Ao longo das minhas pesquisas sobre bioeconomia, com frequência, entrevistados sugeriam os sistemas agroflorestais (SAFs)[1] como importantes fontes sustentáveis às biomanufaturas. Dentre as justificas, eles mencionavam a capacidade dos SAFs de estocar carbono e de ofertar produtos da biodiversidade brasileira. No começo do ano, pude conhecer de perto o funcionamento de um SAF ao passar uma temporada no Sítio Jardins Marizá[2], um sítio que possui um sistema agroflorestal localizado bem no sertão da Bahia.
Eu pude acompanhar o dia a dia de um SAF e ver como o correto manejo produtivo e o consorciamento de diversas culturas possibilita um solo rico em matéria orgânica e com maior resistência aos estresses hídricos, vale lembrar que o sítio fica na região de caatinga do Brasil. A comparação entre o SAF e as outras propriedades da região é impressionante como pode ser observado na figura 1. Apesar de exigir trabalhos pesados, a vivência me possibilitou uma verdadeira “higienização mental”, me fazendo sentir feliz e parte de um ciclo. Também me possibilitou conhecer pessoas maravilhosas, como a Marsha Hanzi, proprietária do sítio e uma das mães da permacultura no Brasil.
Figura 1- Fotos do Sítio Marizá
Foto A- foto de drone do sítio principal; Foto B- Início do processo de recuperação de uma nova área; Foto C- Mel produzido na propriedade
Estando lá pude comprovar que a produção é realmente sustentável. Não há uso de fertilizantes químicos, a produção é orgânica, o plantio é direto, utiliza-se pouca irrigação e há muita biomassa (sob e sobre o solo). Porém, meus principais questionamentos sobre os SAFs estavam voltados para o quanto eles são capazes fornecer matérias-primas sustentáveis para as biomanufaturas, em especial, para a produção de biocombustíveis.
Esses questionamentos são relevantes ao Brasil que deu início ao processo de implementação do programa “Combustível do Futuro” que visa ampliar o uso de combustíveis sustentáveis no Brasil e, em especial, desenvolver o mercado de biocombustíveis de aviação (Bioqav).
Segundo Zhao et al (2021), a oferta de biomassa é o principal fator que impacta nas emissões de carbono das diferentes rotas de produção de biocombustíveis de aviação. Eles destacam, por exemplo, que a elevada emissão do biocombustível originário do óleo de palma, maior até que o combustível fóssil, como pode ser observado no gráfico 1, deve-se a forma como a produção do óleo de palma é realizada na Malásia e na Indonésia, acusada de gerar desmatamentos e conflitos na terra. Não por outro motivo, a Europa baniu o consumo de biocombustíveis de palma da Indonésia e restringe o consumo dos biocombustíveis de primeira geração (ZHAO et al., 2021).
Gráfico 1- Emissões de ciclo de vida padrão da ICAO para combustíveis elegíveis para CORSIA
Fonte (ICAO, 2019).
A oferta de matérias-primas por meio de SAFs é uma forma de atender a questão da sustentabilidade na produção de biocombustíveis. Para o Brasil, no caso das rotas de Bioqav que utilizam óleos (HEFA), há diversas possíveis fontes, como pinhão manso, a macaúba e a própria palma, que podem ser consorciadas em sistemas agroflorestais e abastecerem às biorrefinarias.
Porém, apenas a questão da sustentabilidade não é suficiente para a criação de uma cadeia de abastecimento às biorrefinarias, principalmente para a produção de Bioqav, que competirá com o QAV fóssil. Além da sustentabilidade, é necessário domínio tecnológico, escala produtiva e logística de distribuição (VAZ JÚNIOR, 2011).
A falta desses eixos explica em parte o insucesso do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) em diversificar a oferta de biomassa. Vale lembrar que a ideia original do programa era criação de cadeias de diferentes matérias-primas (mamona, macaúba, palma, pinhão manso, etc) que incluíssem a produção familiar. Hoje em dia, a produção de biodiesel é praticamente derivada de soja e de gorduras animais (Gráfico 2), produções competitivas que possuem escala e disponibilidade. No Brasil, a palma é considerada uma cultura que atende os critérios necessários para produção de biocombustíveis, todavia, a produção nacional é quase que toda destinada ao mercado de alimento, mercado mais valorizado.
Gráfico 2- Evolução da participação das diferentes matérias-primas na produção de biodiesel
Fonte: Elaboração própria com dados ANP.
