O mercado de gás natural no Brasil se desenvolveu tendo a Petrobras como fornecedora, investidora e consumidora. A empresa possuiu uma função central no mercado incipiente, ao assumir os riscos dos vultuosos investimentos em infraestrutura. Dado que a Petrobras tem o controle da infraestrutura e das fontes de suprimento, as demandas por flexibilidade do mercado são integralmente solucionadas pela empresa, através da administração do portfólio de suprimento e utilização de modelos econômicos e operacionais para otimizar o fluxo de gás no sistema.
Desde 2016, o mercado de gás no Brasil iniciou um movimento para aumentar a competição no setor, devido a uma estratégia de desinvestimento de certos elos da cadeia seguida pela Petrobras. O processo de liberalização ainda está em curso e as questões regulatórias ainda não foram todas solucionadas, apesar dos esforços do Programa Novo Mercado de Gás.
A inserção de novos players no mercado de gás evidencia a necessidade de desenvolvimento de novos serviços de flexibilidade no sistema. Existe uma incompatibilidade entre a grande necessidade de flexibilidade pelo lado da demanda de gás em relação à oferta proveniente de novos players. A demanda das distribuidoras (firmes e com aversão ao risco de suprimento) e do setor elétrico (variável e imprevisível) são incompatíveis com as necessidades dos novos players locais (produção estável, com possibilidade de parada de manutenção, e pouca tolerância a variações de fluxo).
O objetivo do presente artigo é discutir a flexibilidade no contexto de liberalização do mercado de gás no Brasil. Após apresentar um panorama sobre as necessidades e instrumentos de flexibilidade estabelecidos no país, pretende-se analisar as possibilidades para o novo contexto de maior competitividade. Ademais, pretende-se explorar os desafios regulatórios que precisam ser superados para viabilizar o estabelecimento de novos instrumentos de flexibilidade no Brasil.
As necessidades e instrumentos de flexibilidade no Brasil: o papel da Petrobras
A indústria de gás natural é caracterizada por ser uma indústria de rede, devido a predominância do transporte via gasodutos, que implica em um elevado investimento na construção dos gasodutos, baixa flexibilidade e grandes economias de escala (Pinto et al, 2016). Essa condição torna o investimento no mercado de gás algo muito específico e rígido, sendo viabilizado apenas por contratos de longo prazo ou integração na cadeia. Dessa maneira, o estabelecimento de um mercado de gás natural é facilitado pela estrutura de monopólio, cabendo ao incumbente realizar os investimentos necessários e estimular o crescimento da demanda. Conforme o mercado amadurece, surgem oportunidades para a diversificação dos players desse mercado, com a estrutura se encaminhando para um modelo mais competitivo. Entrentato, para que esta dinâmica competitiva se instale são necessárias reformas regulatórias relevantes para permitir o acesso não discriminatório aos elos da cadeia de gás.
Em paralelo à questão de estrutura de mercado, existe a necessidade de modulação da oferta de gás conforme a demanda que pode ser variável e sazonal, de acordo com IEA (2002). Para isto é fundamental que um mercado de gás se estabeleça incluindo instrumentos de flexibilidade que permitam acomodar tais variações. Portanto, em um primeiro momento a estratégia de flexibilidade é feita de maneira centralizada, tendo o monopolista como controlador dos fluxos e otimizador do sistema. Com a evolução do mercado em direção a um ambiente mais competitivo, as questões relativas à flexibilidade tornam-se relevantes, principalmente em um contexto de transição.
O mercado de gás no Brasil tem dois componentes relevantes: uma demanda industrial firme com variações sazonais de pouca magnitude; e uma demanda do setor elétrico altamente variável e imprevisível. Esse perfil definiu as estratégias da Petrobras com relação à flexibilidade do sistema – a estatal é o principal agente do mercado de gás no Brasil desde sua criação, assumindo o controle do mercado em todos elos da cadeia. A empresa, por ser a única fornecedora, também é responsável pelas estratégias de flexibilidade do sistema.
