O ano de 2022 marca dez anos da edição da Medida Provisória nº 579 de 2012. Convertida na Lei nº 12.783/2013, a MP 579 endereçou o término de concessões vincendas de geração, transmissão e distribuição de eletricidade através de renovação antecipada das outorgas, com o intuito principal de promover modicidade tarifária. O anúncio em cadeia nacional, às vésperas do Sete de Setembro, indicava redução tarifária média de 16,2% para consumidores residenciais e 28% para o setor produtivo.
As concessões vincendas na época alcançavam cerca de 25 GW de capacidade instalada (21% do parque gerador), 95 mil quilômetros de linhas de transmissão (85% das linhas dos concessionários impactados) e 38 concessionárias de distribuição (33% do mercado brasileiro). A ampla renovação permitida pela MP 579 ficou sujeita à aceitação de novos regimes de serviço para geração e transmissão, com remuneração por tarifa regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), e metas de qualidade e sustentabilidade financeira para a distribuição.
A despeito de intenso e antecedente debate, em meio à nebulosa percepção sobre a possibilidade de renovação das outorgas, a MP 579 foi editada de forma imprevista, sem interlocução prévia com os agentes, produzindo efeitos imediatos. Como discutido em artigo recente no Ensaio, em que pese a busca por modicidade tarifária, entre 2012 e 2021 a taxa média de crescimento anual das tarifas de eletricidade (8,5% a.a.) ficou cerca de 40% acima da taxa média anual de inflação medida pelo IPCA (6% a.a.).
Apesar da ampla renovação promovida pela MP 579 e da recente prorrogação das outorgas da Eletrobras vinculadas ao processo de desestatização da empresa, concluída em junho de 2022, os próximos dez anos reservam um contingente expressivo de término de outorgas no setor: 83 concessões de hidrelétricas, englobando 20 GW de capacidade instalada; 24 concessões de transmissão, totalizando 8 mil quilômetros de extensão de linhas; e 20 concessionárias de distribuição, responsáveis por 60% do mercado nacional, oriundas do processo de privatização dos anos noventa. A Figura 1 contrasta o vencimento de outorgas atual com o término de concessões vincendas na época da MP 579, por segmento.
Figura 1 – Panorama do Vencimento de Concessões no Setor Elétrico Brasileiro
Fonte: Elaboração própria com dados de Engler & Dutra (2022).
Recente livro lançado pela FGV, coordenado por Mario Engler e Joisa Dutra – fruto do programa de Pesquisa & Desenvolvimento da ANEEL, em parceria com a EDP –, analisa em profundidade a prática brasileira no tema de renovação de concessões no setor elétrico, investigando experiências internacionais e de outros setores de infraestrutura no país. O livro destrincha o emaranhado de leis, decretos, medidas provisórias e seus efeitos permanentes para o destino das concessões – subsistem ao menos dezesseis normas vigentes voltadas ao tratamento do término das concessões no setor elétrico –, iluminando caminhos mais eficientes a serem percorridos.
Em meio ao emaranhado jurídico-regulatório, o setor ainda patina em processo de modernização que se estende há mais de cinco anos. O objetivo do presente artigo é investigar a experiência de renovação promovida por força da MP 579 e refletir sobre os desafios a serem enfrentados no término de concessões da próxima década, em horizonte de transformações aceleradas no setor elétrico.
As Concessões no Setor Elétrico
A atribuição de concessões no setor elétrico, assim como em outros setores de infraestrutura, é tema recorrente em países de tradição jurídica francesa, calcada sob a noção de serviço público como prerrogativa do Estado. Sob esta matriz, a exploração dos serviços pode ser concedida a terceiros, mas a titularidade se mantém pública, o que resulta em prazo determinado para a concessão, reversão de bens afetos à atividade e discussões em torno da eventual possibilidade de renovação ao fim da outorga.
