Ensaio Energético

O GT Modernização e as Novas Tecnologias: Medidas infralegais na Agenda Regulatória da ANEEL

Como conhecido, ao menos desde 2017 [1] vêm sendo lançadas luzes sobre a necessidade de revisão do modelo do setor elétrico, introduzido na década de 90 e readequado em 2004 [2].  Essa pauta decorre em certa medida do advento de inovações tecnológicas e mercadológicas que conduziram a uma nova conformação da matriz elétrica brasileira [3], ainda predominante hídrica, mas com penetração crescente de fontes renováveis variáveis.

Como consequência dessa alteração na proporção de participação de cada uma das diferentes fontes na matriz e da variabilidade das novas energias renováveis, mudanças na operação do sistema tornaram-se necessárias, exigindo maior utilização de serviços ancilares e evidenciando a percepção da necessidade de incremento no uso de resposta da demanda. Vêm surgindo, outrossim, novos modelos de negócio, como o de usinas híbridas, que oferecem a possibilidade de atenuação na variabilidade das curvas de produção ao se associar diferentes fontes.

Não por acaso esses três temas – serviços ancilares, resposta da demanda e usinas híbridas – são tratados no âmbito do Grupo de Trabalho da Modernização do Setor Elétrico (GT Modernização) instituído pelo Ministério de Minas e Energia (MME) [4] no vetor temático de Novas Tecnologias [5], um dos 14 (quatorze) propostos na pauta de trabalho originalmente divulgada [6].

Um dos aspectos inovadores desse grupo de trabalho tem sido a regulação participativa, caracterizada pelo envolvimento dos diversos agentes institucionais do setor no desenvolvimento dos temas e pela discussão frequente com os stakeholders, através não somente de consultas públicas, mas também de workshops e mediante a participação de associações no Comitê de Implementação da Modernização do Setor Elétrico, instituído pela Portaria MME nº 403/2019.

Isso tem especial relevância para a redução de assimetria de informação entre regulador e regulado e para a busca da construção de soluções alcançadas com maior grau de consenso, em posição mais próxima da ideia de decentred regulation [7], sob o aspecto de fragmentação na construção do conhecimento dos objetos a serem regulados.

Assim, é importante observar que dentre as questões a serem tratadas há diversas que dispensam alterações legislativas, exigindo tão somente medidas infralegais, sendo que os três temas aqui mencionados se enquadram essencialmente nesta condição, daí a relevância da Agenda Regulatória da ANEEL para a implementação dessa pauta, uma vez que essas matérias foram ou estão sendo tratadas desde 2019 e estão contempladas atividades regulatórias na agenda do biênio 2021/2022, envolvendo processos de participação pública para a construção de soluções, a saber:

Serviços Ancilares

Os serviços ancilares no Brasil foram originalmente regulados pela Resolução Normativa ANEEL (REN) nº 265/2003, posteriormente substituída pela REN nº 697/2015, atualmente vigente, que contempla os seguintes objetos passíveis de remuneração mediante assinatura prévia de contrato de prestação de serviços ancilares (CPSA) entre o agente e o ONS [8]: (i) autorrestabelecimento integral, (ii) controle secundário de frequência, (iii) sistema especial de proteção e (iv) compensação síncrona.

O mecanismo regulatório adotado para a obtenção dos serviços foi de contratação bilateral, com remuneração anual aprovada pela ANEEL mediante resolução homologatória para os serviços (i) a (iii), e remuneração por tarifa de serviços ancilares (TSA) para o serviço (iv).

Ocorre que com a forte penetração de fontes renováveis variáveis na matriz elétrica brasileira, especialmente no Nordeste, vem havendo expressivo aumento de demanda pela prestação desses serviços, a fim de assegurar a confiabilidade no fornecimento de energia, promovendo o aumento de flexibilidade para garantir a integração do volume crescente de fontes intermitentes.

Esse acréscimo de demanda traz a lume algumas questões, como a percepção pelo mercado de inadequação da remuneração praticada e, por outro lado, de parte do regulador e do formulador de políticas públicas, há a constatação de que o modelo de contratação e de remuneração, além do rol de serviços, estão defasados frente às novas demandas e em comparação com os modelos internacionalmente adotados, que contemplam mercados competitivos há mais de uma década (REBOURS et al 2007), havendo a compreensão da necessidade de modernização da moldura regulatória existente.