A Petrobras é capaz de fornecer flexibilidade ao sistema de gás, devido ao seu amplo portfólio, pois possui o controle de todo o suprimento no sistema interconectado, da infraestrutura de importação e de parte da demanda (em suas próprias refinarias, termelétricas e fábricas de fertilizantes). Basicamente toda a infraestrutura relacionada ao mercado de gás foi desenvolvida pela Petrobras, que possui controle por todo midstream da cadeia de gás.
Além da oferta da molécula, a Petrobras também contratou toda a capacidade do transporte, assim como tem o controle operacional da capacidade de transporte através de sua subsidiária Transpetro (mesmo depois que a Petrobras vendeu 90% de suas ações, os novos proprietários da NTS e TAG, continuarão a usar a Transpetro por vários anos, sob contratos de serviço).
Dado que a Petrobras tem o controle da infraestrutura e das fontes de suprimento, as demanda por flexibilidade do mercado são integralmente solucionadas pela empresa, através da utilização de modelos econômicos e operacionais para otimizar o fluxo de gás no sistema, permitindo lidar com as necessidades de flexibilidade da maneira mais econômica.
A principal questão a ser abordada pela Petrobras na coordenação do mercado é como lidar com a demanda do setor de energia elétrica devido sua alta volatilidade. Nesse sentido, é bastante relevante que a empresa tenha instrumentos do lado da oferta para lidar com a necessidade de flexibilidade pelo lado da demanda termelétrica.
A solução da Petrobras para gerenciar a demanda altamente variável do setor de energia elétrica foi incluir GNL spot em seu portfólio, construindo três terminais de GNL e comprando no mercado spot internacional, quando necessário. Essa estratégia serve como instrumento de flexibilidade aumentar a injeção de gás no sistema, adicionando volume ao sistema quando as usinas são chamadas para despacho.
A Petrobras administra a importação de GNL conforme a probabilidade de despacho das térmicas de quem ela é fornecedora. A estatal executa um modelo, atualizando os dados de entrada constantemente, projetando o que poderia ser o despacho nas próximas semanas. Tomando os resultados do modelo, a Petrobras define o volume de GNL necessário para garantir o fornecimento às termelétricas. Em paralelo, a estatal também analisa as condições do mercado internacional de GNL, para avaliar se existe o risco de não encontrar cargas disponíveis no futuro próximo (por exemplo, se há baixos níveis de armazenamento no mercado asiático e é esperado um inverno intenso).
Considerando a demanda esperada da usina e as condições do mercado de GNL, a estratégia de aquisição da Petrobras é definida para disponibilizar o GNL quando houver probabilidade de despacho. Na maioria das vezes, o GNL é mantido nos metaneiros arrendados pela Petrobras[1] que se mantém próximos à costa brasileira, mas também existe a possibilidade de descarregar e usar o armazenamento FSRU (assim como devolver a carga da FSRU para o metaneiro para reexportação de volumes de GNL).
Se as termelétricas não forem chamadas a despachar, a Petrobras poderá revender a carga comprada no mercado internacional. Se houver atraso na entrega de uma carga, a Petrobras poderá gerenciar no curto prazo com outras opções de fornecimento (GNL armazenado em outro terminal, fornecimento doméstico, variação da produção doméstica e da importação da Bolívia).
As importações de gás da Bolívia também servem como instrumento de flexibilidade. A Petrobras pode seguir estratégias diferentes ao longo dos anos: pode importar o volume mínimo estabelecido pelo take-or-pay e usar a diferença até a capacidade máxima do gasoduto para modular a oferta quando há demanda adicional, ou importar o máximo e modular para baixo, conforme a demanda diminua[2]. Essa é uma estratégia que pode ser desenhada com base na localização da variação da demanda e dos preços relativos dos demais instrumentos de flexibilidade de oferta disponíveis. O Gráfico 1 exemplifica o uso dos instrumentos de flexibilidade relacionados às importações de gás e GNL em relação com a demanda de gás do setor elétrico.
