Ensaio Energético

Como o desenvolvimento econômico impactou nos padrões de consumo de energia das famílias brasileiras entre 2002 e 2008?

Na primeira década dos anos 2000, as famílias brasileiras vivenciaram o crescimento da renda e um intenso processo de mobilidade social. Entre 2003 e 2009, a renda per capita dos brasileiros cresceu 4,71% a.a., ao passo que o PIB per capita, no mesmo período, evoluiu em média apenas 2,88% a.a. (em termos reais), de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Tal crescimento da renda se deu tanto pelo aumento real do salário-mínimo e pela maior oferta de empregos formais, quanto por programas sociais de transferência de renda para famílias de baixa renda, como o Programa Bolsa Família (PBF) (NERI, 2011).

De acordo com Neri (2011), 35,7 milhões de pessoas teriam ascendido às classes média e alta de 2002 a 2011, com aproximadamente 24,6 milhões de pessoas abandonando a pobreza. Na Tabela 1, é possível observar as famílias brasileiras e o seu respectivo rendimento médio familiar agrupadas em três classes de renda [1] de acordo com a semelhança do seu padrão de consumo de energia para os anos de 2002 e 2008. Como é possível observar, houve ganho real de rendimentos para famílias das classes baixa e média.

Entre outros aspectos, este crescimento de renda se traduziu em maior consumo de energia, o que levou a mudanças nos estilos de vida. Durante este período, a maioria dos domicílios brasileiros – incluindo os das classes de menor renda – poderia ter acesso a uma gama mais ampla de produtos e serviços, segundo o IBGE (2019a, 2019b). Os bens e serviços com as maiores variações de consumo em termos monetários afetaram direta ou indiretamente o consumo de energia das residências de forma significativa. Estes bens e serviços incluem eletricidade, transporte e eletrodomésticos.

Tabela 1 – Classes de Rendimento

Nota: Valores correspondentes a janeiro de 2003. O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) foi utilizado como deflator.

Fonte: Elaboração Própria com base no IBGE (2019a, 2019b).

Entretanto, as mudanças nos padrões de consumo e nos estilos de vida das famílias afetaram não apenas a demanda das famílias por serviços energéticos, mas também a demanda de energia dos setores produtivos que se esforçam para responder às novas necessidades nacionais.

Como demonstram Cohen et al. (2005), as famílias são responsáveis por demandar energia de forma direta para atender às suas necessidades por serviços energéticos. Mas, também por demandar energia de forma indireta, embutida nos bens e serviços consumidos pelas famílias. Apesar de essa energia consumida de forma indireta muitas vezes não ser relacionada às famílias (mas, sim, à indústria e ao comércio), é importante ressaltar que esta demanda de energia indireta na maioria das vezes supera significativamente o consumo direto de energia.

Além disso, em termos históricos, as famílias são o setor de demanda final que responde pela demanda da maior parte do Produto Interno Bruto – PIB na maioria dos países em desenvolvimento (WBG, 2019). Reforçando assim a importância da análise da demanda direta e indireta de energia das famílias, permite uma identificação mais fácil dos determinantes das mudanças na demanda interna de energia e pode, consequentemente, orientar as políticas energéticas setoriais.

Assim, este artigo procura entender se, ao longo de um processo de desenvolvimento socioeconômico, o aumento de renda por si só é suficiente para explicar a variação na demanda de famílias de diferentes classes de renda ou se outros fatores, tais como escolhas tecnológicas, estrutura econômica e comportamental, também desempenham um papel essencial. Para realizar esta análise para o estudo de caso baseado na experiência brasileira de desenvolvimento socioeconômico entre 2002 e 2008, foi utilizada uma metodologia de análise de decomposição estrutural proposta por Weiss de Abreu (2020) para investigar os determinantes do comportamento do consumo direto e indireto de energia para famílias de diferentes classes de renda. Esta metodologia isola fatores estruturais, tecnológicos e socioeconômicos que podem afetar o consumo de fontes de energia e a composição da cesta de consumo das famílias brasileiras. Mais detalhes da metodologia são apresentados em Weiss de Abreu (2020).

