Transição energética significa a substituição de modelos de geração de energia baseados em fontes poluentes por modelos que utilizam, predominantemente, fontes renováveis e de menor impacto ambiental. As inovações tecnológicas que impactam no aproveitamento de recursos renováveis (como a geração eólica ou solar; o desenvolvimento dos carros elétricos ou a hidrogênio; e o surgimento das baterias para armazenamento de energia) e a digitalização têm permitido mudanças significativas no mercado de eletricidade (como a descentralização da produção) e tendem a gerar uma transformação energética sem precedentes em diversos setores da economia, como o industrial e o de transportes, através do processo de eletrificação.
A transição energética foi inicialmente motivada pelas mudanças climáticas e, por isso, a adoção inicial das novas fontes renováveis de energia (leia-se eólica e solar) foi impulsionada por políticas públicas de governos nacionais e por organismos multilaterais (a exemplo do Protocolo de Kyoto e do Acordo de Paris). Atualmente há outros motivos que estão fazendo as novas renováveis crescerem ao redor do mundo, com destaque para a queda dos preços e para a percepção por parte das grandes empresas mundiais da importância da adoção de medidas sustentáveis (seja para reduzir custos, para ter uma melhor imagem frente aos consumidores ou para ter acesso a fundos financeiros destinados às empresas “eco-friendly”). Quanto ao segundo ponto, podemos destacar os fundos bilionários criados pela Amazon e Microsoft destinados ao desenvolvimento de tecnologias limpas e à descarbonização, além do caso da BlackRock, maior gestora financeira do mundo, que anunciou que dará prioridade ao investimento em companhias com elevados padrões de ESG (Environmental, Social and Governance).
Além da transição energética, o contexto atual brasileiro é marcado por uma crise econômica e social sem precedentes, o que pode ser constatado por dados como a estimativa do Banco Central de queda de 6,4% do PIB em 2020 e a taxa de desemprego de 13,3% atingida em agosto de 2020. O fato é que o governo brasileiro precisa adotar medidas para a recuperação econômica, mas não deve deixar de levar em consideração os desafios do futuro. Pela abordagem energética, a crise requer investimentos que estimulem a economia e garantam a segurança energética, mas que também promovam a sustentabilidade ambiental e social, ou seja, que levem em conta o processo mundial de transição energética. Tendo isso em mente, as novas fontes renováveis se tornam bastante relevantes para o crescimento sustentável no curto/médio prazo. A transição energética via as novas fontes renováveis se apresenta como uma alternativa capaz de: (i) tornar a economia brasileira mais competitiva; (ii) promover crescimento alinhado com a questão ambiental; (iii) ajudar na segurança energética; (iv) atrair investimentos estrangeiros; (v) gerar empregos; e (vi) se tornar um ativo geopolítico a ser utilizado pelo governo brasileiro nas negociações internacionais relativas ao comércio e ao clima.
Por que a introdução das novas renováveis (eólica e solar) na matriz elétrica brasileira seria importante para tornar a economia brasileira mais competitiva? A resposta mais objetiva é: por conta dos custos decrescentes. As inovações tecnológicas ocorridas nos últimos anos nas placas fotovoltaicas e nos aerogeradores permitiram uma queda acentuada nos custos de geração. Entre 2010 e 2019 houve uma redução nos custos da geração eólica onshore e solar fotovoltaicas (FV) de, respectivamente, 39% e 82% (IRENA, 2020). A queda dos custos destas tecnologias aliada às condições naturais propícias do Brasil para a geração eólica (como vento unidirecional, constante e estável que geram maior fator de capacidade) e solar (elevada insolação: as áreas de menor irradiação do Brasil possuem insolação mais elevada do que os melhores locais da Alemanha) fizeram com que essas tecnologias se tornassem as mais competitivas no país em termos de custo. Para se ter uma ideia, a energia eólica foi a fonte mais competitiva nos leilões A-3/2011, A-5/2012, A-5/2014, A-3/2015, A-4/2017, A-6/2017, A-4/2018 e A-6/2018, além da segunda mais competitiva nos leilões A-5/2013, A-4/2019 e A-6/2019. Já a solar foi a fonte mais competitiva nos leilões A-4/2019 e A-6/2019. Ambas as tecnologias foram contratadas a preços abaixo dos R$100,00/MWh em 2019. Portanto, considerando apenas os custos de geração, a contratação de eólica e solar para suprir a demanda de energia tende a baratear o custo da eletricidade e, assim, beneficiar os consumidores. Por exemplo, uma possível queda no preço da eletricidade pode impactar sensivelmente na competitividade do setor industrial brasileiro, uma vez que a eletricidade representou 21,4% da demanda de energia deste setor em 2019 (EPE, 2020). Destaca-se que esse processo de busca por uma eletricidade mais barata fez com que, nos últimos anos, a fonte eólica crescesse no Ambiente de Contratação Livre (ACL) e a solar FV crescesse na geração distribuída.
É preciso salientar que a transição mundial para uma geração de eletricidade com maior penetração da solar e eólica tende a beneficiar a economia brasileira em relação à mundial devido a elevada produtividade relativa dessas fontes no Brasil. Isso pode ser visto ao compararmos o custo nivelado da energia eólica e solar entre os principais produtores do mundo. A título de exemplo, a Tabela 1 apresenta os custos nivelados de energia eólica (onshore) dos principais países produtores entre 2009 e 2018. Observando a Tabela 1 verificamos que desde 2011, quando a contratação de energia eólica deslanchou no Brasil, o custo nivelado da energia eólica está entre os três mais competitivos, com exceção de 2014.
Tabela 1 – Custo nivelado da energia eólica (USD/KWh) entre 2009 e 2018
OBS: Os valores em vermelho se referem aos custos nivelados menores que o do Brasil.
Fonte: IRENA (2019a) – Renewable Power Generation Costs in 2018.
Vejamos agora a questão da importância das novas renováveis para o crescimento alinhado com a questão ambiental. Primeiramente, é preciso destacar que o crescimento econômico afeta o setor elétrico, mas o setor elétrico também afeta o crescimento econômico. Diante do cenário atual de queda no PIB, as novas renováveis podem ser inicialmente importantes para reduzir os custos no setor elétrico e, consequentemente, aumentar a competitividade da economia. Já no médio/longo prazo, tais fontes podem ser importantes para o fornecimento de energia limpa e barata caso se concretize a tendência de aumento da demanda de energia proveniente do processo de eletrificação de outros setores, como o industrial e o de transportes.
É importante mostrar que as novas fontes renováveis já se apresentam como importantes para a manutenção da participação das fontes renováveis de energia (FRE) na matriz elétrica brasileira. A matriz brasileira é caracterizada por ser majoritariamente renovável graças, principalmente, ao potencial de produção hidrelétrica do país. Utilizando dados dos Balanços Energéticos Nacionais verificou-se que entre 2010 e 2019 a participação média das FRE na matriz elétrica brasileira foi de 81,7%, com as hidrelétricas sendo responsáveis, em média, por 70,3%. No entanto, desde 2011 a participação das hidrelétricas na matriz vem diminuindo devido as dificuldades de construção de novas plantas e ao crescimento da demanda de energia no país. Era de se esperar uma queda na participação das renováveis na matriz, mas esta permaneceu elevada e alcançou 83% em 2019. Tal fato foi possível graças à introdução das novas renováveis na matriz, com destaque para a fonte eólica (que em 2019 teve uma participação de 8,6% na matriz elétrica nacional) e, mais recentemente, para a energia solar, cujo crescimento foi destaque na modalidade de geração distribuída. A importância das novas FRE para manutenção da participação das fontes renováveis na matriz elétrica brasileira tende a crescer no futuro caso a perspectiva de eletrificação da economia se concretize.
A tendência de eletrificação da economia decorre de diversos fatores, como a pressão da sociedade pelo aumento do uso de FRE e o barateamento das tecnologias de geração de energia renovável. A melhora no aproveitamento das FRE abre espaço para o avanço da eletricidade nos diversos setores da economia, como os setores de transporte e industrial. A eletrificação do setor de transporte está relacionada, por exemplo, com a tendência de crescimento do uso de carros e ônibus elétricos, com o uso da eletricidade para a produção de hidrogênio a ser utilizado como combustível e, no Brasil, podemos falar ainda da expansão da malha metroviária nas grandes capitais. Como exemplo de eletrificação do setor industrial podemos citar a produção de hidrogênio verde e a produção sustentável de aço a partir do hidrogênio verde. Segundo o McKinsey Global Institute (2019), o processo de eletrificação da economia fará com que a demanda global por eletricidade dobre em 2050. Diante desse contexto, uma pergunta surge: qual seria a capacidade do Brasil em atender esse aumento de demanda por eletricidade por meio, principalmente, das novas renováveis e ainda garantir a segurança energética?
O Brasil, por condições naturais, tem tudo para responder melhor que a média mundial ao desafio da eletrificação da economia. Em termos naturais o Brasil é privilegiado, pois: (i) possui um elevado potencial eólico e solar; e (ii) apresenta complementariedade entre diversas fontes de energia. Enquanto o potencial eólico onshore brasileiro pode chegar a 880,5 GW, sendo 522 GW tecnicamente viáveis, o potencial solar, segundo Rodrigo Sauaia (ex-presidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica), é mais do que suficiente para atender toda a demanda atual de eletricidade do país (Pereira, 2016; Brito, 2018). No entanto, as fontes eólica e solar são intermitentes e, portanto, a entrada maciça dessas fontes na matriz brasileira requer a adoção de fontes firmes ou o desenvolvimento e utilização de baterias. O que reduz um pouco o problema da intermitência é a complementariedade existente entre as fontes solar e eólica (venta mais no período da noite) e, principalmente, entre a eólica e a hidrelétrica (venta mais no período seco do ano).
No curto prazo, o aumento da variabilidade na produção de eletricidade causada pela penetração da geração eólica e solar pode ser acomodada pelos reservatórios existentes e por investimento na rede de transmissão sem que isso acarrete custos significativos para a operação do sistema elétrico. No médio prazo (ou enquanto as baterias não se tornarem uma realidade), a expansão das fontes eólica e solar na matriz elétrica brasileira irá requerer a expansão de fontes firmes (com flexibilidade de operação), como as hidrelétricas e as térmicas. As hidrelétricas possuem expansão restrita dado que a maior parte do potencial inexplorado se encontra na região amazônica, local caracterizado por relevo não propício para a construção de reservatórios e que possui sérias questões socioambientais. As usinas térmicas, por outro lado, seriam de mais fácil adoção. Neste caso, deve ser dado prioridade para as térmicas a biomassa (por ser renovável e complementar às hidrelétricas) e a gás natural (por ser menos poluente do que as que utilizam combustíveis como o diesel e pelo fato de ajudar o Brasil a explorar as grandes reservas de gás recentemente descobertas).
Além de tornar a economia brasileira mais competitiva, promover o crescimento ambientalmente sustentável e ajudar na segurança energética, as fontes eólica e solar podem ser importantes para a atração de investimentos estrangeiros e para a geração de empregos. A retomada da economia brasileira depende de investimentos e, dada a situação fiscal do país, estes deverão vir majoritariamente do setor privado nacional e estrangeiro. As FRE possuem grande capacidade de atração de investimentos estrangeiros em função de seu caráter sustentável, algo que, como vimos anteriormente, as grandes empresas e o mercado internacional de capitais passaram a dar bastante atenção. Quanto a geração de empregos, os investimentos em energias renováveis geram mais empregos do que investimentos na indústria de combustíveis fósseis, além de serem importantes para aspectos sociais, como a inclusão da mulher no mercado de trabalho. Segundo IRENA (2019b), as mulheres atualmente representam 32% da força de trabalho do setor de energia renovável, valor superior aos 22% verificado na indústria global de petróleo e gás.
Por fim, as fontes eólica e solar podem ajudar o Brasil a atender a demanda crescente de energia de forma sustentável e, então, permitir que o país utilize tal fato como um ativo geopolítico a ser utilizado em negociações internacionais relativas ao comércio e ao clima. Com um sistema elétrico majoritariamente limpo e renovável o Brasil pode incentivar a entrada no setor produtivo local de empresas que buscam reduzir sua pegada ecológica, atrair capital estrangeiro de fundos comprometidos com o desenvolvimento sustentável, além de garantir mercado externo para seus produtos que, naturalmente, serão mais sustentáveis e competitivos dado que poderão utilizar fontes limpas e baratas de energia.
Vimos que o Brasil já possui uma matriz elétrica majoritariamente renovável e que tem condições naturais de manter essa elevada participação mesmo com o aumento da demanda de eletricidade esperada para os próximos anos, isso graças a competitividade que as novas renováveis apresentam no país. No entanto, é de suma importância que o governo apresente mudanças regulatórias de modo a acomodar a entrada de renováveis no sistema e de modo a incentivar as inovações. Sobre este ponto podemos citar questões como uma melhor regulamentação da geração distribuída e centralizada (como a questão da remuneração da flexibilidade das fontes), um melhor funcionamento dos programas de Pesquisa e Desenvolvimento e o desenvolvimento de novos modelos de negócio.
Referências
BRITO, V. (2018). Potencial solar brasileiro poderia atender demanda de energia elétrica de 170 Brasis. Portal do Centro Sebrae de Sustentabilidade.
EPE (Empresa de Pesquisa Energética). (2020). Balanço Energético Nacional 2020: Ano base 2019. Rio de Janeiro: EPE, 2020.
IRENA. (2020). Renewable Power Generation Costs in 2019.
IRENA. (2019a). Renewable Power Generation Costs in 2018.
IRENA. (2019b). Renewable Energy: A Gender Perspective, Abu Dhabi.
MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE. (2019). Global Energy Perspective 2019: Reference Case. Energy Insights.
PEREIRA, E. B. (2016). Segurança Energética: perspectivas no enfrentamento às mudanças climáticas globais. In: Conferência Internacional do INCT para Mudanças Climáticas. São Paulo: setembro, 2016.
Sugestão de citação: Ferreira, W. C. (2020). Novas Renováveis, transição Energética e a retomada da Economia brasileira. Ensaio Energético, 28 de setembro, 2020.
Autor do Ensaio Energético. Economista, Mestre e Doutor em Economia pela UFF. Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.