Minhas observações em uma SAF
No Sitio Marizá ficou claro para mim que o correto manejo do solo, das plantas e dos animais possibilita um solo fértil e uma produção rica e diversificada. Porém, percebi que quase todo o trabalho de manejo é feito manualmente e com o uso de poucas máquinas. Enquanto me parece viável em pequenas propriedades, maiores escalas produtivas de SAFs podem exigir grande demanda por mão-de-obra o que pode inviabilizar empreendimentos.
A mecanização não me parece impossível, mas deve exigir adaptações em máquinas e equipamentos ou até o desenvolvimento de maquinário próprio, que atendam as especificidades regionais e das diferentes matérias-primas.
Outro ponto, atender biorrefinarias exige buscar maior qualidade das matérias-primas e maior garantia na oferta. Ou seja, é preciso contínua pesquisa e desenvolvimento na domesticação de espécies e a construção de arranjos produtos locais. O primeiro é necessário para atingir qualidade e produtividade, enquanto o segundo é necessário para e potencializar o suprimento das matérias-primas (VAZ JÚNIOR, 2011).
Quanto à domesticação, consegui observar esforços de busca de melhores variedades de plantas e testes com novas formas de manejo. Este me pareceu um esforço contínuo, porém, realizado de forma isolada (sem parcerias com centros de pesquisa), sem uso de técnicas de melhoramento genético “modernas” e sem o objetivo de atender biorrefinarias. Quanto ao segundo, percebi que há grande barreira dos produtores regionais em inovar, isto é, de usar as técnicas agroflorestais, e de formar arranjos.
O exemplo do Sítio Marizá é um verdadeiro processo de inovação que exige enorme compreensão das especificidades locais e de cada diferente planta. Como a própria Marsah Hanzi me disse, para chegar ao nível de produção que eles possuem hoje, foi necessária muitas tentativas e erros, em um processo que durou cerca de 20 anos. Quer dizer, investimentos em agroflorestais exigem um alto tempo de retorno, uma vez que as árvores podem levar anos para começar a dar rendimentos.
Em resumo, creio que o Sítio Marizá é um caso de sucesso que conseguiu transformas as terras do semi-árido brasileiro em verdadeiros oásis. Porém, quanto a sua capacidade de fornecer insumos às biorrefinarias, principalmente para a produção de biocombustíveis, creio que falta ainda grandes esforços de inovação, tecnológicos e organizacionais.
Outros exemplos de SAFs
Claro que minha vivência em um SAF não é suficiente para determinar os desafios de estruturação de novas cadeias de abastecimento. Para ter melhor ideia dos desafios, apresento outros exemplos de empresas que atuam com SAFs.
Rizoma Agro- Agroflorestas em larga escala
A Rizoma Agro é uma empresa localizada em São Paulo, ela é uma desenvolvedora de cadeia de suprimentos agrícola que surgiu para aproveitar o crescente mercado de produtos orgânicos. Ela foi fundada em 2018, mas suas origens datam de 2008, quando a Fazenda da Toca, uma grande produtora de ovos orgânicos no Brasil, foi criada. A Rizoma Agro pode ser considerada uma spin-off da Fazenda Toca e concentrou as atividades de agricultura regenerativa com impactos ambientais positivos (RIZOMA AGRO, 2021).
Importante, a Rizoma Agro financiou parte das suas atividades com a emissão de títulos verdes e foi a primeira empresa agrícola a ser certificada pela Climate Bondes Initiative (CBI). O título, emitido em 2020, teve valor de R$ 25 milhões e foram destinados a diferentes atividades. Parte deles para a construção de uma biofábrica que produz insumos biológicos, bactérias e fungos, utilizados para combater pragas e doenças na produção, evitando assim o uso de agrotóxicos.
Outra parte para financiar a produção em sistemas agroflorestais. A empresa já realiza P&D com sistemas florestais desde 2008, quando a Fazenda Toca fazia testes em cerca de 4 ha de SAF. Após o surgimento da Rizoma Agro, a área de SAF alcançou 50 ha. O limão é a cultura principal. As demais culturas são pensadas de forma a melhorar o rendimento do limão, seja oferecendo sombreamento ou melhores condições de umidade nos solos. A empresa ainda considera o seu projeto agroflorestal em estágio de desenvolvimento, mas já apresenta bons resultados. As próximas etapas envolvem a mecanização e o ganho de escala[3].