Nesse sentido é que esse tema é objeto do GT Modernização, que previu a introdução de mercado competitivo para a prestação desses serviços e a possibilidade de que o agente, após a separação de lastro e energia, preserve a condição de participar do mercado de serviços ancilares, circunstâncias contempladas no Projeto de Lei do Senado nº 232/2016 (PLS 232) [9], recentemente aprovado pelo Senado Federal e encaminhado à Câmara de Deputados para deliberação.

Paralelamente a essa medida, a ANEEL deu início a discussões para a modernização do tratamento regulatório da questão por meio da Tomada de Subsídios nº 06/2019, tendo o universo de questões postas transitado da revisão do modelo de remuneração à introdução de novos serviços, sendo que, dada a relevância da discussão, a Agenda Regulatória ANEEL para 2021/2022 prevê tratamento prioritário para a Revisão da citada REN nº 697/2015.

Importante notar que, como o aumento de participação de fontes eólica e solar não é um fato que se restringe ao Brasil, sendo um fenômeno internacional, a atualização da moldura regulatória relativa a serviços ancilares vem sendo objeto de discussão também em outros países, tendo a International Renewable Energy Agency (IRENA) produzido um relevante relatório em 2019 [10], em que aponta inovações necessárias na comunidade europeia.

A relevância que vem sendo dada ao tratamento do tema naquele mercado  tem relação com a situação atual da matriz europeia, mas também com a meta de alcançar um patamar de 32% de participação de energias renováveis em 2030 [11], o que mostra o quanto o Brasil deve avançar no tema, pois embora  o PDE 2030 projete a participação de cerca de 20% de fontes renováveis variáveis no mesmo horizonte, o submercado Nordeste que já conta atualmente com participação de 42,5% de fontes renováveis variáveis, sendo 36,9% de eólica e 5,6% de fotovoltaica [12]

Nesse sentido, para endereçar a variabilidade e incertezas trazidas pelas novas fontes renováveis, é necessário de fato redesenhar os produtos de serviços ancilares existentes de modo urgente, tanto no que diz respeito ao modelo de contratação e de remuneração, quanto em relação aos produtos existentes e seus provedores [13].

A realidade operativa do sistema brasileiro vem indicando a necessidade de reconhecimento de produtos específicos, pois a base hídrica do Brasil o distingue de muitos outros mercados e particularmente do mercado europeu.  Por exemplo, enquanto ali se fala em produtos de rampa, típicos de termelétricas, aqui a operação vem lançando mão da entrada e saída de unidades geradoras de hidrelétricas para a produção de efeito semelhante.  Assim, é imperioso olhar com atenção essa questão, que atualmente promove o desequilíbrio econômico-financeiro das concessões, na medida em que se provê um recurso para o sistema que não é contemplado nos contratos de concessão, pois aqui o produto demandado, essencialmente, não é a geração de energia, mas a flexibilidade e confiabilidade do sistema, impondo custos e riscos aos geradores sem a correspondente remuneração.

Além disso, quanto à remuneração desses serviços, é imprescindível que seja dado aos agentes o sinal econômico adequado, dando o incentivo necessário ao fornecimento, sendo importante pontuar que a adequada estrutura de prestação de serviços ancilares tem o potencial de minimizar os custos com despachos térmicos fora da ordem de mérito.

Assim, diante do cenário de inovação que é vislumbrado, tanto em aspectos tecnológicos quanto de condições de operação do sistema, pode fazer sentido considerar a introdução de projetos piloto para novos serviços ancilares [14], como uma espécie de sandbox regulatório, a exemplo do que foi feito para a implementação do mecanismo explícito de resposta da demanda disposto na REN nº 792/17.

É necessário, além disso, que assuntos conexos com este tema e que tenham tratamento regulatório separado, sejam avaliados e endereçados de forma harmônica. É o caso da discussão que está sendo travada a respeito de mecanismos de armazenamento, realizada por meio da Tomada de Subsídio ANEEL (TS) 011/2020, na medida em que uma das formas possíveis de se remunerar o uso de baterias é como serviço ancilar, o mesmo ocorrendo com a resposta da demanda.