Resultados e Análise

Em 2002, o consumo total de energia (direta e indireta) das famílias foi de 119,594 milhões de tep. Em 2008, este valor aumentou 25,7% (152,366 milhões de tep). Como resultado, considerando os modos de consumo de energia direta e indireta, os domicílios foram responsáveis pela parte mais significativa da demanda energética brasileira, representando mais da metade da demanda interna de energia em 2002 e 2008 – 52% e 51%, respectivamente (Figura 1). O desfecho reforça a importância do presente estudo e da análise da procura de energia centrada nos agregados familiares, como já referido por COHEN et al (2005), LENZEN et al. (2006) e LENZEN et al. (2014).

Figura 1 – Demanda de Energia Direta e Indireta por setores de demanda final – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

A Figura 2 reforça a mensagem de que o consumo de energia indireta, ou seja, o consumo de energia embutido em bens e serviços consumidos pelas famílias, representa a parcela mais relevante do consumo de energia familiar em todas as classes de renda.  Totalizando em média 2/3 do consumo total de energia das famílias, o consumo indireto tende a representar uma menor participação nas famílias pertencentes às classes de menor rendimento– fato que pode estar relacionado ao peso maior que o consumo de energia tem nos orçamentos familiares de baixa renda.

Figura 2 – Consumo médio anual de energia doméstica por domicílio, por classe de renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

Além disso, destaca-se que o consumo indireto de energia aumentou significativamente sua participação no consumo total de energia das famílias da faixa de renda mais baixa (57% em 2002 e 62% em 2008), ao passo que, nas classes de renda média e alta permaneceu com participação relativamente estável – 68% e 71% respectivamente (Figura 2). Isso revela que o consumo indireto de energia nas famílias de baixa renda tende a apresentar maior elasticidade a variações de renda do que nas famílias classes mais altas. Porém, a seguir esses resultados serão explorados mais a fundo.

A Figura 3 apresenta as curvas de Lorenz para distribuição de renda, o consumo de energia direta (com e sem consumo de lenha e carvão vegetal) e o consumo de energia indireta, bem como as variações do índice de Gini para cada uma das variáveis (texto em verde ou vermelho). De acordo com a Figura 2, observa-se que a distribuição do consumo doméstico de energia é menos desigual do que a distribuição geral de renda, especialmente para o uso direto de energia, consumida, em geral, para atender às necessidades básicas.

Segundo a Figura 3, o consumo de energia apresentou redução da desigualdade na sua distribuição entre as classes de renda, acompanhando, assim, a redução da desigualdade de renda. Segundo o IPEA (2012), com base na Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, a desigualdade na distribuição de renda diminuiu 1,5% ao ano, de maio de 2002 a maio de 2008. Os resultados desse estudo revelam que a diferença do consumo total de energia entre as classes de maior e de menor renda diminuiu 0,4% ao ano.

A redução da desigualdade da distribuição do consumo de energia entre as classes de renda foi, no entanto, um pouco menor do que a verificada para distribuição de renda entre 2002 e 2008, dado que, a princípio, o consumo direto de energia teria aumentado a desigualdade na sua distribuição ao longo do período a uma média de 1,4% ao ano. Contudo, mais adiante, foi possível verificar que isso se deveu à redução do consumo de lenha e carvão vegetal, substituído por fontes mais eficientes, principalmente para cocção. Logo, considerando o consumo direto de energia descontado o consumo de lenha e carvão vegetal, foi verificada melhoria na distribuição do consumo de energia direto entre as classes de renda (-0,4% ao ano). Porém mesmo assim, a redução da desigualdade na distribuição do consumo direto de energia pelas classes de renda ainda foi um pouco menos acelerada do que a verificada para distribuição de renda (-1,5% ao ano) e do consumo indireto de energia (-1,5% ao ano).

Figura 3 – Curvas de Lorenz e Índice de Gini para distribuição da renda e do consumo doméstico de energia – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

A Figura 4 detalha o padrão de consumo de energia direta das famílias de diferentes classes de renda. O consumo direto de petróleo e derivados, energia elétrica e produtos de cana-de-açúcar foi maior nas classes de maior renda que, em contrapartida, teve reduzido o consumo de derivados de petróleo e aumentado o consumo de produtos da cana.

