Os furtos de energia têm constituído um problema relevante em países emergentes. Os mercados energéticos movimentam elevados valores e, em países com fragilidades institucionais, se tornam um alvo da ação de grupos criminosos. A perda de receita provocada pelo roubo de energia pode desestruturar as cadeias energéticas, com impactos empresariais, sociais e fiscais. A experiência internacional mostra os graves danos que os furtos causam na oferta de combustíveis e eletricidade. No Brasil, esse problema vem crescendo e, no Estado do Rio de Janeiro, onde a política de segurança fracassou, o furto se tornou um meio de sustentação para grupos criminosos, particularmente as milícias. O enfrentamento a esse problema é urgente e complexo. É necessária uma ação articulada de empresas, reguladores e órgãos de segurança e de inteligência. Esse artigo aborda experiências internacionais e nacionais para ilustrar os impactos em mercados de energia, destacando a situação crítica do Estado do Rio de Janeiro e apontando a necessidade de mobilizar a sociedade a atacar esse problema o quanto antes.
Internacionalmente, o caso recente do México atraiu a atenção global. O país enfrenta graves problemas relacionados ao crescimento da violência de grupos criminosos. Segundo Arroyo[1], os primeiros roubos de combustíveis foram registrados pela PEMEX em 2000. Até 2005, o número de ligações clandestinas identificadas pela PEMEX permaneceu ao redor de uma centena ao ano. Desde então, houve crescimento explosivo de casos. Em 2018, foram identificadas quase 15 mil ligações clandestinas (Figura 1). Nesse ano, o roubo de combustíveis promovido pela máfia chegou a custar ao governo federal US$ 3 bilhões em 2018[2].
Figura 1 – Número de ligações clandestinas identificadas na rede da PEMEX
Fonte: Elaboração própria. Dados: Etellekt até 2015, PEMEX 2016-2019.
Arroyo (2017) aponta três determinantes para o crescimento do furto de combustíveis no México. O primeiro, é a facilidade do desvio de combustíveis líquidos, já que as ligações clandestinas podem ser feitas com técnicas rudimentares. A vigilância da rede de dutos é baixa, uma vez que o monitoramento da extensa rede de dutos não era o foco das ações de segurança da PEMEX e a empresa não dispunha de recursos para um controle mais efetivo. É frequentemente reportada a participação de funcionários da estatal em esquemas de desvio. O último determinante é a ação do crime organizado, com a venda de combustíveis furtados representando uma fonte de renda adicional para os cartéis de droga. Segundo dados da consultoria Etellekt, os cartéis foram responsáveis por 95% dos casos de furto identificados em 2016[3]. Nesse período, a principal organização criminosa, Zetas, obtinha receita anual de cerca de US$ 350 milhões a partir do roubo de combustíveis. Desta forma, o roubo de combustível se tornou uma atividade de maior retorno do que o tráfico de droga para esse cartel (Arroyo, 2017).
O roubo de combustíveis contribuiu para a bancarrota da PEMEX, que é a petroleira mais endividada do mundo atualmente. A população foi impactada pelos riscos das atividades, evidenciadas globalmente na explosão de um oleoduto perfurado para furto em 2019 que casou mais de 130 mortes, e por desabastecimento. Hoje, o combate ao furto de combustíveis é uma prioridade do governo mexicano, Lopez Obrador. Os casos foram reduzidos sensivelmente. Segundo a direção da PEMEX, o plano implementado pela empresa reduziu o volume médio de combustíveis roubados de 74 mil barris diários em 2018, para 11 mil barris diários no primeiro trimestre de 2020[4].
O Brasil já enfrenta problemas relevantes nos mercados de combustíveis líquidos e de eletricidade. As perdas com roubo de combustíveis em dutos foram estimadas em R$120 milhões em 2019 e a Petrobras lançou campanha, com cooperação de instituições de segurança, para combater a prática criminosa.
O fracasso das políticas de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro implicou na ampliação do controle territorial por grupos criminosos, principalmente de milícias. Um estudo recente (Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP e Pista News, 2020) mapeou a atuação de grupos criminosos no Estado do Rio de Janeiro (Figura 2). Em 2019, 73% do território da cidade do Rio de Janeiro é controlado por grupos criminosos, onde vive 57% da população carioca. Destaca-se a atuação de milícias em 58% do território e 33% da população.
Figura 2 – Mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro
Fonte: Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP e Pista News, 2020
Assim como ocorreu no México, os grupos criminosos do Rio de Janeiro exploram o furto de energia como forma de receita. A milícia e o tráfico atuam no fornecimento ilegal de eletricidade, GLP e, mais recentemente, de gás natural. Em eletricidade, o furto ocorre principalmente no segmento residencial, através da adulteração de medidores e ligações clandestinas (gatos). A região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, atendida pela distribuidora Light, apresenta os volumes mais elevados de perdas não técnicas[5] do Brasil a maior parte decorrente de furto. As perdas da Light representam 20% das perdas não técnicas brasileiras (Figura 3).
Figura 3 – Participação das concessionárias nas perdas não técnicas brasileiras – 2018
Fonte: Aneel (2019).