A noção de serviço público se contrasta com a tradição norte-americana de serviços de utilidade pública, em que as atividades permanecem sob a esfera privada sujeitas a regulação motivada pelo interesse público do serviço (Loureiro, 2020). Neste contexto, a outorga se traduz em contrato suscinto de licença para exploração dos serviços, sujeita a regulação em esferas administrativas, como as Public Utilities Comission estaduais nos EUA de caráter multissetorial. A permanência da titularidade da outorga se preserva sob circunstâncias de correta observância das normas, da qualidade do serviço prestado e da inversão dos investimentos necessários (Brown, 2012).
Em países de tradição jurídica de serviço público, como na Europa e na América Latina, os processos de liberalização introduziram novos entes reguladores e tornaram a concessão dos serviços elemento crucial para a entrada de novos agentes.
As concessões garantem o direito de prestar serviços públicos mediante o recebimento de receitas decorrentes da exploração da atividade. Em geral, o direito é concedido por tempo determinado através de processo licitatório competitivo, com possíveis múltiplos critérios de seleção – maior pagamento de outorga, menor tarifa, melhor qualidade e capacidade para prestação adequada e/ou comprometimento com investimentos.
Em segmentos caracterizados por monopólio natural, a disputa busca selecionar principalmente concessionários capacitados para prover e expandir os serviços com tarifas reguladas ao longo do contrato. A regulação contínua ao longo do contrato tem por objetivo garantir a qualidade do serviço e controlar as tarifas, equilibrando o interesse dos consumidores e a sustentabilidade de longo prazo da concessão – a exemplo dos segmentos de distribuição e transmissão de eletricidade. Já para na geração, a disputa por outorgas enquadra-se em concessão de uso de bem público, garantindo a competição pelo direito de exploração de recurso escasso, como aproveitamentos hidrelétricos. A depender do regime de comercialização de energia, a concessão de usinas hidrelétricas pode envolver ainda disputas por apropriação de rendas inframarginais, tento em vista o baixo custo operacional de geração (IAC, 2011).
A concessão não envolve a transferência da propriedade dos ativos, apenas o direito para exploração e operação, com estreito envolvimento do Estado com o objeto concedido (Kerf et al., 1998). Nesta perspectiva, a concessão contém riscos intrínsecos relacionados à segurança jurídica, estabilidade institucional, autonomia e independência do ente regulador, além da própria reputação do Estado e do concessionário. As restrições inerentes às concessões elevam os riscos, aumentam o custo de capital e afetam as possibilidades e os termos de financiamento. As incertezas devem ser mitigadas através da construção de ambiente estável, seguro e previsível, e os riscos devem ser alocados adequadamente entre agentes capazes de gerenciá-los (Guasch, 2004).
As concessões estão circunscritas ao desenho contratual e seu processo de atribuição; e à esfera regulatória. Por um lado, a maior definição de parâmetros no desenho contratual tende a mitigar incertezas. Por outro lado, a maior definição em âmbito regulatório confere maior flexibilidade, desejável para ambiente em evolução.
Os contratos estruturam incentivos com impacto nas decisões de investimento em expansão, manutenção e operação. A duração das concessões deveria refletir o prazo necessário para amortização (ou depreciação) dos investimentos iniciais; porém, a recuperação de todos os investimentos pode ser impraticável ou indesejável, já que a provisão de serviços requer investimentos contínuos, de difícil previsão.
Neste sentido, outorgas com prazo excessivamente curto ou com possibilidade de resgate (reversão) da concessão ao longo do contrato podem amplificar os desafios relacionados à indenização de ativos reversíveis. A imposição de licitação reiterada como instrumento contestatório também pode negligenciar vantagens da permanência dos concessionários, decorrentes de informações reveladas ao longo do contrato. Para outorgas com prazos curtos, a licitação reiterada também pode onerar excessivamente a atividade licitada, face à indenização de ativos reversíveis e potenciais controvérsias para sua determinação. Por outro lado, a contestação tem por objetivo induzir maior eficiência na prestação e garantir igualdade de acesso à exploração. Deve-se sopesar potenciais custos, riscos e benefícios associados a licitação ou renovação das outorgas.
