Passados seis meses do início das medidas de isolamento no Brasil, já é possível identificar o impacto da pandemia no setor elétrico brasileiro. O efeito principal da pandemia foi a forte queda demanda. Essa queda foi mais intensa nos meses de abril e maio, sendo diferente entre as regiões brasileiras e entre os segmentos de consumo.
Figura 1 – Carga mensal de Eletricidade nos Subsistemas do Sistema Integrado Nacional – TWh
Fonte: ONS
As primeiras medidas de restrição a mobilidade ocorreram em meados de março. No entanto, a queda de demanda de eletricidade foi mais significativa nos dois meses seguintes, abril e maio, quando a redução de carga foi superior a 10% em relação ao mesmo mês de 2019 (Tabela 1). Com a flexibilização das restrições, o consumo se recuperou nos meses seguintes e, em agosto, a carga no sistema nacional já foi superior à de 2019. Os subsistemas Sudeste/Centro-Oeste e Nordeste foram os mais impactados. A demanda nesses subsistemas caiu cerca de 12% em abril e maio. O impacto no subsistema Sul foi tardio, mas foi duradouro. A carga em agosto foi ainda 4% inferior à ocorrida em 2019.
Tabela 1 – Redução mensal da carga em relação ao ano de 2019.
Fonte: ONS
Entre os segmentos de consumo, o impacto da Covid-19 foi bem distinto (Figura 2). O setor residencial teve demanda positivamente impactada. Com o confinamento, as pessoas permanecem em casa por mais tempo aumentando o uso de equipamentos. O consumo residencial foi em média 3,5% superior ao observado em 2019 nos meses de abril a julho. Já o consumo industrial teve redução significativa nos meses de quarentena. No momento mais crítico, no mês de maio, a redução foi de 14% em relação a 2019. Desde então, o consumo tem se aproximado dos valores de 2019, refletindo a recuperação da atividade industrial no país. O segmento de consumo mais impactado foi o comercial. As atividades comerciais e de serviços são mais vulneráveis às restrições de mobilidade. Em maio, o consumo comercial foi um quarto inferior a 2019. E a diminuição do consumo persistiu mesmo com o relaxamento da quarentena. Em julho, que corresponde ao dado mais recente, a redução foi de 14% frente a 2019.
Figura 2 – Variação do consumo por segmento frente ao mesmo mês de 2019 (%)
Fonte: EPE.
A EPE estimou que o consumo de eletricidade 2020, ano fechado, será 2,7% inferior a 2019 no cenário de referência para o PDE 2030. Essa estimativa representa uma quebra em relação à demanda projetada antes da pandemia de 6,4%, já que a projeção do PDE 2029 era de crescimento do consumo de 3,7% em 2020. No mercado residencial, a EPE espera uma queda pouco significativa do consumo, de 0,7% em relação a 2019 [1]. As reduções projetadas para os segmentos industrial e comercial são 3,3% e 7,1%, respectivamente.
Figura 3 – Variação projetada do consumo de eletricidade em 2020 (% em relação a 2019)
Fonte: EPE (2020), Estudos do Plano Decenal de Expansão de Energia 2030 – Demanda de Eletricidade.
As distribuidoras de eletricidade foram mais expostas aos efeitos da pandemia. As distribuidoras contam com contratos de suprimento pouco flexíveis para adequar a redução do mercado final. A receita das distribuidoras foi reduzida em R$ 7,3 bilhões em termos reais (preços de 2020) do primeiro semestre de 2019 ao primeiro semestre de 2020. Ainda que a receita de distribuição seja bastante significativa, próxima a R$ 90 bi nesse período, a margem da atividade representa um quarto desse total (sem impostos). Assim, a queda de receita é muito impactante na atividade.
Figura 4 – Receitas das distribuidoras de eletricidade sem tributos de janeiro a julho 2019 e de janeiro a julho 2020 – R$ Bilhões de 2020
Fonte: ANEEL – Relatórios de Consumo e Receita de Distribuição (2020)
Nota: Os preços de 2019 foram atualizados para 2020 com a utilização da variação do IPCA médio dos primeiros sete meses de 2020 frente aos primeiros sete meses de 2019
Para mitigar os efeitos financeiros da queda de demanda nas distribuidoras de eletricidade e evitar um aumento abrupto das tarifas de eletricidade durante a pandemia, o governo criou a Conta Covid, uma linha de crédito estruturada com um pool de 16 bancos que teve as condições estabelecidas pelo decreto 10.350/2020. O valor envolvido foi de R$ 15,3 bilhões, que corresponde o total emprestado às distribuidoras, R$14,8 bi, e os custos de estruturação da operação. Esse valor é cerca do dobro da perda de receita das distribuidoras até julho, evidenciando que outros fatores, como a desvalorização do Real [2], pressionaram os custos das empresas. Os empréstimos serão pagos até dezembro de 2025, com taxas de juros de 4,9% mais IPCA (8,8% a.a. nominais) e carência de 11 meses (o primeiro pagamento será em 15 de julho de 2021).
O pagamento dos empréstimos será feito via Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), após um prazo de carência de 11 meses. Ou seja, o primeiro pagamento ocorrerá em julho de 2021. Para evitar que a conta Covid pressione a tarifa nos próximos anos, o governo editou a Medida Provisória (MP) 998. A MP prevê a utilização de saldos represados dos encargos setoriais para abater a conta Covid. Segundo as estimativas divulgadas pela ANEEL, é possível abater R$ 4,6 bilhões da conta Covid através de recursos dos programas de Pesquisa e Desenvolvimento e Eficiência Energética (P&D e EE) não utilizados até setembro de 2020.
A MP 998/2020 também estabeleceu que, até 2025, enquanto a conta Covid estiver vigente, os recursos arrecadados e não utilizados de P&D e EE serão direcionados para abastecer a CDE. Pelo texto, o repasse à CDE deve representar ao menos 30% da parcela direcionada aos projetos dos programas de P&D e EE geridos pela ANEEL, que representa 40% da arrecadação total da cláusula de P&D e 80% da arrecadação de eficiência energética.
A medida provisória 998 também eliminou subsídios às fontes incentivadas. Segundo a análise da ANEEL, com a trajetória de expansão das renováveis, os subsídios agregavam R$ 400 milhões ao ano aos encargos no Brasil. Pela MP 998, farão jus aos descontos apenas os projetos que estão em operação e os que obtiverem outorga em um prazo de um ano e que entre em operação integral em até 2 anos após a obtenção da outorga. Ou seja, os projetos de fontes incentivados que entrarem em operação em 2024 já não contarão com os descontos de Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e Tarifa de Uso do Sistema de Transporte (TUST). As renovações de outorga e as ampliações de capacidade não recebem descontos.
Mesmo com os efeitos da MP, o pagamento da Conta Covid via CDE deve elevar em 1% as tarifas de eletricidade nos próximos 5 anos. Além do impacto da conta Covid, a queda significativa da demanda em relação a trajetória prevista, certamente, pressionará as tarifas em revisões futuras das distribuidoras.
Uma vez que os efeitos conjunturais da pandemia no setor elétrico já podem ser bem identificados, é interessante analisar o impacto de longo prazo e as condições para o setor elétrico contribuir para a retomada da economia brasileira no período pós pandemia.
Após vários anos em trajetória de crescimento, os preços da eletricidade no Brasil podem ser considerados um entrave ao crescimento econômico. Um fator determinante dessa trajetória é o peso dos encargos setoriais (SECAP/Fazenda, 2019). Os 16 itens de financiamento de programas e subsídios remunerados através das tarifas de eletricidade somaram em 2019 um valor total de R$ 32 bilhões.
A MP 998 focou dois componentes dos encargos, os recursos direcionados para programas de P&D e eficiência energética e os subsídios para fontes renováveis. Talvez sejam os itens com menores resistências para alterações, mas não são, necessariamente, os mais dispensáveis, já que na lista de encargos há subsídios a fontes poluentes (carvão mineral) e auxílios que incidem em cascata, caso dos subsídios à irrigação e aos consumidores rurais.
No caso do programa de P&D da ANEEL, há certo consenso que a política é, atualmente, mal desenhada para incentivar a consolidação de um ecossistema de inovação no setor elétrico nacional. No entanto, retirar esses recursos pode comprometer esse ecossistema. É preciso destacar que a MP fixa um repasse mínimo, mas a tendência é que percentagens superiores sejam destinadas a CDE [3]. O sistema energético está em um momento de transição, com várias tecnologias novas que podem transformar o setor, como baterias, mobilidade elétrica e hidrogênio. Os recursos para P&D podem ser importantes para posicionar bem o Brasil nessa transição.
No caso dos incentivos para fontes renováveis, há a percepção que as fontes solar e eólica já alcançaram um patamar de competitividade que dispensariam subsídios para deslocar outras fontes. No entanto, é preciso considerar que essas fontes detêm externalidades positivas que hoje não são precificadas no Brasil. Como apontam Losekann et al. (2013), os incentivos ad hoc aplicáveis para renováveis são importantes para promover a manutenção de elevada participação de renováveis na matriz de geração brasileira, uma vez que não contamos com taxa ou mercado de carbono. Por outro lado, é importante analisar o efeito líquido dos subsídios no preço final. Se a eletricidade é contratada de forma competitiva, o que é a característica de nossos leilões, a tendência é que o subsídio seja repassado ao consumidor final. Ou seja, o incentivo pode funcionar como instrumento de seleção, favorecendo fontes renováveis, sem elevar o preço final.
Ou seja, a MP 998 endereçou um tema relevante para que o fornecimento de eletricidade seja um fator de competitividade da indústria brasileira que é a redução do peso dos encargos. No entanto, os itens alterados podem comprometer que o setor elétrico seja inovador e sustentável, objetivos essenciais de sistemas elétricos modernos. A MP prevê a proposição futura de mecanismos de incentivo a inovação e renováveis e esse compromisso não deve ser deixado em segundo plano. Como estratégia de redução do peso dos encargos, é importante reavaliar seus componentes menos meritórios e, principalmente, analisar se os programas e incentivos meritórios devem ser financiados através das tarifas de eletricidade. Certamente, os incentivos econômicos são mais adequados se os programas de impacto social que não estão diretamente relacionados ao funcionamento do setor elétrico sejam financiados através de transferências do tesouro.
FURTADO, M (2020), MP 998 abre brecha para acabar com programas de P&D e eficiência. Energia Hoje – Brasil Energia. 03/09/2020. Disponível em: https://energiahoje.editorabrasilenergia.com.br/mp-998-abre-brecha-para-acabar-com-programas-de-pd-e-eficiencia/
LOSEKANN, L. D.; ALMEIDA, E. ; RAMOS-REAL, F. ; MARRERO, G. (2013) . Efficient power generating portfolio in Brazil: Conciliating cost, emissions and risk. ENERGY POLICY, v. 62, p. 301-314, 2013.
SECAP/Fazenda (2019). Visão da Secap sobre o setor de energia – Encargos do Setor Elétrico: Um breve diagnóstico. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-informativas/2019/visao-secap-energia_19-12-2019_4a-edicao.pdf/@@download/file/visao-secap-energia_19-12-2019_4a-edicao.pdf
Notas
[1] É importante ressaltar que a projeção do consumo residencial não é consistente com os dados observados em 2020. Até julho, data da divulgação do estudo da EPE, o consumo residencial em 2020 foi 1,5% superior a 2019.
[2] Alguns preços como a tarifa de Itaipu e custos de termelétricas são nominados em dólar.
[3] Especialistas têm apontado que a taxa de utilização dos recursos para P&D e eficiência tende a se reduzir, uma vez que as concessionárias devem preferir orientar recursos para CDE do que arcar com custos gerenciais dos programa e correr o risco dos gastos não serem aprovados pelo regulador (Furtado, 2020).
Sugestão de citação: Losekann, L. (2020). Eletricidade e COVID-19: Impactos, medidas de enfrentamento e perspectivas setoriais. Ensaio Energético, 28 de setembro, 2020.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).