Gráfico 1- Exemplo da utilização das importações de gás e GNL como ferramenta de flexibilidade
Fonte: Elaboração Própria com dados MME (2020).
A Petrobras possui outros instrumentos de flexibilidade da oferta, como por exemplo a produção em campos de gás não associado. O campo mais relevante nesse sentido é o campo de Manati. O Gráfico 2 apresenta o histórico de produção de Manati e das demandas térmicas e não térmicas da Região Nordeste. O campo de Manati é utilizado principalmente como instrumento para flexibilidade para baixo, dado que tem o incentivo de produzir na capacidade máxima e utilizar a variação entre o máximo e o limite do take-or-pay, conforme acordo entre o consórcio explicitado anteriormente.
Gráfico 2 – Exemplo da utilização de Manati como ferramenta de flexibilidade
Fonte: Elaboração Própria com dados ANP (2020) e MME (2020).
A Petrobras, por ter controle sobre a logística do gás natural, também tem acesso ao instrumento de flexibilidade no uso dos gasodutos de transporte, através do line packing. É um instrumento de flexibilidade relevante para corrigir desbalanceamentos do sistema, por períodos curtos (horas e dias), mas não é tão relevante para lidar com a grande variabilidade da demanda no Brasil.
Pelo lado da demanda, a Petrobras também tem a possibilidade de modular para absorver mais ou menos gás. A estatal tem importante participação no parque térmico e tem a possibilidade de gerar eletricidade além da chamada de despacho do ONS, para venda da energia ao mercado livre de energia. Nesse sentido, a utilização das térmicas serve como instrumento de flexibilidade para cima, com capacidade de absorver excesso de oferta no sistema.
A Petrobras também possui refinaria e plantas de fertilizante[3], que podem reduzir marginalmente seu consumo de gás, se configurando como instrumento de flexibilidade para baixo, mas de forma limitada.
A reforma regulatória no mercado de gás no Brasil
Nos últimos anos o mercado de gás natural no Brasil vem experimentando profundas mudanças estruturais, em consequência dos desinvestimentos planejados e efetuados pela Petrobras nos ativos de distribuição, transporte e de importação de gás natural. Em 2015, a Petrobras lançou a primeira fase do plano de desinvestimentos para o biênio 2015-2016, com plano de desinvestir US$ 13,7 bilhões, divididos entre as áreas de Exploração & Produção no Brasil e no exterior (30%), Abastecimento (30%) e Gás & Energia (40%) (Petrobras, 2015).
Em relação aos ativos do setor de gás, até o momento a Petrobras negociou a venda de 49% da participação da Gaspetro (subsidiária que tem participação em 19 distribuidoras), 90% da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), 90% da Transportadora Associada de Gás (TAG) (Petrobras, 2019a). A empresa ainda planeja vender participação nas térmicas, terminais de GNL, plantas de fertilizantes e as participações remanescentes na distribuição e transporte .
Mesmo que a Petrobras tenha iniciado as vendas de algumas participações em diferentes elos da cadeia do gás, o atual quadro regulatório brasileiro não incentiva a concorrência no fornecimento de gás natural e inibe a participação de novos participantes, porque:
- A Petrobras possui 100% das instalações essenciais (escoamento, UPGNs e terminais de regaseificação) e não é obrigada a dar acesso a terceiros, mesmo que possua capacidade disponível;
- A Petrobras contratou 100% da capacidade em dutos de transporte terrestre com contratos de longo prazo e, embora a lei determine o acesso de terceiros à capacidade disponível, não há capacidade disponível; e
- Como resultado, a Petrobras compra toda a produção de gás de outras empresas que a produzem na “boca do poço” ou antes da entrada na UPGN e comercializa 100% do gás vendido para distribuidoras e consumidores livres.
