Recentes eventos climáticos extremos seguidos de uma campanha de desinformação no Texas colocaram em xeque a capacidade das fontes renováveis de ocuparem um espaço maior na matriz elétrica sem comprometer a confiabilidade do sistema [1]. Preços que atingiram patamares acima de US$ 9.000,00/MWh levaram alguns a culpar a liberalização (ou desregulamentação) nos mercados de energia elétrica pela crise [2]. Em tempos de mudanças climáticas, em que a frequência de eventos extremos se altera, e o Brasil passa também por um momento de reforma do setor de energia, é importante rever princípios econômicos básicos que devem nortear o desenho de mercados de eletricidade. O Ministério de Minas Energia e a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL reconhecem a inadequação dos mecanismos de formação de preço e alocação hoje em vigor e os desafios subjacentes a essa transformação, como ficou evidente no processo que se iniciou com a Consulta Pública 33/2017 (MME) e CP 02/2018 (ANEEL), respectivamente. O PLS 232, remetido em 10 de fevereiro de 2021 à Câmara dos Deputados (PL414/2021) aponta na direção de uma contratação separada de lastro e energia (adoção de um mecanismo de capacidade), mas não abordam questões estruturais que levam às falhas nos mercados de eletricidade de curto prazo em atrair uma quantidade eficiente de investimentos.
Mercados de eletricidade tem características únicas que o diferenciam de outros mercados: a energia injetada na rede flui de acordo com as leis da física (leis de Kirchhoff). A capacidade de carregamento suportada pela linha de transmissão impõe uma restrição à transferência de energia. Quando esse limite é atingido, a linha está congestionada. A demanda realizada e condições do sistema nunca são idênticas às antecipadas, nem mesmo à programada no dia anterior; e as restrições de armazenamento fazem deste um mercado muito segmentado e mais ilíquido: o mercado para a eletricidade num determinado dia numa determinada hora é separado de outro. Estes desafios impõe a necessidade de um desenho de mercado que contemple arranjos transacionais que levem em conta a realidade física do sistema. O mercado de curto prazo não é apenas um dos pilares, mas também a espinha dorsal do desenho de um mercado de energia elétrica. Este artigo discorre sobre a importância e limitações dos mercados de curto prazo, e da crescente importância em adereçar as causas de ineficiência em face a transição energética.
O setor de energia no Brasil e no mundo está passando por grandes mudanças. Impulsionados pela agenda climática e ambiental, e avanços tecnológicos, os países têm buscado o aumento a participação de fontes renováveis não convencionais, como eólica e solar, para atingir objetivos desta agenda. Restrições sociais e ambientais a construção de novas hidrelétricas com reservatórios, levam o Brasil a um sistema com maior participação de hidrelétricas sem reservatório e a redução da capacidade de regularização. Avanços na área de Tecnologia de Informação e Comunicação (TICs) viabilizam a comunicação bidirecional entre provedores e usuários e o desenvolvimento de controles inteligentes abrem caminho para disseminação dos recursos energéticos distribuídos (REDs) – Geração Distribuída (DEG), Armazenagem Distribuída – e sistemas de gerenciamento da demanda (demand system management – DSM), incluídos aí a Resposta da Demanda (demand response – DR) e a Eficiência Energética (EE).
O aumento da penetração de recursos intermitentes (solar e eólicas) aliada à redução de capacidade de armazenamento de energia em reservatórios hídricos, por sua vez, aumentam a volatilidade e imprevisibilidade dos custos de produção. Alteram também significativamente a distribuição espacial de custos de operação, e de congestão nas redes. Ao mesmo tempo, mudanças climáticas – ventos e temperatura – impactam o sistema de transmissão e evidenciam a necessidade de modernização para um sistema mais resiliente. Para gerenciar essas mudanças, é preciso sinalizar a contribuição dos recursos disponíveis para o sistema. Esta contribuição depende do momento e local onde é estimada e do estado do sistema, afinal o valor da eletricidade (e serviços ancilares) em cada lugar a cada momento é a forma mais confiável de determinar a necessidade e, consequentemente, o valor da flexibilidade para o sistema local e temporalmente.