Resposta da Demanda

A resposta da demanda consiste em instrumento de gestão de consumo energético pelos próprios consumidores, que respondem a condições de preço (mecanismos implícitos) ou a comandos do operador mediante pagamento (mecanismos explícitos), adotando medidas como a modificação de sua curva de consumo, diminuição ou corte da carga, deslocamento ou flutuação da carga, sempre com a finalidade de aliviar a demanda em momentos críticos, em que haja escassez de geração ou redução de confiabilidade.

Segundo relatório da Empresa de Pesquisa Energética – EPE [15], os ganhos da resposta da demanda são vários, dentre os quais destaca-se, para os fins deste artigo, a promoção de confiabilidade para o sistema, pela indução à redução de picos de demanda.

Conquanto ao tratarmos de resposta da demanda no Brasil haja uma tendência a se pensar somente no programa piloto introduzido por intermédio da REN nº 792/2017, que consiste em um mecanismo explícito, o país conta também com mecanismos implícitos, que são a Tarifa Branca, introduzida pela REN nº 733/2016, e a tarifa horo-sazonal, instituída Portaria DNAEE n° 33/1988.  Ambas consistem na aplicação de tarifas distintas em momentos diversos do dia, com a finalidade de promover o deslocamento do consumo dos optantes para os períodos de menor demanda, reduzindo o consumo em horários de ponta.  

As bandeiras tarifárias, previstas na REN n° 547/2013, alterada pelas RENs nº 593/2013 e 845/2019, igualmente, conquanto tenham sido percebidas pelo Tribunal de Contas da União – TCU [16] como não alcançando tal finalidade, consistem em mecanismo implícito de resposta da demanda, ao indicarem para os consumidores a ocorrência de período de maior ou menor escassez de energia, visando a redução de consumo em períodos de menor oferta de geração.

O programa piloto da REN nº 792/2017 [17], por outro lado, consiste em oferta de pagamento pela redução de consumo do grupo elegível. Sua aplicação, entretanto, não foi bem-sucedida. Uma crítica ao seu modelo consistia na necessidade de previsão de participação de consumidores livres e parcialmente livres de todo país, uma vez que incialmente houve limitação aos consumidores dos submercados Norte e Nordeste. 

Opinava-se também no sentido de que os participantes deveriam ser excluídos do mecanismo de rateio de inadimplências da CCEE (loss sharing), frente ao nó na contabilização da CCEE decorrente do grande número de litígios existentes, a fim de assegurar que os participantes efetivamente usufruam dos benefícios do programa.

Como resultado dessas críticas, a REN nº 911/2020 estendeu o programa a consumidores livres e parcialmente livres de todo o país e a Portaria MME nº 460/2020 determinou a exclusão dos participantes do loss sharing, havendo que se acompanhar se essas mudanças, somadas à implementação do preço horário de energia, introduzido em janeiro de 2021, promoverá estímulos suficientes à participação dos consumidores, verificação que se espera que ocorra neste ano, face ao prazo final do programa que ocorre em 27 de junho próximo e à previsão de sua análise como atividade ordinária na agenda regulatória da ANEEL 2021/2022, com ações previstas no segundo semestre de 2021.

Importante observar que a resposta da demanda é considerada como controle de frequência, um serviço ancilar, portanto, e é percebida pela IRENA como um mecanismo com capacidade de aumentar a liquidez e competição em mercados de serviços ancilares, contribuindo para reduzir a demanda por estes serviços e, portanto, os custos com sua prestação.

Assim, embora a questão da redução do custo com a prestação de serviços ancilares atualmente não seja ainda uma preocupação no Brasil, tendo em vista seu modelo remuneratório absolutamente precário, é relevante que se observe o aprimoramento do modelo relativo a ambos, serviços ancilares e resposta da demanda, de forma articulada, uma vez que o seu oferecimento pelos prestadores e utilização pelo operador do sistema de forma conjunta tem a possibilidade de otimizar de forma não desprezível a confiabilidade do sistema e reduzir custos globais do sistema elétrico nacional. Esta condição que pode ser potencializada com a inovação esperada para ocorrer em breve, consistente na introdução do mercado competitivo de serviços ancilares, contida no PLS 232.