Tobasa Bioindustrial- Uma biorrefinaria de sucesso
A Tobasa é uma empresa tradicional que atua no processamento do coco do babaçu, um produto da biodiversidade brasileira. Ela possui uma biorrefinaria localizada em Tocantinópolis, estado do Tocantins. A empresa familiar construiu ao longo de décadas relações com pequenos produtores e estabeleceu uma cadeia eficiente de babaçu. Por meio de esforços internos de P&D, a empresa desenvolveu máquinas e equipamentos próprios que permitiram o uso integral do babaçu. Ao comprar o coco do babaçu inteiro e não apenas as amêndoas, como era comum, a empresa facilitou o trabalho dos produtores e ampliou o seu escopo de produtos. A Tobasa, além de produzir carvão ativado, seu principal produto, também produz biomassa energética e etanol.
Importante que o modelo de negócio da empresa só é viável com a atuação dos produtores rurais e extrativistas. Portanto, a compra do babaçu precisa dar retorno a todos os agentes da cadeia. Por valorizar um recurso da biodiversidade, a Tobasa faz com que a floresta tenha valor e, consequentemente, ajuda a preservá-la em pé. Atualmente a empresa é abastecida com cerca de 200 mil ha de floresta e beneficia cerca de 1500 famílias.
Em 2001 e 2016, a Tobasa recebeu aportes financeiros e suporte organizacional de fundos de Private equity. Um destes fundos, a Kaeté Investimentos, é um fundo que seleciona projetos com potencial de crescimento e com impactos ambientais e sociais positivos. Além disso, em 2020, a empresa lançou uma campanha de Empréstimo Coletivo e arrecadou cerca de R$ 1,6 milhões.
Propagate Ventures- Modelos de negócios inovadores
A Propagate Ventures é uma start-up Norte Americana que desenvolveu um modelo de negócio inovador do tipo “farm-as-a-service” onde ela capta recursos de investidores interessados em investir na integração de culturas permanentes, como frutas, nozes e madeira, em terras agrícolas existentes. Quer dizer, a empresa busca ser um intermediário entre investidores e proprietários de terras (CREO, 2021).
Para os agricultores, a plataforma facilita o acesso ao know-how operacional, a ferramentas de fluxo de trabalho e a capital de que precisam para instalar sistemas de cultivo de árvores. Em casos em que a Propagate Ventures realiza aportes de capital, financiando instalações e o manejo de árvores, os lucros das colheitas são compartilhados entre a Propagate Ventures e os produtores.
A empresa foi fundada em 2017 e recebeu financiamentos de empresas de capital semente, como a Techstar[4].
Os exemplos apresentados mostram que o desenvolvimento de SAFs e a integração delas em cadeias produtivas são processos de longo prazo e que envolvem muita inovação. O caso da Rizoma Agro, apesar de não envolver produção para biorrefinarias, apresenta um interessante caso de empresa que busca dar escala às SAFs por meio de P&D próprio e com parcerias. No caso da Tobasa, além da construção das relações entre a empresa e os fornecedores, foi necessário o desenvolvimento de tecnologias capazes de processar o babaçu, uma vez que não havia disponibilidade de máquinas no mercado. Por fim, a Porpagate Ventures, apesar de não ter atuação no Brasil, apresenta um interessante caso de empresa que utiliza de tecnologia da informação para alavancar os SAFs, reunindo pessoas interessadas em investir com quem possui terra disponível.
São exemplos que apresentam diferentes desafios, com diferentes graus de maturidades e com riscos variados. Caso seja de interesse de governos ampliar esse tipo de atividades e replicar os modelos aqui apresentados, é importante o desenvolvimento de políticas públicas que reduzam os riscos e alavanque a entrada de capital privado. Assim, para saber o atual nível de comprometimento do Brasil com o desenvolvimento de SAFs, fiz um breve levantamento de políticas e fontes de financiamento voltadas para SAFs.
Políticas e programas nacionais de apoio aos SAFs
O Brasil, diferente da média mundial, possui nos segmentos da agricultura e de mudança do uso de terra as principais fontes de emissão de gases de efeito estufa. Portanto, buscar uma agricultura mais sustentável é um dos pontos considerados nos objetivos do Brasil dentro do Acordo de Paris.
O Plano ABC é a principal política nacional de incentivo à agricultura de baixo carbono. Ele possui diversas linhas temáticas, como o “plantio direto”, a “fixação biológica do nitrogênio” e a “integração lavoura-pecuária-floresta”. Os SAFs são uma categoria de iLPF e estão contempladas no plano. Inclusive, foi estabelecida uma meta de expandir os SAFs em 2,76 milhões ha entre o período de vigência do plano (2010-2020) (LIMA; HARFUCH; PALAURO, 2020).