Figura 4 – Consumo médio anual de energia domiciliar direta por energético, segundo classe de renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

O consumo direto de lenha e carvão vegetal foi maior nas classes de renda mais baixa (Figura 4), dado que aponta o custo monetário zero do uso da lenha para cozinhar no setor residencial, já que as próprias famílias dedicam tempo e esforço para coletar esse material das florestas naturais (GIODA, 2019a; GIODA, 2019b). A lenha e o carvão vegetal são fontes de energia não modernas e ineficientes, cujo consumo, na maioria dos casos, pode levar a uma série de problemas de saúde para os usuários (GIODA et al., 2017). Quando queimados, esses combustíveis emitem gases e partículas capazes de prejudicar a saúde dos seus utilizadores. O consumo de lenha e/ou carvão vegetal, portanto, além de acarretar prejuízos (desmatamento e destruição dos biomas naturais) por conta da coleta, correlaciona-se negativamente com a qualidade de vida dos usuários.

Deste modo, de 2002 a 2008, o consumo de energia direta por domicílio aumentou em média 3,2%, com destaque para o crescimento do consumo de eletricidade e etanol.  Se não considerado o consumo de lenha e carvão vegetal, todas as classes de renda apresentaram taxas de crescimento positivas. Como mostra a Figura 5, o crescimento no consumo de energia direta domiciliar pode ser explicado pelo aumento do consumo de energia per capita e pelo crescimento da população.

Com base na Figura 5, todas as fontes energéticas apresentaram crescimento positivo de consumo direto, impulsionado pelo crescimento populacional. Porém, em termos per capita, houve queda no consumo direto de lenha e do carvão vegetal, na classe de renda mais baixa, e no consumo de petróleo e derivados, na classe de renda mais alta.

No caso da redução do consumo per capita de lenha e de carvão vegetal, entende-se que foi resultante do processo de ganho de poder aquisitivo vivido por essas famílias (WEISS DE ABREU, 2020), favorecidas, em consequência, em ganhos de bem-estar. O aumento do número de oportunidades de emprego, valorização do salário-mínimo e programas sociais de distribuição de renda, como o Bolsa Família, contribuíram para que muitas famílias apresentassem ganhos de poder aquisitivo e pudessem vir a substituir a lenha pelo GLP, um combustível mais limpo e eficiente para cozinhar.

Figura 5 – Decomposição estrutural da variação do consumo de energia direta por decil de Classe de Renda e energéticos – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

Apesar de a classe de baixa renda ter experimentado um modesto aumento liderado pelo crescimento da população, sua composição do consumo de energia per capita mudou significativamente (Figura 5). O consumo per capita de eletricidade e derivados de petróleo pelas famílias de classe mais baixa foi mais do que suficiente para compensar o declínio no consumo per capita de lenha e carvão vegetal. Tais resultados mostram algumas das implicações para a demanda doméstica de energia do programa Luz para Todos, cujo objetivo era universalizar o acesso da população à eletricidade no Brasil.

Por outro lado, o aumento do consumo de energia direta per capita das classes de renda média e alta foi grande determinante do crescimento do consumo de energia direto ao longo do período estudado (Figura 5). Tais alterações foram relacionadas principalmente à substituição de derivados de petróleo por etanol como combustível para fins de transporte. Isso fica claro ao constatarem-se a redução do consumo per capita de petróleo e derivados e o aumento vertiginoso do consumo de produtos da cana pelas famílias de alta renda (Figura 5). O fenômeno provavelmente está relacionado às mudanças observadas no consumo de energia direta, devido ao desenvolvimento massivo da tecnologia de veículos flex fuel no Brasil, desde 2003, e ao crescimento da mistura de etanol na gasolina, somados à política de controle do preço dos derivados de petróleo no território nacional.

Para melhor compreensão dos fatores determinantes do consumo direto de energia das famílias, mostra-se necessário o uso de métodos adicionais de análise, como por exemplo modelos Top Down, que demonstram como as famílias se comportam perante alterações de renda, preço e demais políticas públicas ou setoriais, ou modelos Bottom Up, que contêm detalhamento tecnológico  (desagregados por aparelhos e serviços de energia), ou mesmo modelos híbridos, que englobam as outras duas habilidades, a fim de representarem com maior realismo o padrão de consumo das famílias  (HORNE et al., 2005; BATAILLE et al., 2006).