Importante notar, entretanto, que, como apontado pelo MME no material elaborado para a aprovação do Plano Nacional da Expansão – 2050, apoiado pela tecnologia, o consumidor será mais responsivo aos sinais de preços, aumentando a eficiência econômica do sistema. 

Ocorre, entretanto, que não há uma política de instalação de medidores inteligentes no Brasil, de modo que, como observado pela EPE, a ausência de smart grids diminui a habilidade de avaliar o resultado dos programas existentes, pela ausência de informações importantes, como (1) elasticidade da demanda dos distintos grupos de  consumo, (2) perfil de alteração da demanda (redução, flutuação ou deslocamento) por região, submercado, grupo de consumidores e renda e (3) alterações segundo as estações climáticas [18].

Desse modo, embora a resposta da demanda seja um importante recurso a ser utilizado, sua aplicação no Brasil ainda é muito incipiente, sendo necessário, portanto, explorar outros recursos capazes de prover confiabilidade para o sistema de forma mais célere, como é o caso das usinas híbridas.

Usinas Híbridas

Embora as usinas híbridas sejam tratadas como inovação regulatória e tecnológica no Brasil, já se tem notícia de estudos e desenvolvimento desse tipo de projeto no cenário internacional há mais de uma década, com a utilização de combinações de diversas fontes.  A visão predominante sobre o tema é de que tais usinas são um modo de aumentar disponibilidade e flexibilidade dos sistemas elétricos e de aproveitar de forma otimizada diversas fontes primárias (PASKA et al 2009).

No Brasil o debate a respeito do tratamento regulatório das usinas híbridas [19] surge diante da possibilidade de promover otimização na gestão de custos de empreendimentos de geração, o melhor aproveitamento do uso do sistema de transmissão e a minimização da variabilidade de fontes pela associação de fontes distintas.  A adequada regulação de sua implantação tem o potencial de promover o aprimoramento do uso dos recursos energéticos disponíveis e de incentivar novos modelos de negócios e, em razão de todos os aspectos mencionados, de promover a redução do preço da energia para o consumidor final. Daí a importância da célere introdução do modelo regulatório aplicável.

Assim é que o tema foi objeto da CP 14/2019 ANEEL, em que diversas questões foram colocadas ao público pela Agência e respondidas em contribuições oferecidas por distintos players do setor. Posteriormente, foi aberta a CP 61/2020, que destinou particular atenção à hibridização de energias eólica e solar e analisou pontos como corte automático de geração, tratamento a ser dado aos descontos em TUST e TUSD e possíveis alterações em mecanismos de outorga.

Entretanto, a CP 61/2020 deixou de tratar de garantia física de usinas híbridas, que por disposição do artigo 2º, § 2º do Decreto 5.163/04 é matéria de competência do MME, tendo excluído expressamente da proposta de regulação a possível de hibridização de usinas hidrelétricas participantes do MRE e a otimização de contratação de uso dos sistemas de transmissão, que propôs alocar a processo distinto.

A agenda regulatória da ANEEL coloca como atividade prioritária em 2021 as adequações regulatórias para implantação de usinas híbridas sendo relevante, portanto, algumas considerações sobre o tema. Primeiramente, a importância de que seja aplicado o princípio de neutralidade tecnológica que norteia o GT Modernização, não se estabelecendo barreiras a diferentes composições e aplicações de distintas fontes.

Em um país que conta em 2021 com cerca de 65% de geração hidrelétrica em sua matriz elétrica [20], é fundamental a admissão de usinas híbridas com composição hidráulica e fotovoltaica, composição já bastante adotada e analisada do ponto de vista acadêmico (BO MING et al 2018).

Importante considerar, outrossim, que o tratamento da contratação do montante de uso de sistema de transmissão seja concomitante ao das demais questões abrangidas, uma vez que um benefício significativo desses arranjos é justamente otimizar o uso dos sistemas de transmissão, aproveitando a complementariedade entre os perfis de geração de diferentes fontes para o melhor aproveitamento dos montantes de uso, minimizando não somente o custo de geração da usina hibrida contratante, mas também o custo global de expansão da transmissão, reduzindo ociosidades, observada a cautela necessária quanto à preservação dos ativos de transmissão.