Dilemas na Renovação de Concessões no Setor Elétrico Brasileiro
No Brasil, por força constitucional (CF/1988, art. 21), compete à União os serviços de eletricidade e o aproveitamento de potenciais hidráulicos, podendo explorar direta ou indiretamente mediante outorga. As concessões ou permissões para prestação de serviço público devem ser outorgadas “sempre através de licitação” (art. 175). O dispositivo constitucional orientou a abertura do setor, favorecendo a concorrência com a entrada de novos agentes; porém, o tratamento para o término das concessões constituiu matéria controversa e incerta ao longo do tempo.
A exigência de licitação representou mudança radical para o setor elétrico, já que as concessões existentes não foram precedidas por licitação e muitas tinham prazo indeterminado ou vencido. No antigo regime de regulação pelo custo do serviço, dominado por empresas estatais, a renovação não se colocava como questão e a disputa de rendas ocorria na esfera tarifária.
Com a liberalização do setor na década de 1990 e a introdução de produtores independentes de energia, a renovação ou licitação de concessões torna-se relevante tanto para abertura e contestação, quanto para disputa por rendas entre concessionários, contribuintes e consumidores (sobretudo de usinas já amortizadas).
Em consonância com a Constituição, a Lei Geral das Concessões (Lei nº 8.987/95) determinou que as concessões sem prazo deveriam ser licitadas em dois anos.[1] Porém, lei subsequente específica para o setor (Lei nº 9.074/95) permitiu a prorrogação por 20 anos das concessões existentes outorgadas sem licitação, visando garantir qualidade de atendimento a custos adequados. A renovação permitida pela MP 579 abarcou exatamente as outorgas prorrogadas na década de 1990 por força da Lei 9.074. Esta lei limitou ainda o prazo das novas concessões de geração a 35 anos, permitindo a prorrogação por igual período.[2] Já as novas concessões de transmissão e distribuição tiveram o prazo limitado a 30 anos, prorrogáveis por igual período.
Adicionalmente, a lei que instituiu a ANEEL (Lei nº 9.427/96) determinou cláusula de prorrogação nas concessões do setor elétrico “enquanto os serviços estiverem sendo prestados nas condições estabelecidas no contrato e na legislação do setor, atendam aos interesses dos consumidores e o concessionário o requeira”.
Os procedimentos para prorrogação das concessões são estipulados pelo Decreto nº 1.717/1995 e pela Portaria DNAEE nº 91/1996. O pleito de renovação deve ser submetido à apreciação da ANEEL com pelo menos 36 meses de antecedência do término, a quem cabe a análise do processo e a recomendação da decisão ao Ministério de Minas e Energia, que emite decisão final (Batista, 2006).
Em 2004, o novo modelo setorial, instituído pela Lei 10.848/04, determinou a realização de leilões centralizados para atribuição de outorgas de geração e aquisição de contratos de comercialização de energia para o mercado regulado. Neste contexto, a lei reiterou o prazo máximo para novos contratos de concessão de geração em 35 anos, retirou a possibilidade de prorrogação para as novas outorgas e revogou a cláusula de prorrogação indefinida prevista na lei de 1996. Já para as concessões de geração existentes, a lei reviu o prazo de prorrogação da Lei nº 9.074/95, restringindo-o ao máximo requerido para amortização dos investimentos, limitando a extensão a 20 anos – sempre a critério do Poder Concedente e observada as condições estabelecidas nos contratos.
