de outubro, 2022.

Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

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Gabriel Barrocas
Gabriel Barrocas
6 meses atrás

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