Ensaio Energético

Pobreza Energética e Criminalidade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Introdução

O controle territorial de grupos criminosos na região metropolitana do Rio de Janeiro tem efeitos negativos para o fornecimento de energia elétrica, representados principalmente na baixa qualidade do serviço em bairros onde os grupos armados estão presentes. Nessas áreas menos desenvolvidas, grupos criminosos, traficantes e milícias, construíram um sistema social com regras específicas capazes de controlar territórios e dominar mercados (Zaluar e Siqueira, 2007; Zaluar A., ​​2012).

A região metropolitana do Rio de Janeiro possui cobertura elétrica universal, com 100% dos domicílios conectados à rede elétrica. A pobreza energética no Rio de Janeiro, portanto, não pode ser entendida como a mera ausência de infraestrutura para ligação das famílias às redes elétricas. Outros atributos do fornecimento de energia devem ser considerados, como capacidade, acessibilidade, disponibilidade, confiabilidade, saúde e segurança, legalidade e conveniência. O elevado número de ligações irregulares e as frequentes e prolongadas interrupções do serviço de energia elétrica impõem desafios significativos à qualidade do fornecimento de energia no Rio de Janeiro.

O controle econômico e social dos grupos criminosos produz efeitos em cadeia não apenas nas áreas dominadas, mas também nas instituições locais. A título de exemplo, as empresas prestadoras de serviços públicos têm dificuldades para operar de forma eficiente nessas áreas (Zaluar e Siqueira, 2007; Zaluar A., ​​2012).

No caso do serviço de energia elétrica, o controle territorial ilegítimo afeta a operação da distribuidora do Rio de Janeiro. As equipes de operação e manutenção enfrentam restrições de acesso, e a perda de receita afeta a capacidade de investimento da concessionária. Além disso, os grupos criminosos também roubam cabos de eletricidade, principalmente os fios de cobre, pelo seu valor comercial. O roubo de cabos aumentou significativamente entre 2018 e 2022 na área de concessão do Rio de Janeiro, passando de 18 ocorrências em 2018 para 332 em agosto de 2022. O roubo de eletricidade e cabos leva a interrupções no fornecimento de eletricidade e afeta o uso/disponibilidade de serviços (como como iluminação, carregamento de telefone, refrigeração, comunicação, entretenimento etc.) que requerem um aparelho e o fornecimento adequado de energia. A tendência crescente de furto de eletricidade e roubo dos cabos indica que as questões de segurança impactam o fornecimento de energia.

Entre 2008 e 2019, os índices de qualidade do serviço de energia elétrica da concessionária do Rio de Janeiro, a Light, ultrapassaram o limite regulatório, estabelecido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Isso posicionou a Light como uma das distribuidoras com pior desempenho em termos de continuidade de serviço. Apesar da melhora dos indicadores após 2019, as interrupções ocorrem de forma desigual entre as diferentes regiões da cidade. Locais atendidos por rede aérea sofrem mais interrupções do que locais com redes subterrâneas. Também são mais frequentes em áreas mais pobres da cidade e em regiões onde há tráfico de drogas e milícias.

Em 2021, a concessionária Light alcançou a segunda maior Perda Não Técnica (PNT) entre as grandes distribuidoras do Brasil, com valor de 54,2%, atrás da concessionária Amazonas Energia, do estado do Amazonas. Isso se explica tanto pelo tamanho do mercado da distribuidora quanto pela complexa dinâmica social, econômica e de segurança pública da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Como o nível de roubo de eletricidade é maior, as tarifas para os consumidores residenciais serão maiores. A ANEEL, que regulamenta o serviço de energia elétrica, permite que os custos das perdas de energia elétrica sejam parcialmente repassados ​​às tarifas dos consumidores residenciais para as concessionárias que atuam em áreas com maiores índices de violência, pobreza, desigualdade e alta proporção da população em aglomerações subnormais, como é o caso do Rio de Janeiro. Em 2022, a tarifa convencional residencial média da Light, foi de 0,802 R$/kWh, a quarta maior entre as grandes distribuidoras de energia elétrica do Brasil.

Assim, o objetivo deste texto é destacar como o contexto institucional e social são fatores explicativos da pobreza energética no Rio de Janeiro.