Fato é que a hibridização, a resposta da demanda e os serviços ancilares são temas em que é imperioso avançar, como mecanismos existentes e disponíveis para ampliar a confiabilidade do sistema, havendo, portanto, em certa medida, uma conexão desses três temas com outra discussão que está sendo travada no âmbito do GT Modernização: a separação de lastro e energia.

Outras conexões:  A ligação entre serviços ancilares, resposta da demanda e usinas híbridas à separação de lastro e energia

Ao se analisar detidamente as propostas do GT Modernização fica evidente que vários temas, embora separados em blocos, têm conexão muito direta entre eles. É o caso dos temas aqui tratados, no escopo de novas tecnologias, como a separação de lastro e energia, que são ligados pela discussão sobre confiabilidade. 

Tal como consta do Plano Decenal da Expansão – PDE 2030, a evolução projetada da matriz elétrica indica que o sistema brasileiro se torna restrito em potência, havendo necessidade de introdução de confiabilidade ao sistema, o que se provê de forma relevante pelos recursos analisados.

A proposta de separação de lastro e energia tem como finalidade adequar a alocação de custos e riscos da expansão e confiabilidade do sistema elétrico brasileiro, segregando a confiabilidade sistêmica do risco comercial de cada agente. 

A origem dessa discussão está centrada na modificação da matriz elétrica brasileira, uma vez que quando da introdução do modelo setorial as fontes existentes eram capazes de prover tanto capacidade quanto energia, o que não mais ocorre, mas tem também relação com a alocação de custos adequabilidade sistêmica frente à gradual abertura do mercado, sendo que o principal benefício esperado é assegurar a contratação dos atributos que garantem a confiabilidade do sistema, atribuindo de forma adequada os custos decorrentes.

Desse modo, embora, tal como consta do PDE 2030, a valoração de atributos associados ao lastro diga respeito especificamente à adequabilidade sistêmica, como energia firme e potência, e não a serviços ancilares, esses dois temas, e também a questão da resposta da demanda e das usinas híbridas, dialogam e têm uma causa comum, que consiste na integração de fontes renováveis variáveis na matriz elétrica nacional.

Contudo, é importante notar que embora a origem possa ter algum grau de conexão, a finalidade é distinta, uma vez que a separação de lastro e energia tem o fim de preparar o mercado para a abertura integral.

Conclusão

O sistema elétrico brasileiro tem passado por mudanças relevantes nos últimos anos, as quais se acentuarão no horizonte decenal, marcadamente pelos desafios impostos pela integração de fontes renováveis intermitentes. Nesse contexto, é necessário implementar medidas que mitiguem os efeitos das variações promovidas por essas fontes, o que traz a lume as necessárias discussões sobre a adequação da moldura regulatória relativa a serviços ancilares, resposta da demanda e usinas híbridas.

Importante pontuar, entretanto, as conexões existentes entre esses temas e a multiplicidade de outras questões cuja adequação ou introdução no modelo do setor elétrico é atualmente estudada, como armazenamento e separação de lastro e energia.

É relevante, ainda, notar que haja princípios aplicáveis de forma uniforme aos procedimentos de modernização [21], tanto para as modificações legislativas como para as medidas infralegais a serem implementadas. É o caso, por exemplo, do princípio da neutralidade tecnológica, que, diante das rápidas mudanças tecnológicas que ocorrem no mundo, deve ser observado a fim de evitar barreiras indesejáveis, que impeçam possíveis evoluções.

É evidente que o regulador e o formulador de políticas públicas encaram um enorme desafio, que consiste na necessidade de introduzir normas que promovam os elementos necessários não somente para a integração de fontes renováveis variáveis na matriz elétrica nacional e para assegurar a necessária confiabilidade. 

A regulação e as políticas devem ser adequadas para garantir a evolução do sistema e de novas tecnologias, sem a introdução de barreiras e assimetrias, assegurando não somente a segurança do setor elétrico, como também o crescimento econômico nacional, na medida em que a energia elétrica é um elemento fundamental para o desenvolvimento da economia.