As elevadas perdas de energia são um problema antigo da Light. A crise fiscal do Estado do Rio de janeiro, o desmonte da política de segurança pós 2017 e a intensificação da ação de grupos criminosos ampliaram os níveis de furtos na área da Light (Figura 4). Em 2019, as perdas representaram 55% da energia fornecida pela empresa em baixa tensão[6]. Pelas regras regulatórias, parte das perdas é repassada aos demais consumidores através da tarifa de eletricidade e parte é responsabilidade da concessionária, não sendo repassada à tarifa. Essa realidade implica destruição de valor empresarial, a distribuidora CEMIG busca vender sua participação na Light, mas o elevado nível de perdas não atrai compradores. Os consumidores são impactados pela queda de qualidade do serviço[7] e o governo estadual perde arrecadação.
Figura 4 – Perdas não técnicas em relação à energia fornecida em baixa tensão – Light
Fonte: Aneel
Grupos criminosos também atuam na venda de GLP em territórios controlados no Estado do Rio de Janeiro. Milícia e tráfico revendem botijões e proíbem que revendedores regulares vendam em suas áreas, possibilitando a cobrança de ágio. Dessa forma, a parte mais vulnerável da população paga preços mais elevados para adquirir botijões de gás.
Durante muito tempo, a distribuição de gás natural não foi impactada por furtos, devido à dificuldade técnica. No entanto, recentemente, os grupos criminosos passaram a atuar no segmento no Rio de Janeiro. As perdas da CEG-Naturgy têm crescido significativamente nos últimos anos. No último ciclo tarifário (2013-2017), as perdas não físicas, principalmente furto, dobraram de volume (Figura 5). Os furtos crescentes estão concentrados no segmento de GNV, onde o volume negociado estimula a atuação de grupos criminosos em conjunto com proprietários de postos de abastecimento. Em menor volume, condomínios residenciais em áreas controladas por grupos criminosos também experimentam furtos de gás natural.
Figura 5 – Perdas não físicas de gás natural CEG/Naturgy – Milhões m3
Fonte: CEG/Naturgy
Esse quadro aponta que o furto de energia é um risco grave para os mercados energéticos brasileiros, particularmente no Rio de Janeiro. A dinâmica de descontrole experimentada no México serve como uma lição a evitar. Além dos furtos de combustíveis, os grupos criminosos do Estado do Rio de Janeiro diversificam atividades para eletricidade, GLP e gás natural. Os furtos de eletricidade já alcançaram níveis que comprometem as finanças das concessionárias de distribuição. Mas o impacto dos furtos não se limita às empresas. Consumidores pagam tarifas superiores, a qualidade do serviço se deteriora e o governo perde arrecadação.
As empresas de energia têm um papel importante no combate aos furtos de energia e os sinais econômicos devem motivar as empresas a adotarem ações de mitigação. No entanto, a atuação de grupos criminosos organizados em mercados energéticos exige uma ação conjunta da sociedade. Essa ação é urgente, os impactos sociais são imensos e as rendas obtidas em mercados de energia fortalecem os grupos criminosos. O engajamento do governo de estado, que perde arrecadação de impostos, através da mobilização dos órgãos de segurança e de ação social, é fundamental. Reguladores, órgãos de inteligência federais e judiciário também devem se envolver nesse combate.
Notas
[1] Arroyo-Macías, E.M. (2017). “Huachicoleros, la naturalización del mercado de la ilegalidad”. En Análisis Plural, primer semestre de 2017. Tlaquepaque, Jalisco: ITESO
[2] NYT (2019) Mexico Declares Victory Over Fuel Thieves. But Is It Lasting? 05/05/2019. https://www.nytimes.com/2019/05/05/world/americas/mexico-fuel-theft.html
[3] Etellekt (2016), Reporte Sectorial: Situación actual y perspectivas sobre el robo de hidrocarburos en México, 2016. Etellekt Consultores, Cidade do México, 15/07/2016.
[4] https://www.elfinanciero.com.mx/economia/plan-contra-el-huachicoleo-baja-robo-de-barriles-de-combustible-a-11-mil-200-pemex.
[5] Além de furtos e fraudes, as perdas não técnicas também incluem erros de medição e faturamento.
[6] A razão entre perdas não técnicas e energia fornecida em baixa tensão é usualmente utilizada como uma referência incidência de furtos de eletricidade, já que, usualmente, os furtos ocorrem nos segmentos atendidos em baixa tensão, residencial e comercial. Os índices de perdas mais elevados do Brasil estão na região Norte, onde os furtos ocorrem também no segmento industrial. O índice foi de 122% na Amazonas Energia em 2019.
[7] Melo, E., A. Mejdalani, E. Almeida e L. Losekann (2018) “The Hidden Dimensions of Energy Poverty: The Correlation between the Electricity theft and Public Security in Rio de Janeiro” Proceedings da IAEE International Conference Singapore.
Sugestão de citação: Losekann, L. D.; Almeida, E.; Rodrigues, N.; Melo, Y.(2020). Furtos de Energia: risco de desestruturação dos mercados energéticos. Ensaio Energético, 03 de novembro, 2020.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.
Editora-chefe do Ensaio Energético. Economista pela UFRRJ, mestre em Economia Aplicada pela UFV e doutora em Economia pela UFF. Professora do Departamento de Ciências Econômicas da UFF, professora do Programa de Pós Graduação em Economia (PPGE/UFF) e pesquisadora do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).
Autora do Ensaio Energético. Economista e mestre em Economia pela Universidade Nacional de Colômbia, sede Medellin, doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).