Como consequência, os planos da Petrobras desencadearam diversas discussões acerca das necessidades de ajuste regulatórios que se deram no âmbito da iniciativa “Gás para Crescer” iniciada em 2016 e coordenada pelo Ministério de Minas e Energia (MME), em conjunto com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Além de diagnosticar os problemas relativos à posição dominante da Petrobras ao longo da cadeia, a iniciativa propôs uma mudança de lei, que endereçaria as inconsistências da Lei do Gás em vigência e incentivaria a concorrência no mercado[4] .
Após anos de debate no âmbito da iniciativa Gás para Crescer sobre as questões da liberalização do mercado e a frustrada passagem do PL do Gás[5] na Comissão de Minas e Energia no Congresso, um novo fôlego para enfrentar as questões em aberto se dá com o Programa Novo Mercado de Gás (PNMG), lançado em abril de 2019.
Dentre inúmeras ações previstas no programa, uma delas diz respeito a participação da Petrobras no mercado de gás, incentivando a saída da estatal dos segmentos de transporte e distribuição (MME & ME, 2019). O programa também prevê o estabelecimento de acesso de terceiros às infraestruturas essenciais (gasodutos de escoamento, UPGNs e terminais de regaseificação).
Outros dois importantes acontecimentos trazem uma perspectiva de diversificação no mercado de gás brasileiro: (i) o vencimento de parte do volume contratado pela Petrobras de gás boliviano; e (ii) a Chamada Pública Coordenada para suprimento das distribuidoras de gás natural.
O gás natural da Bolívia era importado pela Petrobras através de um contrato que prevê o volume de 30 MMm³/d, com vencimento em 31 de dezembro de 2019. Em março de 2020, a Petrobras assinou com a YPFB um contrato para importação de 20 MMm³/d (YPFB, 2020), o que abre a oportunidade para a contratação direta das distribuidoras ou consumidores livres[6]. O movimento, em conjunto com a recontratação da capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia (que também teve vencimento parcial em 2019)[7], teria o potencial de diversificar os contratos e players, que têm a Petrobras como intermediário e único supridor. No entanto, devido às dificuldades e desalinhamentos de expectativas na Chamada Pública para Alocação de Capacidade de Gasbol, a importação de gás boliviano por novos agentes ainda não é uma realidade.
A Chamada Pública Coordenada das distribuidoras é um movimento das distribuidoras de gás natural da Região Nordeste e Sul/Sudeste para buscar melhor condição de suprimento, tendo em consideração o reposicionamento da Petrobras e a proximidade do vencimento dos contratos (ABEGAS, 2018). Por mais que a intenção tenha sido de diversificar os supridores, o resultado da Chamada indica que não há ainda um supridor capaz de fornecer gás nas mesmas condições que a Petrobras.
Além desses movimentos já em andamento e resultados pouco satisfatórios, existe ainda a expectativa por parte dos produtores atuais e potenciais de gás que necessitam acessar o mercado de gás para conseguir desenvolver os recursos de petróleo e gás offshore. A questão se torna sensível, em especial, para o desenvolvimento do Pré-sal por sua importância para o país.
A flexibilidade no processo de liberalização do mercado de gás no Brasil
O processo de liberalização do mercado de gás desenhado no Brasil tomou as experiências internacionais como base, principalmente do Reino Unido onde a BG tinha papel semelhante à Petrobras. No entanto, as condições de flexibilidade necessárias para o desenvolvimento do mercado não foram muito enfatizadas. Dentre os pontos debatidos na reforma que teme relevância para as condições de flexibilidade do mercado de gás estão: a estocagem de gás natural; e o acesso a infraestruturas essenciais, em especial terminais de importação de GNL.
Na iniciativa Gás para Crescer, a questão de flexibilidade foi encarada como um problema para viabilizar a comercialização do gás natural. No Subcomitê 04, que tratava da Comercialização de Gás, foram elencados quatro problemas que geram barreiras a comercialização de gás independente da Petrobras. O primeiro deles é exatamente a falta de flexibilidade do mercado brasileiro e a solução sugerida é principalmente no desenvolvimento de infraestrutura de estocagem de gás e mercado de curto prazo (Gás para Crescer, 2017).