Após o novo marco setorial, ao longo dos anos 2000 foram prorrogadas inúmeras concessões existentes, após apreciação do tema pela ANEEL. Em 2004, a UHE Itupararanga da Votorantim foi prorrogada por 20 anos, sob regime de autoprodução e pagamento de uso de bem público. Em seguida, concessões de serviço público da CESP e CHESF foram prorrogadas por 20 anos de forma não onerosa.[3] Tendo em vista a impossibilidade de renovação das novas concessões (pós-2004) e a necessidade de respaldar o interesse público na prorrogação, a ANEEL apontou reiteradamente aprimoramentos ao marco setorial para determinação de critérios claros e objetivos para a admissibilidade da renovação. Na apreciação da renovação de usinas da CEMIG, em que pese alternativas propostas pela Agência, o Poder Concedente reiterou a prorrogação por 20 anos indistintamente (Batista, 2006 e 2013; Barcellos, 2008).[4]
Em 2008, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) instituiu um Grupo de Trabalho para “elaborar estudos, propor condições e sugerir critérios aplicáveis à situação das Centrais de Geração Hidrelétricas amortizadas ou depreciadas” (Resolução nº 4/2008). O Grupo investigou o destino das concessões que já haviam sido prorrogadas ao abrigo da Lei nº 9.074/1995.
A despeito de intenso e antecedente debate e nebulosa percepção de possibilidade de renovação[5], a MP 579 permitiu a prorrogação – por uma única vez, pelo prazo de trinta anos – de concessões de geração, transmissão e distribuição que já haviam sido prorrogadas nos anos noventa, por força da Lei nº 9.074/1995. Apesar da lei utilizar o termo “prorrogação”, o instrumento permitiu na prática a “renovação”, posto que implicava a repactuação dos termos contratuais.
A renovação ficou sujeita à aceitação expressa pelas concessionárias de novas condições contratuais. Para concessões de geração de serviço público existente em 1995, a renovação ficou sujeita à mudança de comercialização de energia para cotas de garantia física, com remuneração por tarifa regulada pela ANEEL e seus padrões de qualidade, além da isenção do risco hidrológico, que passou a ser alocado aos consumidores cativos. Para concessões de geração hidrelétrica destinadas a autoprodução com potência inferior a 50 MW, a renovação ficou permitida a título oneroso mediante pagamento de Uso de Bem Público (UBP) determinado pelo Poder Concedente e recolhimento da Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH). Posteriormente, esta possibilidade foi estendida a qualquer regime para concessão de hidrelétrica com potência entre 5 e 50 MW. A Figura 2 sintetiza as mudanças das possibilidades de renovação de concessões de geração.
Figura 2 – Possibilidades de Renovação de Concessões de Geração
Fonte: Engler & Dutra (2022).
Para as concessões de transmissão, a renovação ficou sujeita à receita de remuneração fixada por critérios estabelecidos pela ANEEL e seus padrões qualidade. Para as concessões de distribuição, a renovação ficou sujeita a aditivos contratuais com metas específicas de qualidade e equilíbrio econômico-financeiro para cada concessão, a serem alcançadas no prazo máximo de cinco anos, com extinção da concessão em caso de descumprimento, conforme estabelecido pelo Decreto nº 8.461/2015. A não aceitação dos termos propostos implicava a licitação da concessão.
Dentre as concessões de geração, foram renovadas apenas as outorgas de ativos com participação acionária da Eletrobras ou de suas subsidiárias. As empresas estaduais CESP (SP), CEMIG (MG), COPEL (PR) e CELESC (SC) não aderiram à renovação antecipada, com consequente licitação de seus ativos ao término das concessões. Já na transmissão, nove concessionárias aderiram à renovação da MP 579: quatro subsidiárias da Eletrobras, quatro empresas estaduais (CEEE, CELG, CEMIG e COPEL) e uma privada (CETEEP, fruto da privatização da transmissão da CESP). Dentre as concessões de distribuições, 33 concessionárias aderiram à renovação, enquanto seis distribuidoras controladas pela Eletrobras, atuantes no Norte e Nordeste, não aderiram para serem licitadas posteriormente.
Desdobramentos da MP 579
A premissa orientadora da MP 579 se calcava na percepção que os ativos já estavam amortizados e depreciados, o que justificaria reduzir a remuneração em prol dos consumidores cativos. Como enfatizava a exposição de motivos da MP 579: ”O tratamento dessas concessões busca a captura da amortização e depreciação dos investimentos realizados nos empreendimentos de geração e nas instalações de transmissão e de distribuição de energia elétrica, alcançados pelos artigos 19 e 22 e pelo § 5º do art. 17 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995, em benefício da modicidade tarifária, e visa garantir a segurança energética, pilares do modelo atual.”