A Figura 6 retrata o padrão de consumo de energia indireta das famílias brasileiras, embutida em bens e serviços pertencentes à cesta de consumo das famílias brasileiras, em 2002 e em 2008. Ao contrário do ocorrido no consumo de energia direta, no consumo de energia indireta não houve diferenças muito significativas em sua composição em termos de fontes energéticas entre as classes de renda (Figura 6), a não ser pela participação maior do consumo indireto de petróleo e derivados pelas famílias de renda mais alta.

Quanto à evolução do padrão de consumo de energia indireta das famílias brasileiras, deve-se notar que, entre 2002 e 2008, a participação do consumo indireto de produtos da cana-de-açúcar, eletricidade e gás natural aumentou, ao passo que foi detectada queda da participação percentual dos derivados de petróleo, principalmente na classe de alta renda. Isso pode ser explicado pela maior eletrificação da economia brasileira, pela expansão da rede de gás natural, pela consolidação do gasoduto Bolívia-Brasil e pelo aumento da produção de produtos da cana, devido ao desenvolvimento dos automóveis flex fuel. Segundo a série histórica do balanço energético da EPE (2017), o consumo de produtos da cana-de-açúcar ao longo deste período cresceu 64%, destinados principalmente ao setor de energia e à indústria de alimentos e bebidas.

Figura 6 – Consumo Médio Anual de Energia Indireta Familiar por Energético, segundo Classe de Renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

A Figura 7 mostra que as categorias de bens e serviços [2] em que o consumo de energia indireto das famílias se encontrava embutido em 2002 e em 2008.  Como é possível observar, o consumo indireto de energia encontra-se majoritariamente embutido nas despesas das famílias com alimentação, transporte (transporte público de passageiros, como ônibus, trem, metrô e avião, serviços de transporte, como táxis e mototáxis, viagens, fretes e compra de veículos e peças) e habitação (construção e manutenção da casa e compra de eletrodomésticos). É também possível notar que, embora o peso do consumo indireto relacionado com a despesa com habitação seja relativamente estável entre diferentes classes de rendimento, o peso da energia incorporada em produtos alimentares diminui à medida que aumenta o rendimento, enquanto o relativo à despesa com transporte e veículos aumenta consideravelmente.

Quanto à evolução do padrão de consumo de energia embutida em bens e serviços entre 2002 e 2008 (Figura 7), a participação da energia embutida em alimentação ficou relativamente estável, mas a participação da energia embutida em bens e serviços relacionados ao transporte cresceu significativamente nas classes de renda baixa e média. Isso demonstra que as classes de renda baixa e média poderiam apresentar uma demanda reprimida por meio de transporte que passa a ser possível de ser realizada devido ao ganho de poder aquisitivo. Cabe ressaltar também a participação da energia embutida em bens e serviços relacionados ao transporte na cesta das famílias de renda mais alta. Segundo dados da POF (IBGE, 2018a; IBGE, 2018b), essa queda pode ser explicada pela redução do consumo pelas famílias da classe de renda mais alta de serviços de transporte urbano e de fretes. A queda da atividade de transporte de carga em modais aéreo, aquaviário e rodoviário no período de 2008 a 2009 foi relatada por EPE (2012) e pode ser associada a impactos relativos à crise financeira de 2008-2009. Segundo dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD) [3], em 2008 houve queda vertiginosa do transporte marítimo e, segundo Associação Internacional de Transporte Aéreo (International Air Transport Association – IATA) [4], entre 2008 e 2009, o frete aéreo global sofreu uma queda de 9,7% devido à crise financeira.

Figura 7 – Origem do Consumo de Energia Indireta por categorias de Bens e Serviços e por Classe de Renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

De acordo com a análise de decomposição estrutural disponibilizada na Figura 8, o crescimento do consumo de energia indireto é explicado e desagregado por 4 determinantes: efeito atividade, efeito intensidade, efeito estrutura e efeito cesta. De acordo com a análise de decomposição estrutural do consumo direto de energia, todos os efeitos foram positivos, incluindo o da intensidade energética, revelando dois importantes pontos: a economia brasileira passou a utilizar mais energia por unidade de produto interno bruto; e a demanda reprimida por energia no Brasil foi atendida (ao menos em parte). A existência de um efeito intensidade energética positivo pode ser relacionado ao processo de desenvolvimento de um país emergente. Porém, gera um certo nível de preocupação acerca da sustentabilidade desta trajetória de desenvolvimento.

