Ensaio Energético

As Redes de gás e a transição energética: o que esperar para o futuro?

1.    Transição energética e o gás

A transição energética está ganhando força com o desenvolvimento de um consenso político internacional sobre os desafios e implicações das mudanças climáticas. Um número cada vez maior de governos e empresas se comprometeu com a transição energética, visando atingir metas de emissões líquidas zero até 2050 ou 2060. A transição energética certamente afetará a forma como a energia é produzida e transportada.

Uma tendência importante para a descarbonização da economia é a eletrificação, utilizando fontes de eletricidade renováveis. No entanto, hoje apenas cerca de 20% do consumo final de energia é coberto pela eletricidade. Portanto, é improvável que a eletrificação possa substituir toda a demanda de energia coberta hoje por petróleo, gás e carvão. Novas fontes de energia de baixo carbono serão produzidas e transportadas por dutos. Neste cenário, o biometano, gás resultante da purificação do biogás originado de resíduos orgânicos, assume papel fundamental na transição. Trata-se de uma opção madura para descarbonização do gás natural com grande vantagem ambiental, já que permite a recuperação de resíduos emissores de metano, que tem grande impacto no aquecimento global.

A produção de hidrogênio sustentável a partir da energia elétrica renovável, através da reforma do gás natural, do etanol e do biometano com a captura e estocagem subterrânea de carbono (CCS) representa alternativa importante para descarbonização da cadeia do gás. Neste contexto podemos incluir os inúmeros projetos em estudo para produção de hidrogênio verde (a partir da eletricidade renovável). O Brasil tem enorme potencial para produção de biometano e de hidrogênio sustentável. No caso do biometano estudos apresentados pela Abiogas já apontaram um potencial de produção na ordem de 120 milhões de metros cúbicos por dia. Da mesma forma, o Brasil desponta como um grande protagonista no futuro mercado de hidrogênio em função da abundância de fontes renováveis de energia.

A pandemia e as rupturas energéticas na Europa causadas pelo conflito Ucrânia Rússia contribuíram para chamar atenção para a necessidade de garantir uma transição energética justa e segura. No caso da indústria do gás natural, a transição energética justa e com segurança requer o engajamento dos stakeholders para buscar inovações tecnológicas e regulatórias para preservar a eficiência econômica e promover o acesso às novas fontes de gás descarbonizado.

No caso Brasileiro, esta questão tem um significado particular uma vez que o mercado de gás natural ainda não é maduro e parcela considerável do país ainda não tem acesso ao gás canalizado. Desta forma, o país deverá buscar um caminho de desenvolvimento da indústria de gás inovador através da conciliação da transição energética com a eficiência econômica e a segurança de abastecimento, associadas ao desenvolvimento das redes de transporte e distribuição de gás por dutos, por vezes de forma complementar por outros modais como projetos de GNC ou GNL em pequena escala.

Para que efetivamente o biometano e o hidrogênio venham a figurar como protagonistas da transição, se faz necessária a superação de barreiras regulatórias e tecnológicas com a adoção de soluções que permitam a produção e transporte destes combustíveis em escala. Em particular, é fundamental estimular a integração e distribuição do biometano e hidrogênio ao mercado de Gás.

Compreender melhor as implicações da transição energética para as redes de gás e as maneiras pelas quais essa indústria deve se adaptar aos desafios da descarbonização é crucial para atingir os objetivos de carbono líquido zero no horizonte de 2050.

 

2.    Papel das redes de transporte e distribuição

É importante mencionar que a substituição do gás natural por outros tipos de combustíveis gasosos sustentáveis tende a ser um processo gradual. Uma estratégia para a descarbonização da indústria de gás natural é misturar gradualmente combustíveis sustentáveis, como biometano, hidrogênio verde e gás sintético renovável, nas redes de gás natural existentes. Outra estratégia é o desenvolvimento de redes de dutos dedicados a novas fontes de combustíveis, como o hidrogênio puro. Portanto, a transição energética na indústria de gás natural provavelmente exigirá a adaptação da rede de gás existente simultaneamente ao desenvolvimento de nova infraestrutura para transporte de hidrogênio puro.

A ENTSOG (2022) apresentou um Roadmap 2050 para a descarbonização da infraestrutura de gás na Europa como entrada para o Pacto Ecológico Europeu. Este Roadmap mostra que as redes de gás podem ser descarbonizadas e o biometano e CCUS serão elementos importantes da transição energética. A rede de gás forneceria gás natural descarbonizado ou hidrogênio para aplicações de transporte e indústria (ENTSOG, 2022). Sob essa configuração de rede, a produção de gás caminha para a descentralização, com o biometano sendo produzido localmente por meio de digestão anaeróbica ou gaseificação térmica de matéria-prima renovável e sustentável (IEA, 2018).

O transporte de hidrogênio pode ser feito em novos dutos dedicados ou por dutos já existentes por meio de mistura com gás natural. No caso da mistura de hidrogênio, também é possível utilizar tecnologias que permitam a separação do hidrogênio nos locais de aplicação final.

É importante mencionar que o hidrogênio também pode ser produzido no ponto de consumo. Hoje em dia, a maior parte do hidrogênio é produzida localmente pela reforma do gás natural e, como resultado, o gás natural é o combustível que é transportado por dutos e não o hidrogênio. A produção de hidrogénio verde a partir de fontes de energia renováveis também permite transportar eletricidade até ao ponto de consumo e produzir hidrogénio localmente. No futuro, a produção local de hidrogênio verde poderá ser um concorrente para o transporte de hidrogênio por dutos. No entanto, as fontes de abastecimento mais eficientes e competitivas não estão necessariamente localizadas próximas à demanda. Uma rede de gasodutos cria a oportunidade de reduzir o custo e tornar o hidrogênio mais acessível aos consumidores finais.

