Ensaio Energético

O caminho para o mercado atacadista organizado de gás natural no Brasil: principais avanços e desafios

O mercado de gás natural no Brasil se encontra em uma fase de transição entre o mercado físico pré-Nova Lei do Gás, marcado pela compra e venda através de contratos bilaterais de longo prazo e baixo acesso de terceiros ao sistema de transporte e às instalações essenciais, para um mercado físico pós-Nova Lei do Gás, com independência e autonomia dos transportadores e acesso não discriminatório (ANP, 2021). Esse estágio ocorre devido aos desafios para implementar um conjunto de ações com vistas à abertura do mercado brasileiro de gás natural tomadas até o momento.

Em 2019, os primeiros marcos da transição foram tomados com o Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) entre Petrobras e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Essas ações vislumbram a separação dos elos da cadeia do gás, o livre acesso de terceiros ao transporte e a diversificação da oferta. Na ocasião, a companhia se obrigou a vender suas participações acionárias em empresas transportadoras e distribuidoras de gás natural. A Lei 14.134/2021 estendeu a norma de desverticalização total ao impor que o transportador deve atuar com independência e autonomia em relação aos agentes que exercem atividades concorrenciais da indústria de gás natural, sob certificação expedida pela ANP. A Petrobras também se obrigou a negociar o acesso não discriminatório de terceiros aos sistemas de escoamento e às unidades de processamento. No entanto, todos os produtores privados no sistema integrado brasileiro continuam vendendo seu gás para a Petrobras que, além disso, é responsável por cerca de 70% da produção nacional de gás natural, podendo ser necessário um programa de gas release para diversificar o mercado. Do lado da demanda, a liberalização do mercado final de gás exige a autonomia dos comercializadores livres para participaram do mercado atacadista, podendo escolher, diretamente, seus supridores de gás natural, porém isso depende da harmonização das regulações estaduais. É muito importante que os agentes dos diferentes segmentos do setor superem divergências e alinhem seus interesses em busca do mercado concorrencial de gás (ANP, 2018).

A Petrobras também declinou da exclusividade de carregadora inicial e está indicando suas demandas nos pontos de entrada e de saída do sistema de transporte. No mês passado, por exemplo, a TAG identificou capacidade remanesceste de até 22 milhões de m³/dia na sua malha integrada, que poderá ser oferecida com a assinatura do acordo de redução de flexibilidade dos contratos legados a partir do início do ano que vem. Isso antecipa a oferta de capacidade pela empresa, que no momento trabalha em uma Chamada Pública Incremental para prestação de serviços de transporte a partir de 2023. No momento, apenas a TBG oferta capacidade disponível ao mercado.

Os serviços de transporte de gás natural sob novos contratos passaram a ser oferecidos no regime de contratação de capacidade por entrada e saída, em que a entrada e a saída podem ser contratadas de forma independente, sem prejuízo aos contratos vigentes. Nesse modelo, o gás injetado pode sair em qualquer ponto do sistema, o que aumenta consideravelmente a flexibilidade para os carregadores e cria uma commodity mais homogênea (fungibilidade), reduzindo barreiras à entrada e fomentando as trocas. Espera-se que, com a introdução desse sistema no Brasil, o número e o volume negociado passem, gradativamente, a ter o Ponto Virtual de Negociação (PVN) como local de referência para transferência de titularidades.

A simplificação das características espaciais e temporais da rede de transporte e a maior flexibilidade comercial, por sua vez, implicam em maior complexidade operacional e exige balanceamento do sistema de transporte. O balanceamento é o gerenciamento das injeções e retiradas de gás natural e passa pela ideia de que a logística do mercado de transporte deve suportar o mercado de gás, com equilíbrio dos usuários e execução eficiente e segura dos serviços de transporte. Boa parte dessa complexidade será administrada pelos transportadores, que devem prover produtos de curto prazo e informações sobre o status da rede e ações necessárias de balanceamento para que os carregadores possam fazer o balanceamento primário, além de realizar o balanceamento residual (KEYAERTS, 2011). Isso pode ser feito pelo desenvolvimento de plataforma de balanceamento com isonomia de acesso e produtos de mercado de curto prazo padronizados, que serão a semente para um mercado de ajustes e um ambiente mais amplo de comercialização e liquidez. Durante a implementação do modelo de balanceamento, os transportadores não devem impor barreiras para o desenvolvimento do mercado líquido atacadista de curto prazo.

Portanto, o balanceamento acopla o mundo real e mundo físico do gás, sendo um elemento central para a formação do mercado concorrencial de curto prazo. O mercado atacadista vai aos poucos sendo desenvolvido e acessado, formando mecanismos de revelação de preço e contribuindo para o balanceamento e para o desenvolvimento da concorrência (HEATHER, 2010). Esse processo, no entanto, apresenta muitos desafios, como a definição de códigos comuns de rede entre as transportadoras e desenvolvimento de sistemas, ambos em fase de discussões no âmbito da ATGás. No Basil, esses desafios são ainda ampliados com os gargalos físicos e contratuais da rede de transporte, o que impede a formação de uma única área de mercado por enquanto, e as escassas opções de oferta flexível de gás. Isso pode criar barreiras à entrada nas fases iniciais da liberalização, dados os custos de transação dos carregadores para arcar com as  tarifas e penalidades de desequilíbrio, enquanto as condições para o gerenciamento de seus portifólios são incipientes. Isso revela a importância de regras claras e harmonizadas de balanceamento no arcabouço regulatório, além do desenvolvimento de mecanismos que otimizem interações entre os participantes e garantam a liquidez de mercado.

Com o desenvolvimento de mercados de curto prazo, surgem também os mercados secundários de molécula e de transporte. Embora o mercado de transporte seja afetado pelo poder de mercado das empresas transportadoras, a revenda de contratos de transporte introduz concorrência nesse mercado e facilita a alocação eficiente de contratos. A necessidade de revender contratos surge como resultado de mudanças de curto prazo na oferta e demanda dos usuários. Na ausência de um mercado secundário, os recursos ficam ociosos, resultando em desperdício de recursos e perda de oportunidades de comércio. Já o surgimento do mercado secundário permite que os contratos estabeleçam direitos de propriedade, podendo ser negociados pelos titulares.

O desenvolvimento de um mercado de curto prazo líquido e competitivo permite a formação de mercado organizado de gás natural (HEATHER, 2015). Os hubs são desenvolvidos onde há concentração de negociações, como interconexões de várias linhas de transmissão ou um ponto de negociação virtual. Neles, o gás natural e produtos padronizados podem ser negociados livremente por meio de mecanismos de mercado, com o gerenciamento de operadores responsáveis por serviços administrativos e operacionais, o que fornece a base para negociações no mercado à vista e de futuros. Caso as transações em um mercado spot de gás tenham liquidez suficiente para uma precificação transparente do gás, é possível criar um mercado de derivativos associado aos preços do mercado spot. Existem os mercados futuros de gás, sendo eles o Henry Hub, nos Estados Unidos, o NBP, no Reino Unido, o Title Transfer Facility – TTF, na Holanda.  

Segundo a Lei 14. 134/2021, o mercado organizado de gás natural é o espaço físico ou sistema eletrônico, destinado à negociação ou ao registro de operações com gás natural por um conjunto determinado de agentes autorizados, que atuam por conta própria ou de terceiros. O mercado organizado pode ser físico ou virtual e é administrado pela Entidade Administradora de Mercado de Gás Natural, mediante celebração de acordo de cooperação técnica com a ANP (BRASIL, 2021). No Modelo Conceitual de Mercado de Gás Natural da ANP (2020), o mercado organizado é único no sistema integrado de transporte, e as transações são realizadas por intermédio de contratos padronizados, com prazos de vigência variados (intra-diários a plurianuais) e referenciadas no PVN, a fim de reduzir os custos de negociação entre os agentes, conforme figura 1 abaixo.

Figura 1: Mercado Organizado de Gás com PVN

Fonte: ANP, 2021.

São agentes passíveis de atuar em mercados organizados os comercializadores, clientes e corretores (“brokers”). Para aderir ao Mercado Organizado, os participantes interessados devem celebrar um acordo de negociação. O mercado organizado pode nascer como mercado balcão e evoluir para um mercado de bolsa e de futuros, como mostra a Figura 2 abaixo. No mercado do tipo de balcão, as partes são conhecidas (transações bilaterais) e podem ser auxiliadas por corretores (brokers). As entregas ocorrem no PVN, e a liquidação é, via de regra, bilateral, com risco de inadimplência da contraparte, podendo eventualmente ser delegada a uma câmara de liquidação (Clearing). No mercado de bolsa, as negociações são anônimas e ocorrem em plataforma eletrônica. A entidade administradora da bolsa (ou entidade por ela assinalada) é necessariamente a contraparte, assumindo o risco de inadimplência, e as entregas também ocorrem no PVN, enquanto o gestor/transportador recebe notificações para registrar transferências de propriedade – sendo, portanto, uma ferramenta para que este mantenha o equilíbrio físico do sistema (ANP, 2021). A evolução e convivência desses ambientes de troca dependem da quantidade de agentes, do volume de trocas, do desenvolvimento dos instrumentos contratuais padronizados, das regras tributárias e da integração de áreas de mercado e facilidade para contratação do transporte (ATGás, 2021).

Figura 2: Mercado Organizado do Gás Natural

Fonte: ANP, 2021.

Dois tipos de produtos padronizados são negociados nos mercados de gás natural, à vista e futuros. Os contratos à vista têm o preço de liquidação determinado no momento da transação e tem, via de regra, entregas de gás intra-diária ou no dia seguinte, podendo abranger entregas até o fim de semana subsequente à operação. Os produtos à vista permitem que os remetentes equilibrem e otimizem seu portfólio no curto prazo. Os contratos a termo são utilizados para minimizar os riscos inerentes às negociações à vista, com entrega no futuro a preço negociado na data da entrega (HEATHER, 2015).

O mercado financeiro surge quando o mercado físico atinge uma certa liquidez e maturidade. Nele, o contrato futuro representa um acordo legal em que uma parte que abre uma posição no mercado futuro, na qual concorda em aceitar ou entregar determinada quantidade de gás natural atendendo às condições descritas pela bolsa e a um preço de ajuste prescrito. O swap é uma transação sob medida para gerenciamento de risco financeiro, no qual trocam-se os pagamentos com base nas mudanças no preço, enquanto fixam o preço que efetivamente pagam pela entrega física. Já o contrato de opções dá ao seu detentor o direito, mas não a obrigação, de comprar ou vender o contrato futuro subjacente a um preço e período especificados em troca de um pagamento único de prêmio. A variabilidade dos contratos beneficia os participantes porque eles podem firmar contratos que melhor atendam às suas necessidades, construindo uma carteira de contratos que minimiza os riscos de fornecimento e preço e maximiza ganhos, tanto a longo prazo quanto o curto prazo (JURIS, 1998).

O funcionamento de mercados organizados deve se basear na provisão de informação tempestiva, transparência, isonomia, segurança, sigilo, performance, credibilidade, supervisão eficiente e preservação dos entes regulados e do mercado. No Brasil, cabe à ANP acompanhar o funcionamento do mercado de gás natural e adotar mecanismos de estímulo à eficiência e à competitividade e de redução da concentração na oferta de gás natural com vistas a prevenir condições de mercado favoráveis à prática de infrações contra a ordem econômica. A supervisão da ANP deve ser feita em conjunto com as instituições que atuam no mercado, em especial a Entidade Organizadora de Mercado. No que compete à supervisão financeira, os agentes reguladores do sistema financeiro estarão à frente das diligências, contando com o auxílio da ANP mediante celebração de acordo de cooperação.

A Entidade Administradora de Mercado de Gás Natural deve possuir mecanismos de controle e supervisão e atuar em comunicação com a ANP. É necessário habilitar e manter o cadastro atualizado dos comercializadores, definir os produtos padronizados de gás, receber, registrar e processar as ofertas de compra e venda, comunicando aos interessados os resultados de suas operações, garantir o funcionamento da plataforma de negociação, atender ao fluxo e ao sigilo de informações, prover acesso à ANP aos dados referentes às negociações ocorridas nos mercados organizados, dar publicidade às regras de acesso e aos preços de referência e volumes comercializados.

O envolvimento da bolsa é importante para acesso a um grande número de participantes de negociação e concentração da liquidez em uma plataforma de negociação, eliminação do risco de contraparte, automação, isonomia e transparência por meio de preços de referência reconhecidos e da publicação de dados de mercado. Já, as agências de divulgação de preços são responsáveis pela coleta e divulgação de preços do mercado físico, como preços médios negociados, índices de preços e análises de mercado em geral. A atuação da agência de divulgação de preços é importante para dar garantia ao mercado e requer autonomia e idoneidade, por isso a mesma não deverá possuir participação societária relevante em agente autorizado a operar do mercado de gás natural (ANP, 2021).

Conclusões

O caminho para a maturidade do mercado de gás natural brasileiro não é curto e nem trivial, e o mercado atacadista é a fase final de um longo processo de liberalização. Olhando para experiências internacionais, vemos que não existem receitas prontas, mas conseguimos tirar boas lições que nos permitem refletir o que queremos do mercado de gás brasileiro e o que devemos fazer para que boas práticas regulatórias possam ser efetivamente aplicadas no país. Além disso, conhecendo as etapas de evolução do mercado concorrencial de gás natural, podemos nos antecipar aos próximos desafios. Nesse processo, porém, não é possível pular etapas e olhar para o topo de escada de Heather (2010) apenas não nos levará até lá. É essencial que a implementação das alterações dos marcos legal e regulatório do mercado de gás brasileiro seja acompanhada pela entrada de um número crescente de agentes, promovendo uma efetiva reestruturação da indústria.

Referências

AGÊNCIA NACIONAL DE PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS (2021)

———-  (2018). Mercados Organizados e Ponto Virtual de Negociação. 3º Workshop sobre o Modelo Conceitual do Mercado de Gás Natural. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-eventos/arquivos-3o-workshop-sobre-o-modelo-conceitual-do-mercado-de-gas/sim-anp.pdf.

ASSOCIAÇÃO DE EMPRESAS DE TRANSPORTE DE GÁS NATURAL POR GASODUTO – ATGÁS (2021). Modelo Conceitual. 3º Workshop sobre o Modelo Conceitual do Mercado de Gás Natural. Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-br/acesso-a-informacao/agenda-eventos/arquivos-3o-workshop-sobre-o-modelo-conceitual-do-mercado-de-gas/sim-atgas.pdf.

BRASIL (2021a). Lei Nº 14.134, de 8 de Abril de 2021. Dispõe sobre as atividades relativas ao transporte de gás natural, de que trata o art. 177 da Constituição Federal, e sobre as atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14134.htm.

———- (2021b). Decreto Nº 10.712, de 2 de Junho de 2021. Regulamenta a Lei nº 14.134, de 8 de abril de 2021, que dispõe sobre as atividades relativas ao transporte de gás natural, de que trata o art. 177 da Constituição, e sobre as atividades de escoamento, tratamento, processamento, estocagem subterrânea, acondicionamento, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Decreto/D10712.htm.

HEATHER, P. (2010). The Evolution and Functioning of the Traded Gas Market in Britain. OIE Paper NG 44. Disponível em: https://www.oxfordenergy.org/wpcms/wp-content/uploads/2010/11/NG44-TheEvolutionandFunctioningOfTheTradedGasMarketInBritain-PatrickHeather-2010.pdf.

——— (2015). The evolution of European traded gas hubs. OIES Paper: NG 104. Disponível em: https://www.oxfordenergy.org/wpcms/wp-content/uploads/2016/02/NG-104.pdf

JURIS, A (1998). The emergence of markets in the natural gas industry. World Bank: Washington, D.C. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/713751468739147642/127527322_20041117170610 /additional/multi-page.pdf.

KEYAERTS, N. (2011). Gas market distorcing effects of imbalanced gas balancing rules: Inefficient regulation of pipeline flexibility. Energy Policy Volume 39, Issue 2, February 2011, Pages 865-876.

Sugestão de citação: TAVARES, A. (2021). O caminho para o mercado atacadista organizado de gás natural no Brasil: principais avanços e desafiosEnsaio Energético, 13 de setembro, 2021.

Autora do Ensaio Energético. Analista de Relações Internacionais pela PUC-Rio, mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ, doutoranda em Ciências Econômicas pela UFF e pesquisadora do Grupo de Energia e Regulação – GENER/UFF.

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JJSousa
JJSousa
3 anos atrás

Excelente Matéria, Amanda.

Jacob Binsztok
Jacob Binsztok
Responder a  JJSousa
2 anos atrás

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