O efeito atividade, determinado pelo nível de despesa das famílias, foi a principal motivação para o aumento do consumo indireto de energia em todas as classes de renda (Figura 8). Este resultado era esperado devido ao aumento da despesa das famílias de 2002 a 2008 (IBGE, 2018a; 2018b). No caso das famílias pertencentes à classe de alta renda, o efeito atividade foi responsável por representar quase 90% do aumento do consumo indireto de energia.

A Figura 8 revelou também que o efeito cesta, determinado pela composição de bens e serviços na cesta do consumidor, foi bastante significativo nas classes de renda baixa e média o efeito da cesta, só não sendo superior do que o efeito atividade nestas classes de renda. Isso foi resultado principalmente do aumento no consumo de energia indireta embutida em bens e serviços relacionados a transporte (Figura 7), como aumento das despesas com serviços de transporte urbano, aquisição de veículos, fretes e viagens.

Figura 8 – Decomposição estrutural da variação do consumo de energia indireta por classe de renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

Na Figura 9, visualiza-se a decomposição estrutural com os quatro efeitos desagregados por fontes energéticas. Através dessa análise, é possível concluir que os efeitos que aparentavam ser inócuos, na verdade, eram positivos para algumas fontes energéticas e negativos para outras fontes, num movimento de “compensação” entre si, reduzindo a magnitude do efeito total.

No que tange ao efeito intensidade energética (Figura 9), o aumento do consumo de eletricidade e de produtos da cana por unidade monetária produzida na economia superou significativamente a drástica redução na intensidade do consumo de petróleo e derivados por unidade produzida na economia brasileira, entre 2002 e 2008. Em relação ao aumento da intensidade de eletricidade, verificou-se um enorme aumento na eletrificação, devido à universalização do acesso, e no consumo de eletricidade, para atender a demanda proveniente do crescimento de renda. Entre 2003 e 2013, o programa Luz para Todos levou eletricidade a mais de 15 milhões de brasileiros (MME, 2019), dispensando o uso de derivados de petróleo para pequenos geradores em locais isolados. Além disso, o etanol substituiu os derivados de petróleo no setor de transportes. Em 2003, os veículos flex fuel foram introduzidos no mercado brasileiro e, em 2008, já respondiam pelo novo licenciamento de 90,3% dos carros e 65,5% dos veículos comerciais leves (ANFAVEA, 2018). O sucesso dos veículos “flex” e o aumento da participação obrigatória do etanol anidro na gasolina de 22%, em 2002, para 25%, em 2008, permitiram que o etanol combustível (anidro e hidratado) superasse o consumo de gasolina A em 2008 (DELGADO et al, 2017).

Figura 9 – Decomposição estrutural da variação do consumo de energia indireta por decil e energético por classe de renda – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

Já o efeito da estrutura (Figura 9) mostrou-se praticamente inócuo na análise agregada de decomposição estrutural. Porém, ao analisar o consumo de energia desagregado por fontes, é possível verificar que, entre 2002 e 2008, as indústrias mais intensivas em gás natural e em petróleo e derivados ganharam espaço na economia brasileira, enquanto as indústrias intensivas em eletricidade recuaram. Esse resultado pode ser explicado pela crescente oferta de gás natural a preços competitivos do gasoduto Brasil-Bolívia e pelo aumento da produção nacional de petróleo e gás, que levou à autossuficiência do País em petróleo, em 2006. Além disso, uma política de controle indireto de preços dos derivados de petróleo pela Petrobrás provocou um desalinhamento com o preço internacional do petróleo, fazendo com que os preços nacionais da gasolina, diesel e GLP no Brasil em média ficassem bem abaixo dos preços praticados no mercado internacional a maior parte dos anos de 2007 e 2008, como mostra OLIVEIRA (2015).  Como resultado, o preço dos derivados de petróleo no mercado brasileiro cresceu a uma taxa acumulada abaixo da verificada para inflação (35,3%) no período entre janeiro de 2003 e 2009, como mostra a Figura 10.