Na geração, a tarifa regulada pela ANEEL ficou inicialmente limitada a montantes relacionados a custos de operação e manutenção, reduzindo sobremaneira a receita das usinas. Na transmissão, a primeira revisão da receita anual permitida (RAP) dos ativos renovados implicou redução de 70%. Já na distribuição, a captura de rendas se manteve restrita ao âmbito regulatório das revisões tarifárias da ANEEL, uma vez que a renovação não implicou onerosidade financeira às concessionárias.
A renovação antecipada também envolveu indenização de ativos não amortizados ou depreciados, cujos montantes foram calculados sob a metodologia de Valor Novo de Reposição. Os cálculos na época alcançaram cerca de R$ 21 bilhões em indenização – R$13 bilhões para transmissão, referentes a investimentos recentes em reforços na rede, e R$ 8 bilhões para as hídricas.
A MP 579 resultou, desta forma, em equação exótica: reduziu as receitas das concessões renovadas de forma regulatória, prescindindo da contestação licitatória para legitimação do valor arrecadado – independentemente de sua posterior destinação, para usuários ou contribuintes; renunciou receitas fiscais para os contribuintes em detrimento dos consumidores, que passaram a ficar expostos a riscos e custos elevados face à nova alocação do risco hidrológico; e garantiu indenização de ativos que permaneceram sob a titularidade dos mesmos concessionários. Neste contexto, a falta de interlocução e transparência ao longo de todo o processo resultou em judicialização e percepção crescente de risco no setor, afetando o valor das empresas com ações listadas em Bolsa.
Os anos seguintes à renovação antecipada promovida pela MP 579 exigiram uma revisão de rumo. As concessões de geração não renovadas foram licitadas em leilões realizados em 2014, 2015 e 2017. Apenas o primeiro leilão, realizado em 2014, ocorreu pelo menor Custo de Gestação dos Ativos de Geração (GAG). Em 2015, contemplou-se o maior deságio sobre uma tarifa teto, que passou a abarcar um bônus de outorga destinado à União (contribuintes) e a incluir na receita de geração uma parcela relacionada à investimentos (GAGmelhoria) além dos custos de operação e manutenção. Em 2017, o critério estabelecido no leilão foi o maior ágio sobre o bônus de outorga. Além de rever a destinação da renda hidráulica, a parcela de GAGmelhoria afastou a remuneração das cotas de mera cobertura de custos de O&M.
A destinação de receitas do processo de desestatização da Eletrobras também ilustra a disputa por rendas entre usuários e contribuintes. Incialmente, o Projeto de Lei que tramitava no Congresso, fruto das discussões da CP 33/2017 do MME, previa a destinação de 2/3 dos recursos para o Tesouro. Já a Lei nº 14.182/2021, que permitiu a desestatização, optou pela divisão equânime do valor de renovação dos contratos entre contribuintes (via bonificação de outorga) e consumidores (via aportes na Conta de Desenvolvimento Econômico – CDE).
No segmento de transmissão, a ideia inicial de que os ativos das concessões renovadas, as quais compunham a Rede Básica do Sistema Interligado Nacional, já estavam todos depreciados ou amortizados teve que ser rapidamente revista.
Os contratos de concessão dos ativos existentes (não licitados) de transmissão foram celebrados em 2001, por prazo de 20 anos, contados a partir de 1995. A partir de então, as receitas iniciais homologadas foram “blindadas”, impedindo revisões posteriores até o término dos contratos (julho/2015), contemplando apenas reajustes anuais inflacionários pelo IGP-M. Embora a MP 579 não tenha admitido a possibilidade de indenização dos bens existentes em 2000 na assinatura dos contratos, a redação final da Lei (12.783/13) previu a indenização de bens reversíveis registrados pelas concessionárias e reconhecidos pela ANEEL. Como não havia uma base de ativos constituída para esses bens – remunerados por meio de um valor financeiro blindado, reajustado pela inflação – a ANEEL teve que estabelecer uma base regulatória de ativos não depreciados, utilizando o Valor Novo de Reposição. A partir desta base, a RAP dos ativos renovados passou a considerar o custo de capital dos bens reversíveis não depreciados. A revisão da RAP em 2017 representou um aumento de 75% das receitas dos concessionários renovados, revertendo a redução alcançada provisoriamente pela MP 579.
