Ensaio Energético

Comercialização de Gás natural no PL 4.476/20: Oportunidade para Redução dos Conflitos Regulatórios

As atuais discussões relacionadas ao PL do Gás, no Senado Federal, trazem de volta uma antiga e recorrente discussão sobre a competência dos Estados e da União no que tange à movimentação e comercialização do gás natural.

Como se sabe, enquanto o art. 177 da Constituição Federal determina que constitui monopólio da União “o transporte, por meio de conduto, de gás natural”, o § 2º do art. 25 do mesmo texto estabelece o monopólio estadual sobre “os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”. Portanto, segundo a Constituição Federal de 1988, há competências da União e dos Estados em relação ao insumo.

Não há como deixar de lado que a competência dos Estados é pontual e excepcional no que se refere aos serviços locais de gás canalizado, enquanto a competência da União é mais ampla, envolvendo a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural, o seu tratamento nas Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGN), o transporte por meio de duto e a granel, o carregamento, a estocagem subterrânea, o acondicionamento, a liquefação, a regaseificação, a comercialização no mercado atacadista envolvendo produtores, distribuidoras, comercializadores, e grandes consumidores livres; e, finalmente, a importação e a exportação de gás natural. 

Na prática, acordou-se que a entrega de gás natural nos city-gates encerraria a atividade de transporte e iniciaria a de distribuição até o consumidor final via duto. Ressalte-se que, segundo experiência internacional, a distinção entre a atividade de transporte e a de distribuição é feita pelas diferentes caraterísticas técnicas dos dutos, sendo que os dutos utilizados no segmento de transporte são tipicamente de maior diâmetro e pressão comparados com os dutos de distribuição. No Brazil, no entanto, a distinção não é feita com base em caraterísticas técnicas, e sim em caraterísticas geográficas, o que resulta na existência de gasodutos de distribuição que em outros países seriam classificados como gasodutos de transporte.

Pela regulamentação atual brasileira, há 3 condicionantes que devem ocorrer, de forma concomitante, para caracterizar a distribuição do gás natural: (i) a entrega ao consumidor final; (ii) a movimentação por meio de dutos e (iii) movimentação nos limites do próprio Estado. Com efeito, se não houver um desses requisitos, a atividade não pode ser considerada como de distribuição de gás natural.   

Esta caracterização da atividade de distribuição de gás vem sendo sistematicamente questionada por defensores de uma visão mais abrangente, que inclui o monopólio sobre a atividade da comercialização do gás natural. Diversos argumentos são utilizados pelos defensores desta visão. Alguns afirmam que a definição de distribuição de gás canalizado contida na Lei do Petróleo (Lei 9478/97) serviria de respaldo para a compreensão de que a atividade de distribuição de gás natural compreenderia necessariamente a sua comercialização pela distribuidora. Nada mais incorreto! 

Quando a Lei do Petróleo, editada em 1997, indicou que a distribuição corresponderia aos “serviços locais de comercialização de gás canalizado, junto aos usuários finais” ela não pretendeu equiparar distribuição à comercialização no sentido estrito. Ao incluir a palavra “comercialização” ao dispositivo, o legislador federal esclareceu, tão-somente, que a distribuidora estadual colocaria um serviço no mercado, qual seja, a movimentação, via duto, do gás natural ao consumidor final do insumo, nos limites de cada Estado, nos termos da excepcional determinação contida no §2º do art. 25 da Constituição Federal.

Ressalte-se que a comercialização do gás ao consumidor final é um serviço acessório à atividade de distribuição, no caso em que a concessão para distribuição atribui uma exclusividade para a atividade de comercialização ao consumidor final. E tanto é assim, que diversos contratos estaduais reservaram, durante um período determinado, a exclusividade da atividade de comercialização pela distribuidora local e, findo tal período, previram sua liberação.

Assim, cabe ao poder concedente estadual definir a possibilidade da liberalização da comercialização aos usuários finais. Caso assim decida, a distribuição para consumidores livres que compram gás de terceiros, não mais inclui a atividade acessória da comercialização. Neste momento, a comercialização aos consumidores livres passa a ser parte do mercado atacadista e, portanto, de competência federal, uma vez que os consumidores finais livres necessariamente deverão transacionar gás com comercializadores autorizados e regulados pela ANP.