A estratégia do Gás para Crescer estava voltada à redação de uma nova lei, em substituição à Lei do Gás (Lei nº 11.909 de 2009). A Nova Lei do Gás, sendo tratada através do PL nº 6.407/2013, está atualmente sendo processada pelas comissões da Câmara, mas em um processo lento e sem previsão de conclusão. As principais mudanças previstas no Projeto de Lei são:
- Modelo de tarifação por Entrada-Saída nos Sistema de Transporte;
- Separação total para novos transportadores e separação legal com certificado de independência para transportadores atuais;
- Operação coordenada por Área de Mercado;
- Plano de decenal de expansão da malha de gasodutos proposto pelos transportadores e aprovado pela ANP;
- Infraestrutura essencial com acesso negociado com regulação pela ANP; e
- Estocagem de gás passaria a regime de autorização – hoje é concessão e é um grande empecilho para o desenvolvimento do segmento.
Em um esforço de acelerar a mudança, em 2018 foi publicado o Decreto 9.616/2018 que modifica o Decreto 7.382/2010 que regulamenta a Lei do Gás de 2009. No Decreto de 2010, o art. 62 reflete o art. 45 da Lei do Gás a qual coloca que “os gasodutos de escoamento da produção, as instalações de tratamento ou processamento de gás natural, assim como os terminais de GNL e as unidades de liquefação e de regaseificação, não estão obrigados a permitir o acesso de terceiros.” O Decreto de 2018 não pode modificar o trecho definido em lei, mas adicionou a condição de que se negado o acesso em uma conduta configurada como anticompetitiva sujeitará os agentes às sanções cabíveis. Ademais, o Decreto determina que a ANP desenhará os códigos de acesso aos terminais e definirá os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos. Essa é uma solução que resolve parcialmente o problema, pois não dá a segurança jurídica necessária para investidores e entrantes. Um motivo é pela lei resguardar o direito “a não obrigação de acesso”, outro motivo é que as condições de acesso e resolução de conflito a serem definidas pela ANP só serão desenvolvidas em 2021 e 2023, de acordo com a agenda da agência (ANP, 2019).
O Programa Novo Mercado de Gás (PNMG) foi criado em 2019 para dar continuidade aos esforços do Gás para Crescer. Ambos os programas liderados pelo governo têm os mesmos objetivos de estimular a concorrência no fornecimento de gás natural, incentivando a participação de outras empresas e reduzindo a posição dominante da Petrobras. Mas enquanto a iniciativa Gás para Crescer se concentrou no projeto e construção de consenso sobre uma nova lei (que ainda está no lento processo legislativo), o Programa Novo Mercado de Gás está focado nas mudanças que podem ser feitas modificando a legislação secundária, bem como outras medidas (por exemplo, através da intervenção do CADE em comportamentos anticoncorrenciais da Petrobras). Como algumas questões só podem ser resolvidas pela mudança da Lei do Gás, em um segundo momento o PNMG previa a elaboração de um novo texto de lei e início do processo legislativo novamente, o que levaria mais diversos anos para elaboração e conclusão.
O Programa Novo Mercado de Gás teve como passo inicial a publicação da Resolução CNPE n. 16/2019, com foco principalmente nas questões relacionadas à atuação da Petrobras e à distribuição de gás natural, além de incluir diretrizes para as entidades federais (MME, ANP, EPE, CNPE e CADE). Dentre as medidas direcionadas à Petrobras, a Resolução definiu “a oferta de serviços de flexibilidade e balanceamento de rede, devidamente remunerados, garantindo a segurança do abastecimento nacional durante período de transição ou enquanto não houver outros agentes capazes de ofertarem esses serviços” (Item III, Art. 3º, CNPE, 2019). Portanto, está previsto que a Petrobras se mantenha como fornecedor de flexibilidade no mercado de gás, até que surjam outros players que forneçam esse serviço. No entanto, não define exatamente a Petrobras como supridor de última instância, que estaria responsável por fornecer gás caso ocorra interrupção na produção/entrega de outro fornecedor.
