Ensaio Energético

Ciclos e crises: a dinâmica recente das políticas energéticas

Introdução

O mundo tem vivenciado tempos instáveis e difíceis. No setor de energia não tem sido diferente e parte dessa instabilidade advém justamente da própria dinâmica dos mercado de energia. Para alguns especialistas estaríamos provavelmente vivenciando um novo choque do petróleo, ou mesmo um choque do gás natural (Almeida, 2022). Ainda existem dúvidas quanto à qualificação da crise atual sobretudo quanto a sua profundidade, amplitude e duração, mas não existem dúvidas que problemas existem e em uma escala global.

Dentre as razões que são apontadas como causa dessa instabilidade estão os efeitos de um retorno pós-pandemia das economias, a fragmentação das cadeias globais de valor, a  guerra na Ucrânia, efeitos adversos de políticas macroeconômicas e energéticas, entre outros. Em julho deste ano, o diretor executivo da Agência Internacional de Energia (IEA), Fatih Birol, disse que “o mundo nunca testemunhou uma crise energética tão grande em termos de profundidade e complexidade”, indicando que talvez o pior ainda estaria por vir com o aperto do petróleo com repercussões até o final do ano.

Este artigo tem como objetivo discutir a dinâmica recente das políticas energéticas sob uma perspectiva de ciclos e crises. Será feita uma breve conceitualização de políticas energéticas, como são, como se dão e motivadores. Em seguida, serão explorados alguns indicadores de intensidade de políticas para o setor, traçando um contexto de alto nível. Finalmente, serão trazidas algumas reflexões quanto aos desafios de formulação das políticas frente a contraposição de agendas para o setor.

 

O que são políticas energéticas afinal?

As políticas energéticas se encontram no universo de políticas públicas que incluem instrumentos político administrativos referenciados à determinados objetivos. A partir de processos decisórios são criadas ações normativas e/ou executivas que aliam interesses desde a esfera do Estado. Assim, uma “política energética” pode ser definida como um plano considerado, formulado e implementado por autoridades públicas (governo ou suas agências) e destinado a melhorar o que de outra forma seria o resultado do mercado (Robinson, 2013, p.272).

Na ciência política, choques e crises são importantes motores de processos políticos pois criam “pontos focais” para legitimar decisões que se desdobram em novas soluções, legislações e normas. Choques também permitem as chamadas “janelas de oportunidade” para tratar de um problema existente e trazê-lo à tona na agenda política pois geram pressões socioeconômicas que induzem seus formuladores.

Chamaremos de momentum de política energética aqueles “períodos intensos de construção de políticas, que geram massa crítica para transformações e institucionalização de necessidades” (Tavares, 2019). Períodos como estes podem ser relativamente rápidos (e.g. em resposta a crises) ou se estender por anos.

No contexto atual, onde discute-se um novo choque de preços do petróleo, um novo momentum poderia estar se formando em torno da segurança do abastecimento. Mesmo que a intensidade do petróleo na economia mundial esteja em declínio constante a décadas (Rühl e Erker, 2021), tornando-o muito menos importante do que era nos choques da década de 1970, seus preços elevados ainda geram motivos de preocupação quanto ao abastecimento e estabilidade das economias, que por conseguinte estimula intervenções via política energética para contornar seus efeitos adversos.

Vale ainda dizer que, apesar de orientadas para soluções, políticas não são alheias a falhas. Sokolowski e Heffron (2022) definem como falha de política energética quando ela “não atende aos objetivos locais, nacionais e internacionais de energia e clima em todas as atividades do ciclo de vida da energia e onde os resultados justos não são entregue”. Ressalte-se aqui que a definição dos autores traz explicitamente os objetivos do clima e o conceito de justiça, para além daqueles objetivos tradicionais de desenvolvimento econômico, tecnológico e social. Nesta definição, ao fracassarem, políticas energéticas colocariam um grande risco as metas globais de transição para sociedades de baixo carbono e de aumento das disparidades econômicas e sociais ao redor do mundo.