Esta interpretação vem sendo sistematicamente questionada por visões e interesses que desejam manter alargada a competência e monopólio estadual da distribuição para a área da comercialização do gás. Acontece que o alargamento do espaço de competências estabelecido pela Constituição e pela Lei para a atividade de distribuição implica, necessariamente, na redução do espaço de competência de âmbito federal.

E tal dinâmica pode comprometer a eficácia e eficiência da regulação federal, bem como a atual proposta de abertura e introdução da concorrência no mercado de gás. E mais: a limitação da regulação federal sobre o mercado atacadista pode resultar na substituição do monopólio da Petrobras na comercialização, por monopólios estaduais ou regionais no mercado de gás, o que seria um resultado não desejável para o País.

Atualmente, as definições vigentes de distribuição de gás canalizado, de transporte e de comercialização de gás natural encontram-se disciplinadas nas Leis do Petróleo e do Gás Natural (Lei nº 11.909/09)[1]. Em resumo, cabe à ANP a regulação e autorização do transporte e da comercialização do insumo, e, por força da Constituição Federal e das legislações estaduais, a regulação da atividade de distribuição cabe às agências reguladoras de cada Estado.  

Considerando a pluralidade de normas e os interesses divergentes – e algumas vezes claramente ilegítimos – sobre a matéria, ainda há importantes descordos na interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais em relação à abrangência da distribuição de gás canalizado. Tais conflitos regulatórios, por certo, contribuem para deteriorar o ambiente de negócios no setor.

Podemos citar um exemplo em relação à classificação de dutos de transporte e de distribuição. A atual definição legal permite a classificação de um mesmo projeto de duto como transporte ou distribuição, o que resulta numa disputa entre distribuidoras e transportadoras sobre quem tem a competência para desenvolver o projeto. Esta disputa dificulta o planejamento da expansão do setor e pode resultar no desenvolvimento de uma infraestrutura de transporte e distribuição ineficiente, com custos adicionais indesejáveis para os consumidores.

Da mesma forma, a divergência de interpretações sobre o escopo da atividade de comercialização no plano estadual levou alguns governos estaduais a atuar como instâncias autorizadoras da atividade de comercialização para consumidores livres, o que faz com que comercializadores, já autorizados pela ANP, tenham que também obter autorizações nos Estados.

Este é o caso do Estado de São Paulo, onde a ARSESP determinou suas próprias condições para a autorização para comercializador, por meio da Deliberação nº 230/2011, a despeito de já existir regulação sobre a mesma matéria na ANP.

Um dos temas que mais gera conflitos regulatórios é a potencial competição entre fornecedores de gás natural e fornecedores de gás a granel. Este conflito regulatório se baseia no entendimento de algumas distribuidoras e reguladores estaduais segundo o qual, mesmo o gás não sendo fornecido por via dutoviária, a simples comercialização do gás na área concedida infringiria o suposto monopólio estadual sobre a comercialização.

Em outras palavras, interpreta-se o conceito de serviço local de comercialização de gás canalizado, como fonte geradora de dois direitos independentes: i) o direito ao fornecimento do serviço local de gás canalizados e ii) o direito ao monopólio da comercialização. Assim, a comercialização a um usuário final, mesmo que seja através de entrega de gás a granel, poderia, segundo tal entendimento, ser considerada como parte da exclusividade da concessão para distribuição.

A assinatura entre as distribuidoras do Rio de Janeiro e o Governo do Estado do terceiro termo aditivo ao contrato de concessão para distribuição de gás em 2014 ilustra claramente a visão na qual qualquer forma de suprimento de gás faria parte dos direitos de distribuição. No caso específico do Rio de Janeiro, o Estado cobrou uma elevada outorga das distribuidoras (R$390 milhões) em troca do direito de levar gás a granel até cidades não atendidas por gasodutos.

Ora, a atividade de transporte de gás a granel é regulada pela ANP. As empresas de transporte de gás a granel, uma vez autorizadas pela ANP, estão aptas a entregar gás às distribuidoras ou aos consumidores finais, desde que não utilizem os dutos de distribuição. Não obstante o fato de existir uma sólida regulação federal sobre a atividade de transporte de gás a granel, o governo fluminense entendeu que poderia cobrar para autorizar suas distribuidoras a contratar este meio de transporte de gás.

Por fim, ainda há conflitos regulatórios recentes envolvendo a definição de usuários finais de gás. A história da indústria é rica em exemplos onde se buscou classificar como usuário final, aquele que consome o gás a montante da cadeia, como por exemplo, o gás consumido por uma UPGN, ou pelas transportadoras nas suas centrais de compressão de gás, ou ainda o uso do gás por empresas de liquefação. Ou seja, busca-se definir o usuário final independentemente da etapa da cadeia na qual ocorra o consumo do gás.