 

Clientelismo nos furtos de energia

No final do ano de 1978, quando o controle acionário da Light – Serviços de Eletricidade S/A. foi adquirido pelo Governo Federal por meio da Eletrobras, existia na área de concessão da empresa aproximadamente 1,2 mil habitantes que não eram atendidos diretamente pela rede de distribuição de energia da concessionaria. Os moradores das favelas (a maioria morava em loteamentos considerados irregulares) e da zona rural da empresa estavam desconectados da rede de distribuição (Vasconcellos, 1984).

Os moradores das comunidades, na sua quase totalidade, não eram atendidos globalmente por qualquer serviço público – como água, esgoto, energia elétrica e coleta de lixo. As redes de serviço público existentes tinham sido construídas, na maioria dos casos, pelos próprios moradores. As associações de moradores e comissões de luz e de água ficavam responsáveis pela administração e operação dos serviços.

O abastecimento de energia elétrica das favelas era efetuado via intermediação de terceiros – comissões de luz, cabineiros, luz emprestada (moradores que viviam próximos a rede da concessionaria), ou ligações irregulares popularizadas como “gatos”. Nesse sistema, os moradores pagavam tarifas mais elevadas, em alguns casos, 50% até 100% acima do que pagariam se fossem atendidos diretamente pela Light (Vasconcellos, 1984). Além do pagamento da conta de luz, os moradores das comunidades arcavam com todos os custos dos investimentos, e eram atendidos precariamente com redes mal dimensionadas.

Em 1979, período marcado como o ano das favelas, a Light anunciou que iniciaria o Programa de Eletrificação de Interesse Social, que visava estender suas redes de distribuição a todas as favelas e loteamentos irregulares existentes em sua área de concessão. A empresa anunciou a instalação do medidor individual de consumo em todas as moradias e deixou de reconhecer as comissões de luz.

Em julho de 1980 é publicado o Projeto de Eletrificação de favelas do Rio de Janeiro, e foi criado o Departamento de Eletrificação de Interesse Social na estrutura da empresa. Com o programa, a empresa assumiria os investimentos, a operação e manutenção das redes, e os moradores receberiam as suas contas individualizadas, documento este que assumiria o papel de um comprovante de residência. Nesse período, 32% da população da cidade residia nas comunidades.

Em junho de 1987, a Light havia executado 194.114 ligações em 698 favelas, estimando em 971.000 pessoas beneficiadas (Tavares, 2015). Todos os moradores da área de concessão da empresa passaram a ter o acesso ao serviço de energia elétrica. Embora o programa de eletrificação tenha se estabelecido oficialmente a partir de 1979, as ligações irregulares, conhecidas como “gatos”, persistem e são objeto de combate até hoje.

 

Pobreza energética no Rio de Janeiro: qualidade do serviço de energia elétrica e grupos criminosos

A má qualidade do serviço de eletricidade é um indicador de pobreza energética, uma vez que afeta negativamente o desenvolvimento humano e económico da sociedade (Calvo et al., 2021). A título de exemplo, durante o verão carioca, a baixa qualidade do serviço de energia elétrica, expressa nas frequentes e prolongadas interrupções do serviço, não permite o uso de aparelhos eletroeletrônicos de conforto térmico (uso de ar-condicionado ou ventilador), de conservação de alimentos, entre outros.

Entre os fatores que explicam a má qualidade do serviço de energia elétrica na região metropolitana do Rio de Janeiro está o alto índice de furtos de energia. Por um lado, as ligações clandestinas representam uma sobrecarga do sistema energético, que muitas vezes leva a interrupções de eletricidade (parciais ou totais) (Tasdoven et al., 2012). Por outro lado, ligações clandestinas prejudicam financeiramente as distribuidoras de energia elétrica e, consequentemente, administrativamente, limitando sua capacidade de melhorar o atendimento, criando um ciclo vicioso.

