Assim como a equidade de gênero ganhou destaque renovado nos últimos anos, também os temas na intercessão entre gênero e energia vêm ganhando interesse. Artigos como Morgan, et al. (2020) analisam, por exemplo, em que medida o acesso à energia elétrica impacta positivamente a vida de mulheres em países em desenvolvimento. Prade, et al., 2018, por outro lado, discutem a participação feminina no mercado de trabalho do setor e como políticas de recursos humanos que favorecem a participação feminina e a diversidade podem ter efeitos benéficos sobre a inovação nas empresas. Nessa intercessão dos temas, se situa também a transversalização de gênero (TG), ou gender mainstreaming em inglês.
Transversalizar a perspectiva de gênero, segundo o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (1997), é “o processo de avaliação das implicações para mulheres e homens de qualquer ação planejada, incluindo legislação, políticas e programas, em todas as áreas e para todos os níveis. É uma estratégia para fazer das preocupações de mulheres e homens uma dimensão integral do desenho, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas em todas as esferas políticas, econômicas e sociais, de modo que mulheres e homens se beneficiem de forma igual e para evitar perpetuar a desigualdade. O objetivo final é alcançar a equidade de gênero” (CEE Bankwatch, 2006).
A premissa básica é que projetos e políticas têm impactos diferentes em homens e mulheres, devido aos seus papeis sociais e status econômico. A TG surge para mitigar esses impactos negativos específicos em relação a gênero e se possível produzir impactos positivos. No caso de projetos de energia, por exemplo, foram identificados diversos impactos negativos específicos em relação a gênero na construção do gasoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan, entre o Azerbaijão e a Turquia. Segundo a CEE Banckwatch (2006), os trabalhadores trazidos para atuar no projeto, predominantemente homens estrangeiros, combinados a uma política de gênero fraca, trouxeram prostituição, tráfico humano, pobreza e HIV/AIDS. Situação análoga infelizmente se observa em projetos de hidrelétricas no norte do Brasil, com aumento de prostituição, tráfico humano, violência sexual e exploração, como relatam Giusti (2014) e Boechat (2015).
A promoção da diversidade e equidade de gênero, além de ter valor intrínseco, também gera valor para as empresas, tanto na mão-de-obra da empresa, quanto na cadeia de suprimento e na relação com a comunidade local, argumenta o IFC (2018). Segundo eles, maior diversidade na empresa e comunidade contribuem para um melhor desempenho da mão-de-obra e inovação, uma cadeia de suprimento mais segura e de menor custo e uma melhor relação entre empresa e comunidade, menos propensa a protestos e bloqueios. Valorizar esses benefícios, inclusive de forma quantitativa, pode ser um instrumento importante para angariar apoio para essa iniciativa.
Instituições do setor energético brasileiro já possuem diversas frentes de promoção de igualdade de gênero associado ao tema mais amplo da diversidade, a exemplo da criação, em 2018, do Comitê Permanente para Questões Gênero, Raça e Diversidade do MME e Entidades Vinculadas (MME, 2018), e da Política de Equidade de Gênero e Valorização da Diversidade do BNDES (BNDES, 2018). No entanto, o foco dessas ações têm sido principalmente a área de recursos humanos e conscientização do público interno (MME, 2018). Uma forma de ampliar a promoção da equidade de gênero no setor seria integrá-la à operação dessas instituições, de forma a impactar os projetos financiados ou aprovados por elas. Isso poderia se dar por um processo gradual, começando pela capacitação dos funcionários e desenvolvimento de processos, seguido por orientações, consultas e discussões com agentes setoriais, até que pudesse eventualmente ser incorporado à análise e aprovação de projetos nas instituições e bancos de desenvolvimento.
No plano internacional, a TG é uma prática difundida nas últimas décadas entre os principais bancos de desenvolvimento e agências de cooperação, como parte integral de suas políticas e planos de ação em relação a gênero, incluindo o Banco Mundial, o International Financial Corporation (IFC, braço do Banco Mundial para o setor privado), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Agência de Cooperação Alemã (GIZ). É importante fazer a ressalva de que a adoção de políticas de gênero e TG não são garantia imediata de desempenho perfeito nesse quesito, e algumas das instituições citadas já sofreram críticas (Kochladze, et al., 2011). Porém, de forma análoga a um processo de licenciamento ambiental, é um passo fundamental na direção correta.