O preço do petróleo no mercado internacional de janeiro de 2003 a junho de 2009 passou de US$47,62 para US$165,20, apresentando crescimento de 246,9% (MACROTRENDS, 2020). Depois, devido à crise financeira, o petróleo apresentou queda vertiginosa de 69,2% em apenas 6 meses, atingindo preço de US$50,93 em janeiro de 2009 (MACROTRENDS, 2020). Apesar desta volatilidade não ter sido repassada para os principais derivados de petróleo no mercado nacional como forma de colaborar com o aumento da inflação (Figura 10), mas foi repassada de forma compensatória para outros derivados de petróleo, comoo óleo combustível, onerando principalmente a geração de energia elétrica com base nesta fonte utilizada principalmente para atender aos sistemas isolados dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Rondônia e Roraima [5].

Ao contrário do que ocorre com o gás natural e os derivados de petróleo, as tarifas de energia elétrica atingiram níveis elevados. Isso pode explicar, porque a eletricidade apresentou um efeito estrutural negativo (setores produtivos intensivos em eletricidade perderam espaço pelo aumento de preço da energia elétrica) e reafirma o efeito estrutura positivo para gás natural e derivados de petróleo (setores produtivos intensivos em fontes fósseis ganharam espaço).

Segundo dados da ANEEL (2020), as tarifas de energia elétrica cresceram aproximadamente 52,4% entre janeiro de 2003 e janeiro de 2009. Os maiores responsáveis pelo aumento da tarifa de energia elétrica entre 2003 e 2008 foram a Carga Tributária (composta por impostos e encargos sobre o setor elétrico) que apresentou aumento de 67% no período, e os Custo de Geração que aumentaram 46% no período, segundo o INSTITUTO ACENDE BRASIL (2009).

Figura 10 – Evolução da taxa de crescimento dos preços de derivados de petróleo, da tarifa média de Energia Elétrica e do Índice de Preço ao Consumidor Amplo – IPCA

Fonte: Elaboração Própria com base em ANP (2020), ANEEL (2020) e IBGE (2020).

Em relação à carga tributária, o aumento da tarifa de energia elétrica se deu devido a encargos existentes para cobrir os custos do Programa Luz para Todos, Tarifa Baixa Renda, a Conta de Combustíveis para sistemas isolados – CCC como citado anteriormente e do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA. Já os maiores custos de geração, se deveram à elevação do preço médio dos contratos de compra de energia fechados nos leilões (principalmente de 2005 a 2009), fazendo com o preço médio da energia contratada subisse de R$58/MWh para R$75/MWh (+29,3%) no período. Além disso, no período, ainda como uma herança das medidas emergências e do Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT) a operação do sistema para garantir o abastecimento da população e reduzir o risco de racionamento precisou recorrer mais do que previsto a usinas termelétricas fora de mérito (principalmente a diesel, óleo combustível e gás natural), que apesar de apresentarem custo variável unitário (CVU) mais alto garantiam carga e flexibilidade ao sistema interligado nacional (INSTITUTO ACENDE BRASIL, 2009).

Voltando ao “efeito cesta”, determinado pela composição da cesta básica de bens e serviços consumidos pelas famílias, analisando a Figura 9 é possível verificar que apesar de ter se mostrado significativo para a variação do consumo de energia indireta para as classes de baixa e média renda (Figura 8), este efeito foi o que apresentou menor oscilação de fontes energéticas. O efeito cesta apresentou basicamente mudanças significativas em termos do consumo indireto de derivados de petróleo por todas as classes de renda e de eletricidade pela classe de renda mais alta.

No caso dos domicílios pertencentes às classes de renda mais baixa e média, o efeito cesta foi significativamente positivo e intenso, considerando o baixo conteúdo energético indireto porque respondem essas classes de renda em função do seu modesto nível de despesas. O efeito cesta para essas classes foi dominado pelo aumento do consumo indireto de derivados de petróleo. Isso significa que essas famílias passaram a consumir uma cesta de conteúdo energético maior, composta por produtos e serviços que trazem embutido (ou demandam para ser produzidos e/ou ofertados aos consumidores) principalmente derivados do petróleo (Figura 9), como transporte coletivo de passageiros, transporte de carga e bem como produtos agropecuários para alimentação (Figura 11).