O PL do Gás (PL 4.476/20) se a propõe introduzir definições claras e objetivas dos níveis de competência federal e estadual na indústria do gás, no que diz respeito ao transporte, e à distribuição, e à comercialização do gás, de modo a corrigir tais distorções. E mesmo assim, é surpreendente constatar que alguns atores políticos se opõem a tal esclarecimento. Parece que a manutenção da incerteza regulatória interessa tais atores, pois conseguem extrair rendas econômicas no contexto de ambiguidade regulatória.

Acreditamos ser fundamental que o PL do Gás, ora em discussão no Senado, seja aprovado e ajude a consolidar uma interpretação sistemática da Constituição Federal nesta matéria, a partir do pressuposto que o ordenamento é um todo unitário, sem incompatibilidades. Senão vejamos:

Segundo seus dispositivos, a definição de comercialização de gás natural ficará mais objetiva, abrangendo toda a “atividade de compra e venda de gás natural”, sem fazer menção ao §2º do art. 25 da Constituição Federal:

“Art. 3º Ficam estabelecidas
as seguintes definições para os fins desta Lei e de sua regulamentação:

XIII – comercialização de gás natural: atividade de compra e venda de gás natural;”

Obviamente, tal conceito não flexibiliza o monopólio constitucional da distribuição. E nem poderia ser, sob pena de inconstitucionalidade. Apenas esclarece que a comercialização é um serviço acessório à atividade de distribuição, e deve ser definida de forma independente (como ocorre com os conceitos de distribuição e transporte, p.e.) em um contexto desejado de concorrência e expansão.

Em respeito ao monopólio estadual constante na Constituição Federal, os conceitos dos consumidores cativo e livre são apresentados de forma genérica no PL, cabendo aos Estados a determinação do seu detalhamento. Neste sentido:

Art. 3º  (…)

XIV – consumidor cativo: consumidor de gás natural que é atendido pela distribuidora local de gás canalizado por meio de comercialização e movimentação de gás natural;

XV – consumidor livre: consumidor de gás natural que, nos termos da legislação estadual, tem a opção de adquirir o gás natural de qualquer agente que realiza a atividade de comercialização de gás natural;

Neste ponto, é importante notar que o art. 45 do PL determina que a “União, por intermédio do Ministério de Minas e Energia e da ANP, deverá articular-se com os Estados e o Distrito Federal para a harmonização e o aperfeiçoamento das normas atinentes à indústria de gás natural, inclusive em relação à regulação do consumidor livre” – movimento de harmonização das legislações federal e estaduais.

Adicionalmente, o PL mantém a determinação da atual Lei do Gás (Lei nº 11.909/2009) de que a atividade de comercialização consta da definição da indústria de gás natural:

Art. 3º  (…)

XXVIII – indústria do gás natural: conjunto de atividades econômicas relacionadas com exploração, desenvolvimento, produção, importação, exportação, escoamento, processamento, tratamento, transporte, carregamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação, distribuição e comercialização de gás natural;

E, conforme o §1º do art. 1º do PL, tais atividades econômicas – inclusive a comercialização do insumo – serão reguladas e fiscalizadas pela ANP “e poderão ser exercidas por empresa ou consórcio de empresas constituídos sob as leis brasileiras, com sede e administração no País”.

Sobre o transporte de gás natural, o PL impede que transportadores exerçam funções na atividade de comercialização de gás natural, o que é absolutamente essencial para assegurar o propósito de abertura e concorrência no setor de gás natural:

Art. 5º O transportador deve construir, ampliar, operar e manter os gasodutos de transporte com independência e autonomia em relação aos agentes que exerçam atividades concorrenciais da indústria de gás natural.

§ 1º É vedada relação societária direta ou indireta de controle ou de coligação, nos termos da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, entre transportadores e empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural.

§ 2º É vedado aos responsáveis pela escolha de membros do conselho de administração ou da diretoria ou de representante legal de empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades de exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural ter acesso a informações concorrencialmente sensíveis ou exercer o poder para designar ou o direito a voto para eleger membros do conselho de administração ou da diretoria ou representante legal do transportador.