Curioso notar que esta definição se contrapõe diretamente à hipótese de alguns analistas de que a instabilidade atual dos mercados de energia é fruto justamente de falhas de políticas energética em prol do clima (e.g. Green Deal europeu) por trazer maior insegurança ao abastecimento.

 

A dinâmica recente das políticas energéticas

Muito tem se discutido nos últimos anos sobre políticas energéticas nas áreas de segurança do abastecimento e de clima.

Com relação à segurança do abastecimento, os planos de restringir o comércio de recursos energéticos russos (carvão, petróleo e gás natural) aos países ocidentais (sobretudo europeus), trouxeram iniciativas ao setor no sentido de assegurar e diversificar fontes de suprimento de energia. Em muitos casos, se contrapondo a processos de transição de baixo carbono locais (e.g. retorno de usinas de geração a carvão).

Por outro lado, na área de mudanças climáticas, desde o Acordo de Paris em 2015 até mais recentemente na COP 26 em Glasgow em 2021, foram desenvolvidas diversas frentes de políticas e metas em torno da descarbonização do setor energético se concentrando, por exemplo, em estratégias net zero.

O Gráfico 1 apresenta os registros de medidas e políticas energéticas da IEA ao longo dos anos. Este banco de dados tem como principal foco políticas governamentais relacionadas a clima, eficiência energética e renováveis. Essas informações de política são coletadas de forma sistemática desde 1999 de governos, organizações parceiras e por análises da própria IEA, não sendo exaustiva.

 

Gráfico 1 – Registros de medidas e políticas energéticas em países selecionados – 2020 a 2021

Fonte: IEA Policies and Measures Database (IEA, 2022a)

 

Apesar dos períodos 2007-2009 e 2015-2016 apresentarem expressivo número de registros de políticas, será em 2020 e 2021 onde estes registros terão seus pontos máximos. Este período é marcado pela pandemia do COVID-19, que trouxe consigo políticas associadas a ambições de descarbonização (net zero) mas também motivadas por razões macroeconômicas (como geração de emprego e renda). Para o ano de 2022 foram realizados ainda poucos registros de políticas (total de 30 para os países selecionados). Uma reflexão para o final deste ano seria se haverá uma intensificação ou redução de políticas nas áreas de clima, eficiência energética e renováveis como respostas à guerra na Ucrânia e os choques nos mercados de energia.

Outra medida de “intensidade” de políticas também pode ser obtida a partir de orçamentos/dispêndios voltados ao setor. O Gráfico 2 apresenta valores de orçamento de programas de pesquisa em energia em diversos países ao longo dos anos.  Por serem definidos em grande medida por aprovação política, tais orçamentos dão pistas quanto ao apetite político para o desenvolvimento setorial. O mesmo gráfico apresenta a forte correlação entre orçamentos de P&D e preços internacionais do petróleo, o que sugere a possível influência de elevação dos preços nos processos de decisão orçamentária ao setor[1].

 

Gráfico 2 – Orçamentos temáticos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em energia e o preço do petróleo

Nota: Médias anuais para Preços Spot de Petróleo: 1974-1983 Arabian Light (Ras Tanura) e 1984-2022 Brent Dated. Valores deflacionados ao CPI americano. Orçamentos dos seguintes países: Alemanha, Áustria, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Polônia, Portugal, Eslováquia, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos, Japão, Austrália, Brasil, Canadá, Coréia do Sul, Nova Zelândia, Turquia.

Fonte: IEA Energy Technology RD&D Statistics (IEA, 2022b), BP Statistical World Review (BP, 2022), FRED St Louis e US Energy Information Administration.

 

O orçamento agregado dos países ao longo da década de 2010 se manteve elevado, atingindo seu pico em 2021. Com exceção do Japão, os orçamentos do bloco europeu e dos Estados Unidos apresentam movimentos semelhantes. Nesta amostra os Estados Unidos representam cerca de 40% dos montantes, enquanto os países europeus 30%, Japão 20% e demais países 10%.

Note também uma mudança de perfil temático dos orçamentos de pesquisa ao longo do tempo, explicitando as mudanças de paradigmas tecnológicos e de estratégias para com o setor energético. Enquanto nos anos 1970, a energia nuclear era considerada a grande solução para as necessidades energéticas globais (além de uma fronteira tecnológico-estratégica militar), na última década houve a predominância de temas diversos como renováveis, eficiência e tecnologias transversais, indicando novos paradigmas tecnológicos e objetivos de descarbonização do setor.