Término de Concessões em Contexto de Transformações
O país partiu da intenção de regularização e contestação imediata das outorgas existentes com a Lei Geral das Concessões; adiou os impactos por vinte anos por meio da Lei 9.074; promoveu renovações não onerosas nos anos 2000; vetou a possibilidade de prorrogação para novas outorgas a partir de 2004; promoveu nova onda de renovações por meio da MP 579 a partir de 2012, intensificando a abrangência regulatória no setor; reorientou as licitações subsequentes para conciliar interesses de consumidores e contribuintes; promoveu a desestatização da Eletrobras associada a renovação das outorgas e futura descotização das usinas recém renovadas pela MP 579; e ainda terá que enfrentar vencimentos expressivos de outorgas nos próximos dez anos, sobretudo de distribuição e geração.
O tratamento para o término de concessões é terma recorrente no país, dado o prazo relativamente curto das outorgas e de suas prorrogações ou renovações. Experiências europeias apontam para prazos mais extensos, sobretudo para geração hidrelétrica e transmissão (Glachant et al., 2015); enquanto as experiências latino-americanas concentram prazos mais estreitos e, em alguns países, possibilidades de resgate antecipado da concessão (Engler & Dutra, 2022).
O dimensionamento do prazo das outorgas deve ser objeto de estudo aprofundado, investigando impactos para a sustentabilidade das concessões, custos de indenização de ativos reversíveis e incentivos aos investimentos frente a outros fatores que podem favorecer a preferência por prazos mais curtos – a exemplo da possibilidade de contestação do concessionário corrente, abertura para outros agentes e receitas fiscais.
Para os ativos de geração, segmento potencialmente sujeito à competição no mercado, urge a revisão da interdependência histórica entre o prazo da outorga e o prazo dos contratos regulados de comercialização de energia (PPAs). Em um contexto de liberalização da comercialização, com menor grau de centralização, concessionários e consumidores terão que lidar com diversidade de portfólio, com contratos com prazos e formatos diversos.
O tratamento aos contratos legados é tema sensível para o processo de liberalização do mercado; porém, incontornável. Neste contexto, a descotização das usinas da Eletrobras e a revisão do Anexo C de Itaipu constituem oportunidades nos próximos anos para facilitar o processo de abertura da comercialização para a baixa tensão.
Os estudos da ANEEL (Tomada de Subsídio nº 10/2021) e da CCEE, por força da Portaria MME nº 465/2019, voltados à liberalização da comercialização para a baixa tensão, ilustram a diversidade de temas e os desafios a serem enfrentados. Apoiada sobre esses estudos, a Consulta Pública nº 131/2022 recém aberta pelo Ministério de Minas e Energia (MME), não contempla cronograma de abertura imediata para consumidores de baixa tensão (Grupo B, com fornecimento em tensão inferior a 2,3 kV).
Dado a vultosa representatividade das outorgas vincendas de distribuição (60% do mercado nacional), o tratamento para o término dos contratos será estratégico para orientar o perfil da concessão e os investimentos nas próximas décadas. A Figura 3 apresenta a lista das concessões vincendas. Os grupos ENEL, CPFL, Neoenergia e EDP respondem conjuntamente por 81% do mercado vincendo. Esses controladores têm forte presença no segmento de redes, como ilustra a participação das redes de 46% no EBITDA de 2021 da Iberdrola (controladora da Neoenergia), de 42% da ENEL e 36% da EDP (Figura 4). O tratamento para o término das concessões deve levar em conta a presença estratégica dos grupos atuantes, incentivando o comprometimento com qualidade, ampliação dos serviços e investimentos no setor em ritmo apropriado às heterogeneidades regionais do país.