Entre as ações destinadas aos SAFs, destacam-se a realização de campanhas publicitárias, a capacitação de técnicos em sistemas de iLPF e SAFs para atuação junto aos produtores rurais, a capacitação produtores rurais em sistemas de iLPF e SAFs e a criação de linha de crédito para produtores agrícolas.
As linhas de créditos oferecidas pelo Programa ABC contam com taxas anuais que variam entre 8% e 8,5%. Os prazos para pagamentos e os períodos de carência são variáveis a depender da atividade. Projetos para implantação e manutenção de florestas de dendezeiro (palma) possuem prazos de até 12 anos, incluindo até 6 anos de carência; projetos para recomposição e manutenção de áreas de preservação permanente ou de reserva legal: até 15 anos, incluindo até 1 ano de carência; Implantação de sistemas produtivos de integração: até 12 anos incluindo até 3 anos de carência (MMA, 2016).
O programa obteve bons resultados em todas duas linhas temáticas. No caso da iLPF, segundo a Rede iLPF, o programa superou as metas estabelecidas e fez com o Brasil chegasse em 2020 com quase 17,5 milhões de ha de iLPF, dos quais 17% contemplam a parte florestal. O Sucesso do programa fez com que o governo a lançasse o Plano ABC + que estabeleceu meta de alcançar 30 milhões de ha de iLPF em 2030[5].
Outro programa importante de apoio aos SAFs é o Programa de Aquisição de Alimentos (recentemente atualizado para Programa Alimenta Brasil), onde o governo compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e à rede pública de ensino. Como as SAFs produzem alimentos diversos e abundantes, um programa que garanta a demanda é relevante para viabilizar financeiramente os produtores, principalmente em estágios iniciais, quando as árvores ainda não atingiram idade produtiva.
Algumas outras fontes de financiamento
O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) é uma das linhas de crédito utilizadas para incentivar a agricultura de baixo carbono. Ele conta com diversos programas específicos que podem auxiliar os investimentos em SAFs, como o Pronaf Floresta e o Pronaf ECO.
O Pronaf Florestal, por exemplo, é uma linha de crédito específica para atender sistemas agroflorestais. Ela conta com taxa de juros anual de 3% a.a e prazos de 20 anos, sendo 12 anos de carência. O elevado prazo para o pagamento do crédito é necessário para atender o período de crescimento das árvores que, em geral, são as principais fontes de renda das agroflorestais. O limite de crédito é de R$ 65 mil[6].
O Finem (Financiamento de Empreendimentos) do BNDES é uma linha de crédito de longo prazo que visa financiar projetos para a ampliação, recuperação, modernização ou implantação de ativos fixos em diversos setores, inclusive na agropecuária. Ele conta com diversos programas específicos como o Finem Biocombustível e o Finem Meio ambiente. Ativos biológicos, como árvores de ciclo longo estão contempladas entre os itens financiáveis do Finem.
Em geral as linhas de crédito oferecem taxas anuais reduzidas e prazos de até 20 anos.
O Fundo Clima- Subprograma Florestas Nativas apoia projetos associados ao manejo florestal sustentável, ao plantio florestal com espécies nativas, incluindo a cadeia de produção, ao beneficiamento e ao consumo de produtos florestais de origem sustentável, bem como ao desenvolvimento tecnológico destas atividades. O BNDES que gerencia o fundo, porém os recursos são oferecidos por agentes financeiros intermediários. As taxas podem chegar a 3% a.a e os prazos variam, podendo chegar até 25 anos para o caso de investimentos em casos recomposição da cobertura vegetal com espécies nativas[7].
Títulos verdes, como os emitidos pela Rizoma Agro, também podem ser fontes de financiamento às SAFs. Estes são semelhantes aos títulos de dívida tradicionais, porém os recursos captados necessitam ser destinados a projetos sustentáveis. Para garantir o correto destino dos recursos, os títulos verdes passam por processos de certificação ou de inspeção que avaliam a sustentabilidade dos projetos que serão financiados.
A CBI, única certificadora de títulos verdes, possui em sua Taxonomia de Investimentos Sustentáveis a categoria “proteção e restauração de ecossistema natural” que contempla diversas áreas que atendem as necessidades das SAFs. A emissão de títulos verde pode contar também com a avaliação de empresas certificadas, porém, estas seguem geralmente os “princípios de títulos verdes”, estabelecido pela ICMA, que também atendem as necessidades das SAFs[8].