 

3.    Desafios para a preservação das economias de rede no setor de gás natural

Um desafio importante para a indústria do gás é preservar a integração das redes de gás e evitar o surgimento de ativos irrecuperáveis (stranded assets) em função de uma fragmentação do mercado, à medida que o uso de hidrogênio e biometano se desenvolve. O setor de dutos precisa se envolver oportunamente com as partes interessadas para desenvolver as inovações regulatórias e tecnológicas necessárias para promover a integração das redes de gás, visando preservar as economias de redes associadas à esta integração, tais como a eficiência e otimização logística e a redução do risco de desabastecimento.

Para que surja um sistema de gás integrado e híbrido, vários obstáculos devem ser superados. Em primeiro lugar, será fundamental criar um sistema de identificação e certificação de origem dos diferentes tipos de gás injetados na rede que seja aceito por todos os stakeholders. Este sistema é necessário para garantir que o biometano e o hidrogênio possam ser rastreados desde a produção e/ou importação até o consumo. Um sistema adequado de certificação permitirá vender separadamente a commodity gás, os certificados de CO2 e o certificado de Garantia de Origem. Essa separação permitiria a redução dos custos de transação e criaria um mercado líquido para novos tipos de gases de baixo carbono.

Outro obstáculo importante a ser superado é a necessidade de novas normas técnicas referentes às misturas hidrogênio-metano, bem como a revisão das normas técnicas das aplicações de uso final. O processo de revisão da norma é complexo e demorado, pois todas as partes interessadas devem estar envolvidas.

 

4.    Interiorização do gás através de redes estruturantes e projetos de suprimento por GNL de pequena escala

O transporte e a distribuição de gás canalizado têm a missão prover infraestrutura de redes e induzir o desenvolvimento da indústria do gás, principalmente nos projetos de interiorização. Assim, ao estimular a produção de biometano, as distribuidoras têm a oportunidade de desenvolver redes estruturantes para o atendimento de localidades não integradas a malha de gasodutos, que podem ser supridas por um gás renovável produzido localmente e/ou abastecidas por GNC e GNL de pequena escala.

Pensar formas de distribuir biometano canalizado em redes isoladas ou distribuir um “blend” de Gás Natural e Biometano nas redes de distribuição é um benefício tanto econômico quanto socioambiental.  Esta estratégia permite antecipar o atendimento ao mercado em regiões onde os dutos ainda vão chegar, através do uso complementar de outros modais de transporte do gás como rodoviário, ferroviário e aquaviários de pequena escala (GNC ou GNL), para dar segurança de fornecimento para estes sistemas isolados conhecidos como redes estruturantes.

O maior potencial de produção de Biometano está no interior do país. Por vezes chamado de “Pré-sal Caipira”, o biogás originado da produção sucroalcooleira e agrícola pode ser um vetor importante para interiorização do gás no país, através do suprimento de regiões não atendidas pelas redes de gás atualmente. Desta forma, é importante o alinhamento entre governo e stakeholders privados em torno de uma visão estratégica sobre a transição energética no setor de gás natural e o papel das redes estruturantes e da produção de novas fontes de gás descarbonizados para o desenvolvimento de novos mercados e da integração da malha de gasodutos nacional.

 

5.    Referências

ENTSOG (2022). ENTSOG 2050: Roadmap for gas grids. Disponível em: https://entsog.eu/sites/default/files/2019-12/ENTSOG%20Roadmap%202050%20for%20Gas%20Grids.pdf

FUEL CEL & HYDROGEN (2022). Hydrogen Roadmap Europe: a Sustainable Pathway For The European Energy Transition.  Available at: https://www.fch.europa.eu/sites/default/files/Hydrogen%20Roadmap%20Europe_Report.pdf

GONDAL, Irfan Ahmad. (2019) “Hydrogen integration in power-to-gas networks”, International Journal of Hydrogen Energy, Volume 44, Issue 3, 2019, Pages 1803-1815, ISSN 0360-3199, https://doi.org/10.1016/j.ijhydene.2018.11.164.

HAINES, M.R.; POLMAN, W.; DE LAAT, J.C. (2003). “Reduction of CO2 Emissions by Addition of Hydrogen to Natural Gas.” Presented at the 2004 Greenhouse Gas Control Technologies conference, Vancouver, Canada. http://www.ghgt.info/.

IEA (2021b). Net Zero by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector. Flagship report.  IEA, Paris. Disponível em: https://www.iea.org/reports/net-zero-by-2050

OECD (2021). Understanding Countries’ Net-Zero Emissions Targets. Available at: https://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=COM/ENV/EPOC/IEA/SLT(2021)3&docLanguage=En

POUDINEH, R. (2022). “Energy Networks in the Energy Transition Era”. OIES Paper: EL 48. Oxford Center for Energy Studies. University of Oxford.

 

Sugestão de citação: Rosa, G., Almeida, E. (2022). As Redes de gás e a transição energética: o que esperar para o futuro?. Ensaio Energético, 24 de outubro, 2022.

 

Giovane Rosa

palestrante, engenheiro especialista em gestão empresarial, tem mais de 20 anos de experiência como executivo C-level no mercado de gás e energia, atuando em grandes empresas como Scgas, Mitsui Gás e Ebrasil Energia. Atualmente, é CEO da Gás Orgânico, empresa de consultoria e desenvolvimento de negócios, integrando Biogás, Biometano e Hidrogênio Verde ao mercado de Gás e Energia.

Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.

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