A Figura 1 representa o Índice de Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (DEC) e a Figura 2 o Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora (FEC) para a área de concessão da Light no período de 2007 a 2021. A linha amarela indica o limite regulatório do indicador definido pela ANEEL, enquanto as barras azuis representam o valor calculado do indicador. Os valores regulatórios dos indicadores de qualidade são o número máximo de horas ou de vezes que o serviço pode ser interrompido. Caso a concessionária ultrapasse o limite regulatório, deverá compensar os consumidores afetados, conforme estabelecido pela ANEEL. Os indicadores observados são calculados pelas distribuidoras e enviados periodicamente à ANEEL para verificação da continuidade do serviço prestado. Ambos os indicadores apresentam tendência de queda, embora a duração total das interrupções tenha ficado acima do limite regulatório entre o período de 2008 a 2019. Em 2019, por exemplo, no ranking de qualidade do serviço da ANEEL, a Light manteve-se na 20ª posição entre 29 distribuidoras que atendem mais de 400 mil consumidores (ANEEL, 2020).

 

Figura 1 – Índice de Duração Média de Interrupção do Sistema (DEC) por ano na área de concessão da Light, 2007-2021

Fonte: Elaboração própria baseada em ANEEL (2020b)

 

Figura 2 – Índice de Frequência Média de Interrupção do Sistema (FEC) por ano na área de concessão da Light, 2007-2021

Fonte: Elaboração própria baseada em ANEEL (2020b)

 

Embora os indicadores de qualidade do Rio de Janeiro tenham melhorado na última década, a frequência e a duração das interrupções variam muito entre as áreas da cidade. A Figura 3 e a Figura 4 apresentam o Índice de Duração Equivalente de Interrupção do Sistema e o Índice de Frequência Equivalente de Interrupção do Sistema, respectivamente, para os bairros do Rio de Janeiro, entre junho de 2021 e maio de 2022, e o cruza com o mapeamento dos grupos criminosos no Rio de Janeiro em 2019 (GENI UFF, 2019).

Os bairros Rocinha, Vidigal e São Conrado, conhecidos por apresentarem baixos Índices de Desenvolvimento Social (IDS) segundo o Instituto Pereira Passos (IPP, 2010), apresentam o maior número de horas com o serviço de energia elétrica interrompido e o maior número de vezes que o serviço foi interrompido.

Embora a Rocinha e o Vidigal estejam localizados na zona de maior renda do Rio de Janeiro, a Zona Sul, o seu Índice de Desenvolvimento Social é de 0,533 e 0,565, respectivamente, um dos mais baixos da cidade do Rio de Janeiro. Assim, a Rocinha e o Vidigal se apresentam como uma área segregada, um enclave de pobreza em meio à área mais rica da cidade. Além disso, a Rocinha é considerada uma das áreas mais críticas de ocupação por grupos criminosos, principalmente pelo tráfico de drogas. A dificuldade de realizar as atividades de operações de manutenção acaba por se refletir nos baixos níveis de qualidade dos serviços prestados.

 

Figura 3 – Índice de Duração Equivalente de Interrupção (DEC) por bairro no Rio de Janeiro, junho de 2021 e maio de 2022

Fonte: elaboração própria

 

Figura 4 – Índice de Frequência Equivalente de Interrupção (FEC) por bairro no Rio de Janeiro, junho de 2021 e maio de 2022

Fonte: elaboração própria

 

A expansão de grupos ilegais para outras áreas e mercados, incluindo a venda de ligações clandestinas de energia elétrica, prejudica ainda mais a infraestrutura de abastecimento e afeta a continuidade do serviço. No entanto, esta análise é limitada, pois é necessário examinar até que ponto a deterioração da qualidade do serviço em áreas menos desenvolvidas é causada pela ineficiência operacional da concessionária em manter e reparar a infraestrutura energética e até que ponto isso é explicado pela violência e a presença de grupos criminosos.

 

Conclusões

Embora o Rio de Janeiro tenha alcançado altos índices de acesso à energia elétrica, a qualidade e a confiabilidade do serviço são desafios importantes para superar a pobreza energética. A distribuidora de energia elétrica do Rio de Janeiro – Light, está entre as distribuidoras de energia elétrica com menor qualidade no serviço de energia elétrica.

Este artigo explora outra dimensão da pobreza energética, uma dimensão oculta, que se expressa na ausência de serviços de distribuição de eletricidade confiáveis ​​e de alta qualidade. A má qualidade do serviço afeta o bem-estar das famílias que estão expostas a frequentes interrupções no fornecimento de energia elétrica.