As questões relacionadas ao balanceamento do sistema foram incluídas na discussão regulatória, colocando a Petrobras como provedora desse serviço de flexibilidade até que o mercado desenvolva uma solução independente (CNPE, 2019). No entanto, não se desenvolveram indicações de como seria o processo para desenvolver essa solução, quais agentes poderiam assumir essa posição de fornecedor de flexibilidade e sob quais condições se estabeleceria esse serviço. Essa incerteza pode acarretar em relevante lentidão na criação de soluções de flexibilidade independentes.
A Petrobras teve escala suficiente para explorar diversas fontes com características de flexibilidade diferentes: gás importado por gasoduto e GNL do mercado spot, e produção doméstica em campos associados e não associados. A coordenação do portfólio permite à Petrobras otimizar a oferta escolhendo a fonte com menor custo para o nível de flexibilidade exigida pela demanda.
O principal desafio para novos fornecedores na indústria de gás no Brasil é justamente o custo da flexibilidade da oferta. O mercado das distribuidoras de gás encontra-se ainda dominado pela Petrobras e existem barreiras comerciais importantes para novos fornecedores. Este mercado é justamente aquele com demanda relativamente estável e que exige uma menor flexibilidade da oferta.
Cria-se assim um diferencial de competitividade muito importante a favor da Petrobras no contexto atual do mercado. A empresa não só possui muita flexibilidade de oferta, mas também tem um acesso privilegiado ao mercado das distribuidoras que apresentam menor necessidade de flexibilidade, em comparação com a demanda termelétrica.
De fato, o atual contexto tem demonstrado a capacidade da empresa em lidar com variações inesperadas no mercado. Com a queda abrupta da demanda de gás por consequência da pandemia do Covid-19, as distribuidoras estão negociando com a Petrobras a flexibilização das obrigações contratuais, como take-or-pay e encargo de capacidade. Uma diminuição relevante do fornecimento de gás só é possível com o portfólio da empresa, que pode diminuir importação e produção de gás não associado.
A transição de um mercado com a Petrobras administrando a flexibilidade e riscos de suprimento e demanda para um mercado em que riscos sejam compartilhados, necessita que as condições de flexibilidade sejam discutidas. O PNMG deveria atentar para a questão de flexibilidade e fomentar o debate e busca por soluções.
Conclusão
O Brasil possui alguns instrumentos de flexibilidade sendo administrados pela Petrobras, que controla o mercado e a estratégia relativa à modulação da oferta para lidar com a variabilidade da demanda. A Petrobras é capaz de fornecer flexibilidade ao sistema de gás, devido ao seu amplo portfólio, pois possui o controle de todo o suprimento no sistema interconectado, da infraestrutura de importação e de parte da demanda (em suas próprias refinarias, termelétricas e fábricas de fertilizantes). Pelo lado da oferta, a empresa utiliza a modulação da produção de campos de gás não associados, como o caso de Manati e Mexilhão, assim como importação de GNL no mercado spot. Ademais, é possível utilizar o gás importado da Bolívia como fonte de flexibilidade até o limite estabelecido na cláusula de take-or-pay. Pelo lado da demanda, a empresa consegue administrar as variações através da modulação, em pequena escala, das suas plantas de fertilizante e refinarias. Também é possível utilizar sobras de gás em suas usinas termelétricas, acumulando créditos na ONS.
A transição do mercado concentrado na atuação da Petrobras para um mercado com diversos players em todas cadeias do gás traz um desafio relevante para a questão de flexibilidade e segurança do sistema de gás. O PNMG vem endereçando as questões regulatórias do mercado, principalmente com relação a acesso às infraestruturas da cadeia de gás. No entanto, o problema de flexibilidade não tem sido discutido e esse é um ponto essencial no desenho de um mercado de gás competitivo. A questão pode ser resolvida pelo mercado, mas o estudo e direcionamento de incentivos às melhores opções podem levar a escolha ótima de menor custo. Ademais, a questão de flexibilidade, se não resolvida pelos players do mercado de gás, pode inviabilizar a abertura do mercado proposta pela PNMG.