A vantagem dos títulos verdes é que as empresas emissoras passam a ter acesso à recursos exclusivos, destinados a projetos verdes. Outro ponto, em geral, os investidores possuem maior conhecimento sobre os projetos e aceitam maiores prazos e menores taxas. Interessante notar que no Brasil, pelos menos duas empresas lançaram títulos verdes para atender a produção de SAFs.
SAFs para Bioqav, uma realidade possível?
Foi publicado recentemente (03/02/2022) a versão final das “Premissas da Futura Política Pública do SAF” (sigla em inglês para combustíveis sustentáveis de aviação). No documento apresentado pouco se fala sobre a oferta de matérias-primas, limitando-se a avaliar a viabilidade de incentivo à utilização de matéria-prima de agricultura familiar.
Caso não queiram repetir o que aconteceu com a PNPB, que falhou em integrar novas cadeias de matérias-primas na indústria do biodiesel, é importante que os agentes tomadores de decisão realizem políticas integradas, que incentive cadeias de abastecimento de matérias-primas de espécies nativas, que possam ser consorciadas em SAFs, e, simultaneamente, incentive investimento em adaptação de equipamentos para o processamento das novas fontes.
Os exemplos de SAFs citados ao longo do texto revelam que a construção desse abastecimento é um processo de inovação que vai exigir fontes de investimento adequados aos diferente níveis de maturidade. Esforço de construção conjunto de fontes de matéria-prima e de tecnologias de processamento se justifica pelos ganhos ambientais e sociais que as SAFs proporcionam. Pois, elas podem ser realizadas em Áreas de Preservação Ambiental, auxiliando na recuperação de áreas degradas e na valorização das florestas, elas são grandes armazenadoras de carbono, o que provê maior sustentabilidade aos biocombustíveis e, por fim, elas podem aumentar a oferta de alimentos ao mesmo tempo que aumentam a oferta de matérias-primas às biorrefinarias.
É preciso destacar que a produção de biocombustíveis de aviação oferece algumas vantagens para a integração com SAFs que não existiam no caso do biodiesel. Primeiro, o QAV é um combustível mais valorizado que o diesel e, portanto, já permite maior margem para o biocombustível de aviação.
Segundo, o biocombustível de aviação é necessariamente um combustível drop-in de aceitação mundial. Quer dizer, o seu mercado não está limitado ao mercado Brasileiro e pode ser exportado para regiões que valorizam mais o caráter ambiental do biocombustível. Vale lembrar que o preço do carbono está próximo dos EUR 100 na Europa[9].
Terceiro, no caso do Brasil e, mais especificamente nas regiões Norte e Nordeste, há grande pulverização de aeroportos (de variados tamanhos) que se encontram distantes das principais estruturas de distribuição de combustíveis fósseis e em áreas de difícil acesso, o que elevam os custos logísticos de entrega de combustíveis. Uma produção descentralizada de biocombustível, mesmo que em pequena escala, pode se tornar viável em função dos elevados custos logísticos do concorrente fóssil.
A figura 2 é um mapa das regiões Norte e Nordeste que apresentam municípios com produções de oleaginosas[10] de espécies nativas, aeroportos existentes na região e as refinarias de petróleo. Com os corretos incentivos, muitas dessas regiões de produção de óleo vegetal podem se tornar fontes de matérias-primas para produção descentralizada de biocombustíveis de aviação e superar os desafios logísticos da região.
Figura 2- Distribuição dos aeroportos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil
Fonte: Elaboração própria com dados do IBGE, ANAC e EPE.
Conclusão
O Brasil possui algumas políticas voltadas para o fomento das SAFs, inclusive com o estabelecimento de metas para a expansão das áreas de produção agroflorestal. Todavia, para a construção de uma bioeconomia avançada, que produza inovações e encadeamentos produtivos, é preciso olhar os distintos elos da cadeia (matéria-prima, cadeias de logísticas e tecnologias de processamento) de forma simultânea.
Os incentivos à produção do Bioqav podem ser uma grande oportunidade para o desenvolvimento de novas cadeias produtivas e de SAFs, desde que haja corretos incentivos para o aproveitamento de novas matérias-primas. Pois, caso contrário, apenas as culturas estabelecidas, que possuem escala e domínio tecnológico, como a soja, a palma e a cana-de-açúcar, terão lugar na política de bioqav.