 

Reflexões sobre as políticas energéticas de hoje e as que virão

Apesar das medidas anunciadas em resposta à crise deflagrada pela guerra na Ucrânia terem como foco a segurança do abastecimento, observou-se que o período recente foi relevante para a geração de novas políticas energéticas, sobretudo aquelas relacionadas ao clima e ao desenvolvimento socioeconômico. Neste sentido, para além de uma agenda de crise, havia uma agenda de ciclo sendo construída em torno dessas temáticas.

O desafio agora é entender se de fato o momentum de políticas em torno das questões do clima, construído desde o Acordo de Paris, estaria sendo substituído por um em torno da segurança do abastecimento. Aos formuladores de política resta saber se são objetivos divergentes ou não.

Neste artigo foram trazidas algumas definições do que são as políticas energéticas e como se desenvolvem. A despeito de como definir quais são as “boas” políticas energéticas, deve-se lembrar que qualquer que sejam elas, estarão sempre contextualizadas no espaço e no tempo. Mesmo que a formação de momentum sofra claras influências externas, por pressões do preço do petróleo, acordos do clima, etc., estas também se associam a mudanças de agenda locais e aos ciclos políticos (sejam liberalizantes ou de maior intervenção estatal). Neste sentido, é importante a geração de massa crítica em torno de temas latentes no setor de energia como forma de legitimar objetivos ao setor e contribuir para, inclusive, eleger os representantes que formularão suas políticas.

 

Referências bibliográficas

Almeida, E. (2022). Estamos Vivendo o Choque do Gás? Ensaio Energético, 27 de junho, 2022.

BP (2022) BP Statistical review of world energy 2022. London: British Petroleum Co., 2022. https://www.bp.com/en/global/corporate/energy-economics/statistical-review-of-world-energy.html

IEA (2022) Policies and Measures. Database. Paris: International Energy Agency. OECD, 2022a. https://www.iea.org/policies

IEA (2022) Energy Technology RD&D Statistics. Database. Paris: International Energy Agency. OECD, 2022b. https://www.iea.org/reports/energy-technology-rdd-budgets-overview

Sokolowski, M; Heffron, R. (2022) Defining and conceptualising energy policy failure: The when, where, why, and how. Energy Policy Journal 161.

Robinson, C. (2013) Energy policy: a full circle? In: FOUQUET, R. (Ed.) . Handbook on Energy and Climate Change. Cheltenham, UK. 2013

Rühl, C. ; Erker, T. (2021) Oil Intensity: The Curiously Steady Decline of Oil in GDP. Columbia Center on Global Energy Policy. September 2021

Sovacool (2013) Energy & Ethics: Justice and the Global Energy Challenge. Palgrave Macmillan, Basingstoke.

Tavares, F. (2019) Política energética em um contexto de transição: a construção de um regime de baixo carbono. Tese de Doutorado em Economia. Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019. 216p

US Energy Information Administration (2022). Petroleum & Other Liquids – Spot Prices. Database. https://www.eia.gov/dnav/pet/pet_pri_spt_s1_d.htm

FRED St Louis (2022) Prices. Database. https://fred.stlouisfed.org/categories/32455

 

Notas

[1] Em alguns casos, os orçamentos são financiados diretamente por recursos oriundos do próprio setor (por exemplo o caso do Brasil). Ou seja, se houver crescimento no setor, os orçamentos públicos direcionados ao setor aumentam. A base de dados da IEA, no entanto engloba sobretudo países que demandam processos de aprovação orçamentária.

 

Sugestão de citação: Tavares, B. F. (2022). Ciclos e crises: a dinâmica recente das políticas energéticas. Ensaio Energético, 16 de agosto, 2022.

Autor do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ, mestre em Economia e Gestão de Indústrias de Rede pela Universidade de Comillas (Espanha) e Paris Sul XI (França) e Fulbright scholar na Universidade de Columbia (Estados Unidos).

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