O BID (2010), por exemplo, determina que “a transversalização da equidade de gênero será aplicada de forma sistemática a todas as intervenções de desenvolvimento do banco”. Portanto, todos os projetos devem passar por uma análise da sua contribuição sobre a equidade de gênero e, a depender do resultado dessa análise, o BID pode incorporar ações específicas para fortalecer essa contribuição. Tal ação pode tomar a forma de apoio financeiro e técnico para insumos operacionais, ou seja, para a aplicação de medidas no projeto. Ou pode ainda tomar a forma de cooperação técnica para difusão de conhecimento e capacitação institucional, de forma a melhorar a análise e TG nas próprias instituições governamentais, no setor privado e sociedade civil. A GIZ, que também aplica a TG a todos os seus projetos, segue o princípio de, em primeiro lugar, evitar impactos negativos sobre a equidade de gênero (“First, do no harm”), com medidas preventivas. Em seguida, busca promover impactos positivos com medidas proativas (“And do some good”) (Santiago, 2020).
O processo de transversalizar gênero em projetos se utiliza principalmente dos seguintes instrumentos (Kochladze, et al., 2011):
- Dados estatísticos desagregados com relação a sexo – Incluem, por exemplo, escolaridade, emprego, dívidas, crédito, propriedade de empresas, casas e terras, dependentes, salário, etc. No caso de projetos, esses dados devem entrar na etapa de desenvolvimento e também permitirão um monitoramento e avaliação eficazes. Além disso, eles informam se homens e mulheres estão participando do projeto como funcionários e beneficiários em todos os níveis.
- Análise de gênero – A análise é um requisito básico para a transversalização. Ela identifica, analisa e informa ações para endereçar disparidades, ou gaps de gênero, que advêm dos diferentes papéis de homens e mulheres, da relação desigual de poder entre eles e das consequências dessas disparidades sobre suas vidas. Ou seja, ela busca entender a natureza e o funcionamento das disparidades no contexto específico do projeto.
- Auditoria de gênero – Consiste na análise e avaliação de projetos, programas ou empresas como um todo em termos de critérios relacionados a gênero.
- Avaliação de impacto em relação a gênero – É o principal instrumento para implementar a TG. Ela ajuda a estimar os diferentes efeitos – positivos, negativos ou neutros – da implementação do projeto em termos de equidade de gênero. Ela deve ser feita no início do processo de decisão, de forma que o projeto possa ser adaptado ou reorientado. No caso de impactos negativos ou neutros, a avaliação pode ajudar o tomador de decisão a escolher entre diferentes alternativas de projetos ou de metodologias para o mesmo projeto. Os elementos identificados na avaliação também podem ser usados ao final, para comparar com os resultados de fato atingidos.
- Indicadores com perspectiva de gênero – São instrumentos para avaliar o progresso de uma intervenção específica em direção à equidade de gênero. Devem ser desagregados em relação a gênero, idade e grupo socioeconômico e devem refletir os objetivos locais e estratégicos relativos a gênero. Por exemplo, o percentual de mulheres e homens empregados ou em capacitação no projeto de energia.
O IFC preparou um relatório (IFC, 2018) para orientar empresas nesse processo, direcionado para a indústria de óleo e gás, mas aplicável a projetos de infraestrutura em geral. O foco são quatro áreas que devem ser observadas ao transversalizar gênero num projeto ou adotar uma política de gênero de forma mais ampla: a primeira é dentro da própria empresa, da mão-de-obra até o conselho, incluindo termos de referência para contratar uma auditoria de gênero, política de contratação e como construir apoio interno para soluções sensíveis a gênero. A segunda é a cadeia de suprimento, que inclui um código de conduta para lidar com negócios liderados por mulheres e como apoiar negócios locais liderados por mulheres. A terceira é na relação com a comunidade local, que inclui incorporar preocupações de gênero nas avaliações da comunidade, garantir a participação das mulheres em processos de consulta pública e desenhar um projeto de reassentamento sensível a gênero. A quarta e última diz respeito ao combate à violência de gênero, incluindo assédio sexual, voltado para ações dentro da empresa e para o impacto sobre a comunidade local. Para a maioria dos temas, o processo envolve uma avaliação inicial e preparação das ações, o endereçamento de fato dos gaps identificados e por fim o monitoramento, avaliação e manutenção da política.
Já há exemplos de sucesso da TG aplicada a projetos de energia, dos quais detalharemos dois que julgamos mais relevantes. O primeiro é da Hidrelétrica de Nachtigal, em Camarões. Com capacidade de 420MW, ela aumentará em 30% a oferta de energia elétrica no país, que atualmente atende apenas 60% da população. O IFC, que financiou o projeto, trabalhou em parceria com a Nachtigal Hydropower Company (NHPC) para melhorar o impacto do projeto sobre as mulheres nas comunidades afetadas. O primeiro passo foi enviar uma missão para uma avaliação inicial. Foram identificados dois principais gaps de gênero que o projeto iria endereçar: o primeiro foi o alto risco de violência de gênero no local do projeto e nas comunidades do entorno e poucos serviços para apoiar sobreviventes desse tipo de violência; o segundo, a baixa qualificação e poucas oportunidades para emprego de mulheres ou integração de negócios liderados por mulheres. Foi proposto então, um programa de dois anos de apoio à NHPC para mitigar o risco de violência de gênero e aumentar a participação feminina na mão-de-obra, cadeia de suprimento e como agentes comunitárias, além de apoio à capacitação local para ampliar as compras de insumos locais e o desenvolvimento econômico[IFC (2018), IFC (2019)].
O segundo exemplo é no Brasil: A termelétrica da Gás Natural Açú (GNA), de 1,3GW, associada a um terminal de regaseificação de GNL, localizada em São João da Barra, a 300km da cidade do Rio de Janeiro. Como o IFC é um dos financiadores do projeto, ele deve atender às normas denominadas Padrões de Desempenho do IFC. O Padrão de Desempenho 2 (IFC, 2012) trata das condições de emprego e trabalho e inclui a prática da não-discriminação e igualdade de oportunidades, assim como a obrigação de “tomar medidas para impedir e tratar questões de assédio, intimidação e/ou exploração, especialmente com relação às mulheres”, tanto para trabalhadores diretos quanto para terceirizados. O programa de combate à violência de gênero posto em prática pela GNA foi escolhido como referência pelo IFC, que publicou o estudo de caso (IFC, 2020). Ele conta com um Código de Conduta, com tolerância zero a qualquer tipo de violência, discriminação de gênero ou assédio, dentro do ambiente de trabalho ou fora dele, assim como a estruturação de um sistema de gestão contra violência e assédio, com diversos canais para denúncias, incluindo um canal externo tratado por uma empresa independente. O programa é conduzido em parceria com as empresas contratadas e abrange também ações de conscientização e treinamento.
A GNA também promoveu ações para contratar mão-de-obra local e promover a diversidade de gênero na mão-de-obra. A empresa criou um Programa de Qualificação Profissional em parceria com o SESI para treinar 520 pessoas da região, além de promover nove workshops de empregabilidade para 152 moradores locais. Em setembro de 2020, dos 3.775 trabalhadores na obra, os locais correspondiam a 80% dos empregados não-qualificados e 27% dos qualificados. Cerca de 20% dos inscritos no programa foram mulheres, o que possibilitou criar uma turma de solda exclusivamente feminina, da qual todas foram contratadas. Ao todo, 300 mulheres foram empregadas na obra, sendo a maioria em posições qualificadas, como soldadoras, eletricistas, engenheiras e gerentes. A empresa ainda discute o tema com as empresas contratadas e financiou a criação de um banco de currículos integrado que permite a busca por gênero de trabalhadores da região (GNA, 2020).
Este artigo buscou apresentar a transversalização da perspectiva de gênero aplicada a projetos de energia, trazendo aspectos teóricos e exemplos de sucesso, dado que o tema ainda não é amplamente difundido no Brasil. Em conclusão, longe de ser apenas mais um possível requisito para projetos de energia, a adoção da TG deve ser vista como uma oportunidade para o setor energético ampliar sua contribuição para o desenvolvimento do país, com benefícios na execução do projeto, criação de valor e ganho de reputação frente à comunidade local e à sociedade.
Nota
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Sugestão de citação: Araujo, M. C. P. (2021). Transversalização de gênero: Promovendo inclusão e equidade em projetos de energia. Ensaio Energético, 08 de março, 2021.
Maria Cecília Pereira de Araujo
Economista, formada pela UFRJ, com mestrado em Setor Elétrico pela Universidad Pontificia Comillas e em Economia pela Université Paris XI. Com dez anos de experiência profissional no setor, seus principais interesses são em desenho de mercado e transição energética, além de equidade de gênero.