Já, no caso das famílias pertencentes à classe de renda mais alta, a Figura 9 também mostra que o efeito da cesta não foi significativo devido à substituição de produtos mais intensivos em petróleo e derivados por produtos mais intensivos em eletricidade principalmente. Desta forma, analisando os resultados da decomposição estrutural e os dados de despesas da POF (IBGE, 2018a; IBGE 2018b), é possível afirmar que serviços relativos ao transporte urbano e fretes intensivos no consumo de derivados de petróleo perderam espaço na cesta de consumo das famílias pertencentes à classe de renda mais alta, em detrimento de bens como eletrodomésticos, veículos e peças de automóveis, cuja produção é intensiva em eletricidade. Esse resultado é consistente com o aumento do consumo de produtos de cana devido à aquisição de veículos novos do tipo flex fuel (Figura 11).

É interessante destacar também um outro comportamento no que tange ao conteúdo energético da cesta de consumo das famílias pertencentes às classes de renda mais alta e média, revelado pela Figura 11. Ao passo que houve aumento da participação na cesta de consumo destas famílias de serviços de transporte intensivos em produtos da cana, alimentos intensivos em produto da cana perderam espaço. Logo, é possível associar esse efeito a mudanças nos estilos de vida dessas famílias com um maior consumo de serviços de transporte urbanos, como táxis, e a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis, como uma dieta menos intensiva em açúcares.

Figura 11 – Efeito Cesta detalhado por classes de renda, fontes energéticas e produtos – Brasil – 2002/2008

Fonte: Elaboração Própria.

Conclusões

Este estudo propôs utilizar a metodologia de decomposição estrutural para analisar estudo de caso brasileiro para os anos 2002 e 2008, período em que a renda familiar brasileira apresentou significativo crescimento e houve uma intensa mobilidade social. O principal objetivo foi analisar quais foram os fatores determinantes das variações na demanda de energia das famílias durante o processo de desenvolvimento econômico verificado no Brasil entre 2002 e 2008, examinando como essas mudanças podem refletir sobre outros setores econômicos e sobre a demanda total de energia do Brasil. Dentre os fatores analisados, considerou-se determinantes técnicos e econômicos das variações do consumo de energia e explora as relações destas variáveis com a estrutura da economia e os padrões de comportamento das famílias.

Os resultados mostraram que o aumento da renda per capita entre 2002 e 2008 no Brasil estimulou mudanças positivas na demanda de energia, seja para uso final direto ou embutido em bens e serviços que compõe a cesta de consumo das famílias em todas as classes de renda. A desagregação por classe de renda mostrou uma ligeira melhora na distribuição do consumo de energia entre as classes de renda, alinhada com o panorama socioeconômico.

A desagregação das famílias por classes de renda também destacou as disparidades no comportamento das famílias de diferentes classes de renda em termos de alterações de padrões de consumo de energia frente ao crescimento da renda. A análise do consumo direto de energia revelou demandas reprimidas por fontes modernas de energia, especialmente na classe de menor renda.

Portanto, não é surpreendente que a análise de decomposição estrutural tenha demonstrado efeitos do consumo per capita positivos para a eletricidade em todas as classes de renda. Enquanto para outras fontes de energia, como a lenha e o carvão vegetal, houve uma redução do consumo per capita na classe de menor renda, sendo esse substituído principalmente pelo GLP para cozinhar, devido ao crescimento da renda. Na classe de renda superior, o consumo de petróleo e derivados foi substituído pelo etanol, com a chegada dos carros flex-fuel no mercado brasileiro e a maior porcentagem de etanol anidro na gasolina. Fazendo assim o consumo de petróleo e derivados per capita cair na classe de renda mais alta, ao passo que o consumo per capita de derivados da cana aumentou no mesmo período.

Por outro lado, o trabalho também mostrou uma demanda reprimida das famílias por bens e serviços não energéticos refletida no aumento do consumo indireto de energia. Esta demanda reprima por bens e serviços é uma característica típica de um país em desenvolvimento como o Brasil. A análise da evolução do consumo indireto de energia das famílias observou um aumento maciço dos gastos domésticos (Efeito Atividade), bem como o aumento da intensidade energética (Efeito Intensidade) e mudanças significativas nos padrões de consumo doméstico (Efeito Cesta), particularmente para as duas classes de menor renda.

O efeito de intensidade positivo demonstra que a economia brasileira começou a utilizar mais energia para cada unidade monetária produzida, o que poderia ser interpretado como redução da eficiência energética. Mas ao analisar este efeito por fontes de energia, houve uma queda acentuada na intensidade do petróleo e dos produtos petrolíferos. Em contraste, a intensidade dos produtos da cana-de-açúcar e da eletricidade aumentou. Isto indica que o Brasil tem seguido um caminho que leva ao desenvolvimento sustentável, com sua população tendo melhor acesso a fontes de energia mais limpas.