A questão da flexibilidade no processo de liberalização do mercado de gás tem tido um papel pouco relevante. O PNMG deve endereçar a questão da flexibilidade e buscar a solução ótima, de menor custo para o sistema. É necessário compreender as necessidades de flexibilidade do lado da demanda e da oferta, e como os riscos associados podem ser gerenciados através de diversos instrumentos de flexibilidade. O PNMG poderia servir de local de diálogo entre os agentes, para entender como alocar essas necessidades e como a regulação pode incentivar o desenvolvimento desses instrumentos.
O que está em risco não é só a segurança do sistema em lidar com as variações do mercado, mas a própria inserção de novos players do mercado de gás – a efetiva liberalização do mercado. Sem resolver esse desalinhamento entre as necessidades de flexibilidade da demanda e da oferta, cai por terra qualquer tentativa de diversificação de players para além da Petrobras, que mantém seu status de fornecimento seguro.
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Notas
[1] A Petrobras possui 4 metaneiros arrendados para sua utilização que totalizam quase 600 mil m³ de GNL que podem ser transportados (Tupiassú, 2016).
[2] Essa era uma estratégia válida para o contrato de gás original, cujo vencimento foi em dezembro de 2019, mas também é válida para o adendo assinado em março de 2020, no qual a Petrobras negociou um máximo de retirada de 20 MMm³/d e um mínimo de 14 MMm³/d (YPFB, 2020).
[3] As plantas de fertilizante da Petrobras estão atualmente em hibernação, devido a falta de economicidade da produção de fertilizante. A estatal tenta vender os ativos em seu processo de desinvestimento.
[4] A atual Lei do Gás (Lei 11.909/2009) tem diversos pontos que necessitam de ajustes para lidar com o mercado de gás liberalizado. Dentre esses pontos, os principais são relativos a não obrigatoriedade de acesso de terceiros a infraestruturas básicas (escoamento, UPGN e terminais de importação) – a proposta de lei não impõe a obrigatoriedade, mas pelo menos introduz uma regulação sobre o assunto; planejamento de expansão da malha de gasodutos de maneira centralizada pelo governo por regime de concessão; contratos de transporte ponto-a-ponto (Gás para Crescer, 2017).
[5] O Projeto de Lei do Gás foi desenvolvido a partir das discussões do “Gás para Crescer” e tinha como objetivo substituir a atual Lei do Gás. O PL passou por discussão na Comissão, mas não houve consenso sobre o texto e após as eleições de 2018, o PL foi arquivado, sendo desarquivada por outro deputado interessado. Além disso, o MME assumiu uma estratégia distinta e não vai mais apoiar o texto da PL, que precisa de modificações para abarcar as diretrizes do novo governo (epbr, 2019).
[6] Já é um movimento em andamento, com a assinatura de memorandos de entendimento entre a YPFB e a Shell para compra de 10 MMm³/d de gás boliviano, com a Acron (empresa russa de fertilizantes que vai investir em fábrica de fertilizantes em MS) para compra de 4 MMm³/d, e a participação da YPFB na Chamada Pública Coordenada das Distribuidoras (Akly, 2019).
[7] A Petrobras possui três contratos originais de capacidade de transporte na TBG: TCQ (18 MMm³/d); TCX (6 MMm³/d); e TCO (6 MMm³/d). O primeiro teve vencimento em 2019 e foi o primeiro contrato que vai estabelecer o modelo de entrada-e-saída no país.
Sugestão de citação: Prade, Y. C. & Almeida, E. (2020). A falta de flexibilidade do mercado de gás no Brasil: um problema para o processo de liberalização. Ensaio Energético, 16 de novembro, 2020.
Editora-chefe do Ensaio Energético. Formada em Economia pelo IBMEC-RJ, mestre e doutora em Economia Industrial pela UFRJ, com doutorado sanduíche em Oxford Institute for Energy Studies.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.