Notas

[1] Mediante a Consulta Pública nº 33/2017 colocada pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

[2] Por intermédio da Lei nº 10.848/2004.

[3] Enquanto a matriz elétrica brasileira tinha participação hídrica superior a 80% na década de 90, os estudos do PDE 2030 divulgados pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE preveem a redução para 58,6% nesse horizonte, com a participação eólica e solar chegando, respectivamente, a 16,3% e 4,1%.

[4] Por meio da Portaria MME nº 187/2019.

[5] Outros temas do GT Modernização sob o escopo de novas tecnologias são tratados pela ANEEL, como a geração distribuída, objeto da Audiência Pública ANEEL (AP) nº 01/2019 e da Consulta Pública ANEEL (CP) n° 10/2018, AP 40/2019 e CP 25/2019, questão que tem previsão de tratamento prioritário na Agenda Regulatória 2021/2022.  Cabe também mencionar o armazenamento, abrangendo mecanismos como hidrogênio e usinas reversíveis, objeto da Tomada de Subsídio (TS) nº 011/2020 e com previsão de tratamento ordinário pela Agência Reguladora no biênio.

[6] Os outros enunciados originalmente contemplados são: (1) critérios de garantia de suprimento, (2) abertura de mercado, (3) sustentabilidade da distribuição, (4) formação de preço, (5) aprimoramento do MRE, (6) separação de lastro e energia, (7) governança setorial, (8) racionalização de encargos e subsídios, (9) desburocratização e melhoria de processos, (10) sistemática de leilões, (11) medidas de transição, (12) processo de contratação e (13) sustentabilidade da transmissão. Posteriormente foi incluído o tema integração dos mercados de gás e energia elétrica e hoje se fala em um possível novo tema: integração dos setores de energia elétrica e telecomunicações.

[7] Fazemos uso de aspecto limitado do tema, que avança no sentido da autoregulação e separação do papel da regulação exclusivamente realizada pelo Estado. Conceito citado por Maria João Rolim, fazendo referência a Julia Black.  ROLIM, Maria João C. P e KHOURI, Alice de Siqueira. Perspectivas Regulatórias para 2021 e o impacto sistêmico da pandemia no setor elétrico. Por MegaWhat. 22/Jan/2021. Disponível em: https://megawhat.energy/noticias/opiniao-da-comunidade-2/121766/alice-khouri-e-maria-joao-rolim-escrevem-perspectivas-regulatorias-para-2021-e-o-impacto-sistemico-da-pandemia-no-setor-eletrico.  BLACK, Julia. Decentring Regulation: Understanding the Role of Regulation and Self-Regulation in a ‘Post-Regulatory’ World. Current Legal Problems. 54. 10.1093/clp/54.1.103.

[8] Autorrestabelecimento parcial, controle primário de frequência e suporte de reativos enquanto as unidades geradoras fornecem potência ativa não têm remuneração reconhecia pela Resolução Normativa ANEEL nº 697/2015.

[9] O PLS 232 contempla outras propostas objeto do GT Modernização, como a separação de lastro e energia, a racionalização de encargos e a abertura de mercado, além de medidas de sustentabilidade da distribuição, dentre outras.

[10] Innovative Ancillary Services – Inovation Landscape Brief, International Renewable Energy Agency – IRENA, 2019.

[11] Vide European Comission. 2030 Climate and Energy Framework. Disponível em https://ec.europa.eu/clima/policies/strategies/2030_en. As fontes nesse caso são essencialmente as renováveis variáveis, eólica e solar.

[12] Fonte: Sistema de Informações da Geração da ANEEL (SIG). Disponível em https://bit.ly/2IGf4Q0

[13] O citado relatório da IRENA fala em novos produtos, como variação em rampa (ramping products) e baterias para regulação de frequência, mas também em novos provedores, como provisão de inércia por turbinas eólicas, suporte de potência reativa por usinas fotovoltaicas e usinas de armazenamento; e controle de frequência por mecanismo de resposta pela demanda por geração distribuída.

[14] A hipótese de projetos piloto é considerada pela IRENA, que sugere inclusive a possibilidade de projetos regionais.

[15] EPE (2019).

[16] Acórdão 582/2018 – TCU – Plenário (Data da Sessão: 21.03.18). O Voto do Relator conclui que a divulgação insuficiente desse mecanismo impediu a materialização dos seus possíveis impactos na efetiva redução de consumo. 

[17] Por força da REN 887/2020, o prazo do programa atualmente se estende a 27 de junho de 2021.

[18] Nota Técnica da EPE-DEE-NT-022/2019-r0.

[19] Para fins deste artigo trataremos usinas híbridas como gênero, não fazendo uso da distinção de nomenclaturas sugerida pela EPE na Nota Técnica no EPE-DEE-NT- 011/2018-r0. Usinas Híbridas – Uma análise qualitativa de temas regulatórios e comerciais relevantes ao planejamento.

[20] Fonte: Balanço Energético Nacional (BEM) 2020. Empresa de Pesquisa Energética – EPE.

[21] Para além daqueles “Princípios para Atuação Governamental no Setor Elétrico Brasileiro” indicados na Portaria MME nº 86/GM/2018.

Referências

BLACK, Julia. Decentring Regulation: Understanding the Role of Regulation and Self-Regulation in a ‘Post-Regulatory’ World. Current Legal Problems. 54. 10.1093/clp/54.1.103.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA – EPE. Usinas Híbridas – Uma análise qualitativa de temas regulatórios e comerciais relevantes ao planejamento. Nota Técnica no EPE-DEE-NT- 011/2018-r0. Junho de 2018. Disponível em https://www.epe.gov.br/pt.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA – EPE. Resposta da Demanda: Conceitos, Aspectos Regulatórios e Planejamento Energético. Nota Técnica EPE-DEE-NT-022/2019-r0. Julho de 2019. Disponível em https://www.epe.gov.br/pt.

Empresa de Pesquisa Energética – EPE. Plano Decenal de Expansão de Energia – PDE 2030. Disponível em https://www.epe.gov.br/pt.

European Comission. 2030 Climate and Energy Framework. Disponível em https://ec.europa.eu/clima/policies/strategies/2030_en.

International Renewable Energy Agency – IRENA. Innovative Ancillary Services – Inovation Landscape Brief, 2019.

Józef Paska, Piotr Biczel, Mariusz Klos. Hybrid power systems – An effective way of utilising primary energy sources. Renewable Energy 34 (2009) 2414-2421.

PAN LIU, Bo Ming. YANLAI, Lei Cheng. XIANXUN WANG, Zhou. Optimal daily generation scheduling of large hydro–photovoltaic hybrid power plants. Energy Conversion and Management 171 (2018) 528–540.

REBOURS, Yann G.KIRSCHEN, Daniel S.TROTIGNON, Marc, ROSSIGNOL, Sébastien. Survey of Frequency and Voltage Control Ancillary Services II. IEEE Transactions on Power Sistems, Vol 22, Nº 1, February 2007.  

ROLIM, Maria João C. P e KHOURI, Alice de Siqueira. Perspectivas Regulatórias para 2021 e o impacto sistêmico da pandemia no setor elétrico. Por MegaWhat. 22/Jan/2021. Disponível em: https://megawhat.energy/noticias/opiniao-da-comunidade-2/121766/alice-khouri-e-maria-joao-rolim-escrevem-perspectivas-regulatorias-para-2021-e-o-impacto-sistemico-da-pandemia-no-setor-eletrico

Sugestão de citação: Regis, V. V. (2021). O GT Modernização e as Novas Tecnologias:  Medidas infralegais na Agenda Regulatória da ANEEL. Ensaio Energético, 03 de março, 2021.

Vládia Viana Regis

Advogada, mestre em Direito da Regulação, com extensão em regulação de negócios de energia pela Florence School of Regulation, professora convidada de Regulação Jurídica do Setor Elétrico no MBA Executivo em Administração de Negócios do Setor Elétrico da FGV/RJ, membro da Comissão Especial de Energia Elétrica da OAB/RJ e do Instituto Brasileiro de Direto da Energia – IBDE.

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