Quanto ao efeito da cesta, as mudanças na composição da cesta de consumo dependem muito das classes de renda. As famílias de renda baixa e média vivenciaram aumentos significativos na energia embutida em suas cestas, devido ao crescimento dos serviços de transporte intensivos em petróleo. Por outro lado, o efeito da cesta foi quase inócuo para a classe de alta renda, com o consumo de energia através de produtos brutos e derivados de petróleo embutidos nos serviços de transporte substituídos por produtos com uso intensivo de eletricidade, especialmente veículos particulares. Estas descobertas também destacam a importância de analisar a composição da cesta de consumo por classe de renda nos estudos de previsão de demanda.

Além disso, este estudo mostrou que os padrões de consumo doméstico e a produção doméstica foram influenciados pelo crescimento da renda e pelas políticas setoriais. O uso de modelos estruturais econômico-energéticos, portanto, se mostra essencial para analisar os possíveis impactos de cada política sobre os custos de produção, o bem-estar social, as emissões de gases de efeito estufa e os níveis de poluição e, assim, para propor política mais eficazes para promoção do desenvolvimento sustentável.

No entanto, a disponibilidade de bancos de dados de padrões de consumo atualizados pode dificultar o desenvolvimento desses modelos nos países em desenvolvimento. Por exemplo, a última pesquisa do orçamento doméstico brasileiro que inclui dados sobre a posse de equipamentos e detalha as despesas domésticas por classe de renda, data de 2008-2009. A última pesquisa sobre propriedade e hábitos de consumo de energia data de 2005. Estas bases de dados não têm contado com atualizações desde então. Também é importante destacar que a integração dessas distintas bases de dados com contas nacionais, matrizes insumo-produto e os balanços energéticos possibilitariam o desenvolvimento de análises energéticas-econômicas mais aprofundadas e realistas.

Apesar das dificuldades de coleta de dados, o uso de modelos estruturais baseados em matrizes insumo produto híbridas, que detalham os fluxos monetários e os fluxos de recursos naturais em unidade físicas, como desagregação por classes de renda pode levar projeções da demanda de energia mais consistentes para os países em desenvolvimento. Essas melhorias nos métodos de planejamento podem contribuir para a existência de um sistema energético mais confiável e eficiente do ponto de vista econômico, contribuindo não apenas para o aumento da competitividade econômica desses países, mas também para o cumprimento de suas metas de desenvolvimento sustentável.

Notas

Este artigo foi desenvolvido com base nos resultados da Tese de Doutorado desenvolvida por Weiss de Abreu (2020) sob orientação do Professor Amaro Olimpio Pereira Jr para o programa de Planejamento Energético da COPPE/UFRJ, com auxílio financeiro do CNPq e da CAPES.

[1] As classes de renda foram construídas com base na metodologia de clusterização com base em padrões de consumo de energia das famílias brasileiras por classe de renda sugerida por UCHÔA et al (2015). O primeiro estrato social compreende os decis de renda de D1 a D4 e será aqui referenciado como classe de renda baixa; o segundo compreende os decis de renda de D5 a D8 e será chamado de classe de renda média; e o terceiro estrato compreende os decis de renda D9 e D10 e será reconhecido como classe de renda alta (Tabela 1).

[2] Foi utilizada a categorização de produtos e serviços sugerida por WEISS DE ABREU (2015).

[3] https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/11/ 081104_transporte_custo_dg.shtml

[4] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/02/05/transporte-areo-de-cargas-tem-pior-desempenho-desde-2009-aponta-iata.ghtml.

[5] https://www.ilumina.org.br/previsao-de-aumento-da-tarifa-de-energia-eletrica-em-2009/

Referências

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Sugestão de citação: Weiss, M. (2021). Como o desenvolvimento econômico impactou nos padrões de consumo de energia das famílias brasileiras entre 2002 e 2008?. Ensaio Energético, 25 de março, 2021.

Mariana Weiss

Economista com mestrado e doutorado em planejamento energético pela COPPE/UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atualmente, Mariana trabalha como consultora na área de Economia da Energia para a Agenda de Conhecimento da Divisão de Energia do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

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