Ademais, o PL de Gás Natural corrobora a atribuição da ANP na regulação da comercialização de gás natural, reforçando a competência do regulador federal na atividade:

Art. 25. A ANP regulará o exercício da atividade de acondicionamento para transporte e comercialização de gás.

Por fim, especificamente sobre a atividade de comercialização de gás natural, o PL indica a necessidade de celebração de contrato de compra e venda e indica a competência da ANP sobre tais acordos – sem fazer menção ao §2º do art. 25 da Constituição Federal. Senão vejamos:

Art. 31. A comercialização de gás natural dar-se-á mediante a celebração de contratos de compra e venda de gás natural, registrados na ANP ou em entidade por ela habilitada, nos termos de sua regulação, ressalvada a venda de gás natural pelas distribuidoras de gás canalizado aos respectivos consumidores cativos.

§ 1º A ANP deverá estabelecer o conteúdo mínimo dos contratos de comercialização, bem como a vedação a cláusulas que prejudiquem a concorrência.

§ 2º Poderão exercer a atividade de comercialização de gás natural, por sua conta e risco, mediante autorização outorgada pela ANP, as distribuidoras de gás canalizado, os consumidores livres, os produtores, os autoprodutores, os importadores, os autoimportadores e os comercializadores.

§ 3º Não está sujeita a autorização da ANP a venda de gás natural, pelas distribuidoras de gás canalizado, aos respectivos consumidores cativos.

§ 4º A comercialização de gás natural no mercado organizado de gás natural deve ser efetuada por meio de contratos de compra e venda padronizados, nos termos da regulação da ANP.

§ 5º Os contratos de comercialização de gás natural deverão conter cláusula para resolução de eventuais divergências, podendo, inclusive, prever a convenção de arbitragem, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.

Art. 35. Os contratos de comercialização e de serviço de transporte de gás natural deverão prever cláusula de observância compulsória do plano de contingência, incluída a possibilidade de suspensão de obrigações e penalidades em situações caracterizadas como de contingência.

Ou seja, se, com as regras ora vigentes, já entendíamos não haver embasamento legal ou técnico que justificasse uma leitura mais abrangente dos serviços locais de gás canalizado, com a aprovação do PL do gás, grande parte dos conflitos ainda remanescentes restarão definitivamente esclarecidos ou encaminhados, garantindo a segurança que o setor precisa para expandir.

Na prática, restou claro que a opção pela restrição à comercialização de gás natural pelas empresas de distribuição estaduais não levou à expansão desejada do mercado de gás natural no Brasil, apesar da oferta crescente do insumo. O Novo Mercado de Gás Natural, recentemente lançado pelo Governo, pretende mudar tal lógica, abrindo o mercado com dinamismo e competitividade. O PL é fundamental para garantir tal resultado.

Há mais de 15 anos a Procuradoria da ANP afirmou que “os conflitos legais só se tornarão possíveis à medida em que se insista em ampliar indevidamente o alcance do art. 25 §2º da Constituição Federal”. Chegou a hora, com o PL do Gás, de impedir essa ampliação, ineficiente e limitante, garantindo os benefícios desejados para todo o País na expansão do uso do gás natural o que, por certo, resultará na modernização e fortalecimento das distribuidoras.

Notas

[1] Inc. XXII do art. 6º da lei 9.478/97 – “XXII – Distribuição de Gás Canalizado: serviços locais de comercialização de gás canalizado, junto aos usuários finais, explorados com exclusividade pelos Estados, diretamente ou mediante concessão, nos termos do § 2º do art. 25 da Constituição Federal;”

Inc.VII do art. 6º da lei 9.478/97 – VII – Transporte: movimentação de petróleo, seus derivados, biocombustíveis ou gás natural em meio ou percurso considerado de interesse geral; 

Inc. VIII do art. 2 º da Lei nº 11.909/09 – “Comercialização de Gás Natural: atividade de compra e venda de gás natural, realizada por meio da celebração de contratos negociados entre as partes e registrados na ANP, ressalvado o disposto no § 2º do art. 25 da Constituição Federal;”

Sugestão de citação: Santos, D. & Almeida, E. (2020). Comercialização de Gás natural no PL 4.476/20: Oportunidade para Redução dos Conflitos RegulatóriosEnsaio Energético, 27 de outubro, 2020.

Daniela Santos

Advogada e mestre pela PUC/RJ. Sócia-fundadora da SG Advogados.

É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França. Conselheiro Editorial do Ensaio Energético.

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