Figura 3 – Término de Concessões de Distribuição no Horizonte 2022- 2032
Fonte: Elaboração própria com dados de Engler & Dutra (2022).
Figura 4 – Participação das Redes no EBITDA de Grupos Europeus
Fonte: Elaboração própria com dados dos Relatórios a Investidores dos Grupos.
A despeito da possibilidade legal de renovação dos contratos, oriundos da privatização dos anos noventa, e da experiência recente de renovação isenta de onerosidade financeira, a renovação dos próximos contratos poderá facilitar o processo de liberalização do setor – desacoplando o serviço regulado de distribuição da atividade competitiva de comercialização – e acelerar os investimentos em modernização das redes. Não se deve, entretanto, adentrar na esfera de competência regulatória da ANEEL ou restringir o seu campo de atuação, reconhecendo que os processos tarifários tratam com maior flexibilidade a realidade contratual ao longo da vigência dos contratos.
A experiência da MP 579 é rica para aprimorar o processo decisório do Poder Concedente nas decisões a serem enfrentadas. A discricionariedade da decisão não pode implicar ausência de critérios claros e previsibilidade para todos os agentes, incluindo concessionários correntes e potenciais. Indicadores de sustentabilidade das concessões, como propõem Engler & Dutra (2022), podem indicar caminhos menos imprevisíveis e decisões mais informadas pelo Poder Concedente. A maior clareza de um novo modelo para a comercialização, com objetivos e desenho claros e período de transição plausível, é fundamental para dar coerência ao processo decisório e mitigar futuros custos afundados.
O horizonte que avizinha será marcado pelo inevitável processo de liberalização da comercialização, de digitalização e ampliação das redes e de inserção de recursos distribuídos e novos agentes no setor. O contorno das concessões poderá acelerar ou retardar o caminho a ser percorrido, impactando a distribuição de rendas e a competitividade da energia no país.
Referências
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Notas
[1] Antes da reforma liberalizante da década de 1990, questões pertinentes às concessões eram tratadas pelo Código de Águas de 1934, que tornou a União titular de todas as atividades do setor (até então, de titularidade municipal), e pelo Decreto nº 41.019/1957. Até a década de 1990, as concessões eram outorgadas a empresas estatais federais e estaduais (respeitando a territorialidade), sem procedimento licitatório (Dias Leite, 2014).
[2] A Lei 9.074/95 determina que são objeto de concessão, mediante licitação os aproveitamentos hidráulicos superiores a 50 MW destinado a serviço público (SP), a produção independente de energia (SP) ou a uso de bem público destinado a autoprodução (AP). Aproveitamentos entre 5 e 50 MW são objetos de autorização, e inferiores a 5 MW são dispensados de outorga.
[3] Até 2003, foram prorrogadas 90 concessões de serviço público de hidrelétricas ao abrigo da Lei nº 9.074/95; e entre 2004 e 2012 foram prorrogadas mais 22 concessões nas mesmas condições (Batista, 2013).
[4] Constavam as seguintes alternativas: “não prorrogar, reverter as concessões à União e licitá-las; prorrogar por 20 anos, indiscriminadamente; prorrogar apenas pelo prazo necessário à amortização dos investimentos de cada usina, conforme cálculos efetuados com base em dados contábeis; prorrogar de forma condicionada (i) à destinação da energia assegurada ao ACR, ao término dos CCEAR celebrados no leilão de energia existente, realizado em 2004, e/ou (ii) ao pagamento de UBP, após a extinção da RGR (reserva de reversão), então prevista para dezembro/2010” (Batista, 2013).
[5] Para discussão aprofundada, conferir Batista (2009 e 2013) e Engler & Dutra (2022).
Sugestão de citação: Romeiro, D. L. (2022). Dez Anos da MP 579: Reflexões para o Término de Concessões na Próxima Década. Ensaio Energético, 02 de agosto, 2022.
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia pela PUC-Rio, mestre e doutor em Economia Industrial pela UFRJ. É pesquisador no Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI).