Ensaio Energético

Disponibilidade e potencial de resíduos florestais para a produção de biocombustíveis avançados no Brasil

Biomassa e biocombustíveis avançados

Biomassa pode ser definida como qualquer material orgânico de origem animal ou vegetal disponível de forma renovável, incluindo florestas plantadas, culturas energéticas, resíduos florestais e agrícolas, resíduos sólidos de origem animal, resíduos sólidos urbanos, entre outros. A biomassa originária das mais variadas fontes pode ser convertida diretamente em calor ou em vetores intermediários de energia (sólidos, líquidos e gasosos) para subsequente geração de calor, eletricidade e biocombustíveis.

Tipicamente, a biomassa compõe-se de estruturas celulósicas e hemicelulósicas, ligninas, lipídios, proteínas, açúcares simples, amidos, água, hidrocarbonetos e cinzas, dentre outros compostos. Embora a participação de cada um desses componentes varie de acordo com a tipologia de biomassa, em geral a presença (em base seca) de carbono encontra-se numa faixa de 30 a 60%, a presença (em base seca) de hidrogênio encontra-se numa faixa de 5 a 7% e a presença (em base seca) de oxigênio encontra-se numa faixa de 30 a 45% [1].

Os biocombustíveis são combustíveis produzidos a partir da biomassa. No Brasil, os principais biocombustíveis que compõem a matriz energética nacional são o etanol, produzido a partir da cana-de-açúcar, e o biodiesel, produzido a partir de oleaginosas, especialmente a soja. Já os biocombustíveis avançados são biocombustíveis produzidos a partir de biomassas lignocelulósicas, culturas não alimentares, ou resíduos (resíduos sólidos urbanos, resíduos agrícolas e resíduos florestais), com baixos impactos em níveis de emissões e mudanças diretas e indiretas no uso do solo. Portanto, o que define se um biocombustível é avançado ou não é o tipo de biomassa utilizado para sua produção.

Conversão termoquímica da biomassa

Os processos de conversão termoquímica da biomassa e as diversas tecnologias que os compreendem são amplamente complexos e variados, e se apresentam como alternativas promissoras, especialmente, para a produção de biocombustíveis avançados. Em linhas gerais, as diversas rotas envolvem a geração de produtos gasosos, líquidos ou sólidos, e o subsequente upgrading desses produtos para atingir formas mais valiosas de energia (biocombustíveis líquidos, plataformas ou produtos químicos, e eletricidade).

Dentre as rotas termoquímicas disponíveis para a conversão da biomassa em produtos energéticos (como biocombustíveis, eletricidade e energia térmica) ou produtos químicos de alto valor agregado, destacam-se os quatro processos a seguir: a pirólise, a gaseificação, a liquefação hidrotérmica e a combustão. A Figura 1 apresenta esquematicamente as rotas termoquímicas citadas, e a Tabela 1 dispõe suas principais características, tais como condições de processo e rendimento por tipo de produtos.

Figura 1: Rotas para conversão termoquímica da biomassa

Fonte: Elaboração Própria.

Tabela 1: Sumário das Principais Rotas para Conversão Termoquímica da Biomassa

Fonte: Elaboração Própria.

Dentre os principais processos apresentados, apenas três podem ser utilizados para a produção de biocombustíveis avançados: a pirólise, a liquefação hidrotérmica e a gaseificação (quando seguida de uma etapa de síntese para a produção de líquidos).

O processo denominado pirólise consiste na decomposição térmica de materiais orgânicos[1] (neste caso, da biomassa) em ausência de oxigênio, ou ainda em condições tais que as pressões parciais e/ou temperaturas favoreçam a redução dos compostos, em detrimento de sua oxidação. A pirólise é capaz de alcançar uma faixa variada de produtos (sólidos, líquidos e gasosos), dependendo das condições em que o processo é conduzido, podendo ser classificado como pirólise lenta (baixas taxas de aquecimento e alto tempo de residência, favorecendo a produção de frações sólidas) ou pirólise rápida (altas taxas de aquecimento e baixo tempo de residência, favorecendo a produção de frações líquidas, ou bio-óleos). Os produtos da pirólise podem ser utilizados para a geração de biocombustíveis sólidos (carvão vegetal), biocombustíveis líquidos, químicos de alto valor agregado, eletricidade e calor.

A liquefação hidrotérmica da biomassa consiste na conversão termoquímica dessa matéria-prima em biocombustíveis líquidos através de seu processamento em ambiente aquoso pressurizado e a médias temperaturas. Neste caso, a água atua simultaneamente como reagente e catalisador, permitindo o processamento de biomassa úmida e sua consequente conversão direta, sem necessidade de uma etapa intensiva em energia de secagem da matéria-prima. Em função das condições severas em que o processo é conduzido, o desenvolvimento industrial e comercial da liquefação hidrotérmica sofre a imposição de diversos desafios, de modo que até o presente momento esta tecnologia foi demonstrada somente em pequenas escalas. Os produtos da liquefação hidrotérmica podem ser diretamente utilizados como alternativa ao óleo combustível de origem fóssil, ou podem ser tratados para produzir hidrocarbonetos similares aos disponíveis no mercado de derivados do petróleo.

Já o processo de gaseificação pode ser definido como a oxidação parcial de material sólido carbonáceo (rico em carbono tal como biomassa, carvão, coque, entre outros), conduzida a altas temperaturas em presença limitada de oxigênio, resultando em uma mistura de gases combustíveis, comumente denominada de “gás de síntese”, além de frações menores de líquidos (tars) e sólidos (chars). O gás de síntese, devidamente tratado e livre de impurezas e contaminantes, pode ser direcionado para diversas rotas para geração de produtos de maior valor agregado, dentre as quais se destacam a geração de energia (eletricidade e energia térmica), a síntese de biocombustíveis e a síntese de componentes químicos.

Resíduos florestais para produção de biocombustíveis avançados

Para os diversos processos de conversão termoquímica da biomassa em bioenergia devem ser observadas características químicas, físicas e mecânicas da biomassa, visto que estas propriedades podem influenciar diretamente o desempenho do processo, a eficiência de conversão e a qualidade do produto final. Dentre as características mais relevantes destacam-se o teor de umidade, o poder calorífico, o teor de cinzas, o teor de contaminantes (nitrogênio, enxofre e cloro) e a moabilidade do material.

O teor de umidade da biomassa pode variar amplamente (10-70%), exercendo importante influência sobre seu poder calorífico, sobre as condições de operação e sobre os rendimentos dos processos de conversão. Um elevado teor de umidade resulta em menor poder calorífico, reduzindo os rendimentos dos processos, visto que parte do calor liberado é absorvido para evaporação da água presente na biomassa. O poder calorífico da biomassa varia de acordo com sua composição, de modo que elevados teores de carbono e hidrogênio resultam em maior poder calorífico, enquanto elevado teor de oxigênio resulta em menor poder calorífico.

O teor de cinzas verificado na composição da biomassa é de extrema relevância para a formação de escórias (quanto mais alto o teor de cinzas, maior a quantidade de escórias formadas). Neste sentido, baixos teores de cinzas minimizam os perigos de entupimento e incrustações por escórias. Já os teores de contaminantes (nitrogênio, enxofre e cloro), são especialmente relevantes para as emissões do processo e para problemas de corrosão de instalações e envenenamento de catalisadores (quanto menor a presença de contaminantes, menores as chances de tais problemas no processamento downstream). Por fim, o termo “moabilidade” se refere ao comportamento do material durante o processo de moagem, para produção de grãos menores e mais uniformes. Materiais com boa moabilidade se fragmentam de forma mais uniforme, com baixo consumo energético.

Dentre os variados tipos de biomassa, as biomassas lenhosas (madeiras) são aquelas que apresentam maior teor de lignina e maior teor de carbono (47 a 50% em peso), o que implica em maior poder calorífico. Além disso, as biomassas lenhosas apresentam tipicamente baixo teor de cinzas e baixa presença de contaminantes, tais como nitrogênio, enxofre e cloro. Para o Brasil, as biomassas lenhosas de maior representatividade são o eucalipto, cuja cultura corresponde a 71,9% da área total de florestas plantadas no país, e os pinus, cuja cultura corresponde a 20,5% dessa área, segundo a Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas (ABRAF) [2].

Os resíduos florestais, ou seja, resíduos provenientes da instalação, gestão e processamento de biomassas lenhosas, tais como galhos e podas, passam a figurar como opção interessante para a produção de biocombustíveis avançados, visto que apresentam as características desejadas para processos de conversão termoquímica. Além disso, são materiais de baixo custo, não apresentando valor comercial significativo, o que reduziria os custos relativos à matéria-prima, e não implicam em mudanças de uso do solo. A escolha por resíduos florestais como matéria-prima, no entanto, deve ser sempre acompanhada de reflexão acerca dos impactos ambientais relacionados à produção de monoculturas energéticas em grande escala (eucalipto, pinus, acácia, entre outros), tais quais o esgotamento do solo, o consumo de recursos hídricos, os impactos sobre a fauna e a flora, e a redução da biodiversidade.

Disponibilidade e potencial de resíduos florestais no Brasil

A determinação da disponibilidade de resíduos florestais em termos de energia primária está calcada na capacidade de geração de biomassa pressupondo apenas limitações de caráter biofísico, ambiental e ecológico, não considerando atenuantes de ordem logística ou econômica. Neste contexto, a disponibilidade de resíduos de eucalipto e pinus apurada por este estudo compreende apenas a quantificação energética do recurso disponível passível de utilização para geração de biocombustíveis líquidos, de acordo com a rota tecnológica investigada.

O potencial disponível de resíduos florestais, em termos de energia primária, é calculado através da equação a seguir.

Os dados relativos à área plantada para cada um dos municípios brasileiros foram obtidos através da base de dados SIDRA (Sistema IBGE de Recuperação Automática) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o ano base 2013. Por simplificação, a produtividade das culturas foi estabelecida tomando a média nacional de acordo com dados disponibilizados pelo Anuário Estatístico 2013 da Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas (ABRAF), fixando-se em 40,7 m³/ha para o eucalipto, e 40,1 m3/ha para pinus [2].

A razão resíduo-produto para ambas as culturas foi aproximada para a razão de resíduos gerados para o processamento e corte de madeira em florestas plantadas, estimado em 0,45 [3]. Dados de densidade e poder calorífico inferior do eucalipto foram adotados segundo dados disponíveis na Phyllis Biomass and Waste Database, Energy Research Centre of the Netherlands: 500 kg/m3 e 15,5 MJ/kg para o eucalipto, e 480 kg/m3 e 16,9 MJ/kg para pinus [4].

A Figura 2 apresenta os resultados georreferenciados (por município brasileiro) da disponibilidade e do potencial dos resíduos de eucalipto (em verde) e de pinus (em laranja).

Figura 2: Potencial disponível de resíduos de pinus (laranja) e eucalipto (verde)

Fonte: Elaboração Própria.

Em termos de energia primária, os resíduos de eucalipto e de pinus apresentam potenciais nacionais de 987 PJ e 297 PJ, respectivamente. A maior parte destes potenciais está localizada nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul: aproximadamente 66% do potencial total no caso do eucalipto, e mais de 99% no caso dos pinus.

Hotspots para a produção de biocombustíveis avançados a partir de resíduos florestais no Brasil

Os chamados hotspots” são as localizações geográficas mais adequadas para a instalação de unidades de conversão alimentadas por resíduos florestais, definidos com base na densidade energética dos resíduos ao longo de uma determinada área ou região. O método utilizado para determinar tais localizações é o Método Kernel. O Método de Kernel consiste em uma metodologia não paramétrica para estimativa de curvas de densidade, onde cada observação é ponderada pela distância relativa ao ponto central, ou núcleo. A densidade é determinada pelo número de pontos em um local, de modo que quanto maior a aglomeração de pontos, maior será a percepção da densidade. A análise é conduzida utilizando ferramentas de sistema de informação geográfica. No caso deste estudo foi utilizado o software QGIS – Quantum Geographic Information System.

Primeiramente, foram individualizados os dados de disponibilidade de resíduos florestais por Estado. Foram selecionados apenas os Estados com potenciais de bioenergia acima de 6000 TJ. Em seguida, foi aplicado o Método de Kernel para cada Estado selecionado, tomando como núcleos os centroides de cada área municipal. Então, a partir dos mapas de calor gerados e da distribuição de valores do mínimo ao máximo (subdivididos em 9 classes), foram determinados os hotspots regionais (ponto de máximo) e suas respectivas coordenadas geográficas, bem como os municípios correspondentes (ficando determinada a localização geográfica desejada). O sistema de coordenadas selecionado foi South American Datum 1969 (SAD 69). Os hotspots resultantes são apresentados na Figura 3.

Figura 3: Hotspots para a produção de biocombustíveis avançados a partir de resíduos florestais

Fonte: Elaboração Própria.

Através da localização dos hotspots, se observa uma concentração da disponibilidade dos resíduos florestais no eixo Sudeste-Sul, próximos a refinarias, destilarias produtoras de etanol, e importantes centros de distribuição de combustíveis. Esta localização estratégica pode se beneficiar da infraestrutura e da cadeia logística existentes para a distribuição de produtos derivados do petróleo e de biocombustíveis. Por outro lado, a existência de hotspots também no eixo Norte-Nordeste, e mesmo em pontos mais isolados do Centro-Oeste, pode ser vantajosa para a produção e o suprimento de biocombustíveis em áreas extremamente dependentes da cadeia de suprimento de outras regiões do país.

O aproveitamento de resíduos florestais pode representar importante fonte de matéria-prima para a produção de biocombustíveis avançados, condizente com o objetivo estabelecido pela NDC (Nationally Determined Contribution) brasileira de aumento da participação de bioenergia sustentável na matriz energética nacional, incluindo o aumento da oferta de biocombustíveis avançados [5]. Se desenvolvido de forma adequada, o aproveitamento de resíduos florestais para a produção de bioenergia e de biocombustíveis tem potencial para contribuir para a mitigação das mudanças do clima, através do aumento dos estoques de carbono na biosfera e da substituição de sistemas baseados em fontes fósseis, promovendo maior segurança energética e fomentando oportunidades para o desenvolvimento econômico regional, seja mais próximo dos grandes centros conectando-se à infraestrutura existente, ou nas zonais rurais. Contudo, se desenvolvido de forma inapropriada pode impactar negativamente o clima e a conservação dos ecossistemas, potencializando conflitos, de modo que o seu desenvolvimento deve estar calcado na observação criteriosa de sua integração aos sistemas energéticos e sua interação com outros setores da economia e da sociedade.

Notas

Este texto é baseado no artigo “Techno-economic and georeferenced analysis of forestry residues-based Fischer-Tropsch diesel with carbon capture in Brazil” (Tagomori et al., 2019), publicado na Biomass and Bioenergy, em co-autoria com seus orientadores Alexandre Szklo e Pedro Rochedo, e a dissertação de mestrado da autora, defendida em fevereiro de 2017.

(Tagomori et al., 2019) “Techno-economic and georeferenced analysis of forestry residues-based Fischer-Tropsch diesel with carbon capture in Brazil”, Biomass and Bioenergy 123, 134-148.

[1] O termo “materiais orgânicos” aqui empregado abrange grande variedade de matérias-primas, desde a biomassa energética (madeira, resíduos florestais, resíduos agrícolas e agroindustriais) aos óleos vegetais, gorduras de origem animal, resíduos alimentícios, entre outros.

Referências

[1] Khan, A.A. et al., 2009. Biomass combustion in fluidized bed boilers: Potential problems and remedies. Fuel Processing Technology 90 (1), pp. 21-50.

[2] ABRAF, 2013. Anuário Estatístico, Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas. Brasília, Brasil.

[3] SCTP, 2011. Otimização da gestão de resíduos e o desenvolvimento florestal. II Encontro Nacional de Gestão de Resíduos, Paraná, Brasil.

[4] ECN, 2016. Phyllis Biomass and Waste Databse. Energy Research Centre of the Netherlands, The Netherlands.

[5] Brasil, 2016. Nationally Determined Contribution (NDC) Brazil. Ministério do Meio Ambiente, República Federativa do Brasil, Brasil.

Sugestão de citação: TAGOMORI, I. S. (2021). Disponibilidade e potencial de resíduos florestais para a produção de biocombustíveis avançados no Brasil. Ensaio Energético, 15 de março, 2021.

Isabela Schmidt Tagomori

Engenheira Química pela Escola de Química da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Mestre em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ. Atualmente, é doutoranda em Planejamento Energético da COPPE/UFRJ e pesquisadora no departamento de Clima, Ar e Energia, na Agência de Avaliação Ambiental dos Países Baixos, PBL, Países Baixos.

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