O Bioqav pode se tornar uma fonte de demanda segura para os produtos das SAFs, o que reduz os riscos e incentiva os investimentos. Ao mesmo tempo, os SAFs garantiriam a sustentabilidade do Bioqav, facilitando sua penetração nos mercados e gerando maiores prêmios de sustentabilidade. Para o Brasil, políticas coordenadas de Bioqav e de SAFS atenderiam diversos de seus objetivos, como descarbonização da matriz de transporte e da agricultura, geração de emprego e renda rural, geração de emprego qualificado, recuperação de áreas degradadas e valorização da floresta em pé.
Para esforços coordenados entre SAFs e Bioqav, seria interessante que algumas culturas fossem selecionadas como fontes de matérias-primas e metas de produção em SAFs fossem estabelecidas. Ao mesmo tempo, esforços de adaptação de equipamentos para o processamento para as novas matérias-primas deveriam ser incentivados. Importante destacar que diferentes tipos de SAFs e de tecnologias processamento encontram-se com diferentes graus de maturidade. Portanto, os incentivos necessitam ser adaptado a cada tipo de desafio que os empreendimentos precisarão superar.
Notas
[1] “Os Sistemas Agroflorestais (SAFs) são descritos como sistemas de uso e ocupação do solo em que plantas lenhosas perenes são manejadas em associação com plantas herbáceas, arbustivas, arbóreas, culturas agrícolas e forrageiras, em uma mesma unidade de manejo, de acordo com arranjo espacial e temporal, com alta diversidade de espécies e interações desses componentes” (MAPA, 2012)
[2] Para mais informações sobre o Jardins de Marizá: https://www.marsha.com.br/
[3] Veja o vídeo detalhando as características da emissão do Título Verde da Rizoma Agro
[4] https://agfundernews.com/propagate-ventures-raises-1-5m-seed-round-to-help-farmers-adopt-agroforestry
[5] https://www.redeilpf.org.br/index.php/rede-ilpf/ilpf-em-numeros
[6] Valores com base no Pronaf Florestal oferecido pelo BB: https://www.bb.com.br/pbb/pagina-inicial/agronegocios/agronegocio—produtos-e-servicos/pequeno-produtor/investir-em-sua-atividade/pronaf-florestal#/
Banco da Amazônia: https://www.bancoamazonia.com.br/index.php/produtos-servicos/empresa/agricultura-familiar/pronaf-floresta
[7] https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/financiamento/produto/fundo-clima-florestas-nativas#:~:text=Apoio%20a%20projetos%20associados%20ao,ao%20desenvolvimento%20tecnol%C3%B3gico%20destas%20atividades.
[8] https://www.climatebonds.net/files/files/CBI_Taxonomy_Tables-2June21.pdf
[9] https://balkangreenenergynews.com/european-carbon-emission-prices-hit-record-highs-nearing-eur-100-per-ton/
[10] Os dados utilizados do IBGE consideram o óleo de babaçu, copaíba, cumaru, licuri, oiticica, pequi, tucum e outros.
Referências
CREO. Unlocking Investments in Regenerative Agriculture. [s.l: s.n.]. 2021
ICAO. CORSIA Default Life Cycle Emissions Values for CORSIA Eligible Fuels. [s.l: s.n.]. 2019
LIMA, R.; HARFUCH, L.; PALAURO, G. Plano ABC: Evidências do período 2010-2020 e propostas para uma nova fase 2021-2030. [s.l.] Agroicone, 2020.
MAPA. Plano setorial de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas para a consolidação de uma economia de baixa emissão de carbono na agricultura : plano ABC. 2012
MMA. Guia de Financiamento Florestal. [s.l: s.n.]. 2016
RIZOMA AGRO. 2020 IMPACT REPORT: An overview of Rizoma Agro’s positive impacts on people, planet and society. [s.l: s.n.]. 2021
VAZ JÚNIOR, S. Biorrefinarias: cenários e perspectivas. [s.l.] Embrapa Agroenergia, 2011.
ZHAO, X. et al. Estimating induced land use change emissions for sustainable aviation biofuel pathways. Science of The Total Environment, v. 779, p. 146238, 20 jul. 2021.
Sugestão de citação: SOARES, G. A. (2022). Sistemas Agroflorestais (SAFs) para Combustíveis de Aviação Sustentáveis, a necessidade de políticas coordenadas. Ensaio Energético, 14 de fevereiro, 2022.
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutorando em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da UFRJ. É consultor na Prysma E&T Consultores atuando no mercado de gás natural e de biocombustíveis no Brasil.
Adorei o conteúdo! Muito informativo!
Obrigado! Fique antenado para novas publicações
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Et Bilu