Em uma cidade de clima tropical como o Rio de Janeiro, interrupções prolongadas no fornecimento de energia elétrica afetam o conforto térmico e restringem o uso de outros serviços energéticos para comunicação, conservação de alimentos, iluminação, entre outros.

Para superar a pobreza energética, além dos serviços energéticos modernos estarem tecnicamente disponíveis, esses serviços devem ter preços razoáveis, o fornecimento deve ser suficiente e de boa qualidade, além de confiável.

A partir da análise espacial, foi possível verificar que existe uma alta correlação entre o furto de energia elétrica e a atuação de organizações criminosas (tráfico de drogas e milícias), principalmente nas áreas de menor desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro.

Os grupos armados que controlam os territórios facilitam as instalações irregulares de energia elétrica e dificultam a entrada da distribuidora local de fornecimento de energia elétrica para medir o consumo, aplicar o faturamento e realizar os serviços de operação e manutenção da rede de distribuição.

Entende-se que existe um círculo vicioso em que a baixa qualidade do serviço de energia elétrica favorece o furto de energia e o maior furto de energia reduz a atenção da distribuidora para a região, o que deteriora a rede e os indicadores de qualidade.

As famílias que vivem principalmente em comunidades encontram-se em condições de privação de energia elétrica. A acessibilidade de energia e a baixa qualidade do serviço de eletricidade no Rio de Janeiro são um dos principais motivos da vulnerabilidade energética.

 

Bibliografia

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica (2020b). Indicadores de continuidade por Conjunto.  Disponível em: ANEEL: https://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/indicadores_de_qualidade/resultado.cfm. Acesso em: 03 nov. 2020c.

ANEEL- Agência Nacional de Energia Elétrica (2020). Apuração do Indicador de Desempenho Global de Continuidade de 2019. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/documents/656827/20189282/Nota_T%C3%A9cnica_0017-2020-SRD-ANEEL/ec335020-adc9-5983-fd1d-09c4129ac5f3. Acesso em: 8 maio 2020.

CALVO, R. et al. (2021) Desarrollo de indicadores de pobreza energética en América Latina y el Caribe. Comisión Económica para América Latina (CEPAL). Santiago: serie Recursos Naturales y Desarrollo.

TASDOVEN, H.; FIEDLER, B.; GARAYEV, V. (2012) Improving electricity efficiency in Turkey by adressing illegal electricity consumption: A governance approach. Energy Policy, v 11, n. 43., p. 226-234.

Tavares, F. R. (2015). “Gatos Na Favela”: Eletrificação De Interesse Social, Cotidiano E Desenvolvimento Nas Favelas Cariocas. IV Simposio. Geocrit. Available in < http://www.ub.edu/geocrit/IVSimposio/Rangel.pdf> Accessed in November 2022.

Vasconcellos, R. T.  (1984). A socialização do atendimento de energia elétrica no Rio de Janeiro.

ZALUAR, A. (2012) Juventude Violenta: Processos, Retrocessos e Novos Percursos. DADOS, 55 (2), p. 327- 365.

ZALUAR, A.; SIQUEIRA, I. (2007) Favelas sob o controle das Milícias. São Paulo em Perspectiva, 21 (2), p. 89-101.

 

Sugestão de citação: Melo, Y., Rodrigues, N., Grottera, C. (2022). Pobreza Energética e Criminalidade na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ensaio Energético, 29 de novembro, 2022.

Autora do Ensaio Energético. Economista e mestre em Economia pela Universidade Nacional de Colômbia, sede Medellin, doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

Editora-chefe do Ensaio Energético. Economista pela UFRRJ, mestre em Economia Aplicada pela UFV e doutora em Economia pela UFF. Professora do Departamento de Ciências Econômicas da UFF, professora do Programa de Pós Graduação em Economia (PPGE/UFF) e pesquisadora do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

Autora do Ensaio Energético. Professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui doutorado em Planejamento Energético com ênfase em Planejamento Ambiental pelo Programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ, mestrado pela mesma instituição e bacharelado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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