Dois pontos são importantes ressaltar e serão abordados mais adiante: mecanismos de capacidade são complementares ao mercado de energia. Eles não são adequados para incentivar e remunerar a flexibilidade. Esta é contemplada no mercado de energia. Além disso, ainda que mecanismos de capacidade auxiliem para resolver a escassez de recursos, eles não contribuem para o preço de escassez. Uma sucessão de falta de preços de escassez se reflete em incentivos inadequados no curto e no longo prazo. É sobre essa relação que este artigo se aprofunda. Ao revelar o valor real da eletricidade em diferentes locais e momentos, preços locacionais marginais (PLM, os LMP – locational marginal prices) dão um sinal transparente para guiar decisões de operação e investimento.
Adequação do Suprimento e Insuficiência de Recursos
Para falar do problema da insuficiência de recursos – Missing Money -, precisamos definir bem o que é a adequação do suprimento (resource adequacy – RA). Grosso modo, isto significa como contar com recursos suficientes para garantir a demanda e requisitos de confiabilidade [3]. Recentemente o Brasil reviu o critério de suprimento [4] para incluir duas dimensões: energia e potência. Enquanto a adequação de suprimento se restringia à capacidade de suprimento adequado durante períodos de pico ou falhas na geração, cada vez mais este conceito engloba a capacidade de suprimento adequado durante condições de rampa, ou seja, capacidade de garantir a flexibilidade requerida para manter a confiabilidade almejada. O problema central do RA é a insuficiência de recursos [5]. Existem dois paradigmas para a adequação de recursos em mercados estruturados: baseado em preços (energy-only como o ERCOT no Texas e Austrália) e baseado em quantidade (com algum mecanismo de capacidade).
Na ausência de assimetria informacional e outras distorções (subsídios, medidas de comando-e-controle, imperfeição de medidas de mitigação de poder de mercado e precificação de externalidades), mercados de curto prazo seriam suficientes para garantir a eficiência, tanto no curto prazo – uso eficiente de rede e recursos ao menor custo possível, respeitando requisitos de confiabilidade –, quanto no longo prazo – investimento eficiente em recursos. Na teoria, mercados de curto prazo atrairiam o nível ótimo de investimentos por refletirem o verdadeiro custo marginal do Sistema. O custo marginal é o custo de atender a um incremento da demanda, seja com acréscimo de geração ou redução da carga. Esse custo deveria incorporar o sinal de escassez, e na ausência de imperfeições e distorções, proviria incentivos em períodos nos quais o sistema está operando próximo à sua capacidade operativa para sinalizar a necessidade de investimento e garantir a adequação de recursos. O despacho centralizado baseado em custos também poderia indicar o despacho socialmente ótimo [6].
A (bem) grosso modo [7], se o sistema está operando em sua capacidade máxima, e a demanda a este preço (o CVU da usina mais cara) é mais alta que esta capacidade máxima, o lado da demanda faria ofertas até que os preços se equilibrem. Os geradores seriam remunerados por estes preços, possibilitando que eles recuperassem custos fixos. Em equilíbrio, a quantidade instalada no sistema Qmáx seria tal que a renda de escassez total que o gerador ganhou recuperaria seus custos fixos [8].
Estes altos preços em momentos de escassez dão incentivos para que geradores mantenham suas plantas prontas para operar, pois perder receitas nestes momentos é muito custoso. Estes preços de escassez são também um incentivo para os agentes entrarem em contratos bilaterais para e se protegerem da volatilidade dos preços. Todos os operadores (Regional Transmission Operators – RTOs e Independent System Operators – ISOs) americanos, por exemplo, precisam satisfazer os critérios de preços de escassez do regulador americano (Federal Energy Regulatory Commission – FERC) [9], que determina que a formação de preços do mercado de energia deve contemplar regras que diminuam barreiras à participação da resposta da demanda em períodos de escassez e exige que propostas para que os preços de equilíbrio durante escassez de reservas operativas reflitam o real valor da energia.
Claro que a realidade é mais complicada. O termo missing money se refere à insuficiência de recursos que os geradores conseguem no Mercado Atacadista de curto prazo para recuperar seus custos fixos e variáveis. Medidas administrativas [10], exercício de poder de mercado, subsídios, externalidades impedem que o custo marginal da operação seja igual ao custo de atender a demanda incremental. A imposição de um teto de preços para mitigação de exercício de poder de mercado e por questões políticas também são um reconhecido fator que contribui para o problema do missing money. Adicionalmente, a baixa participação da demanda e a impossibilidade de encontrar uma política ótima de apagões [11] seletivos que impedem que os preços se equilibrem são talvez o problema central [12]. Mercados de eletricidade não conseguem otimizar os apagões. A duração ótima de apagões depende da capacidade existente, e os incentivos para investimento em capacidade para evitar apagões dependem do preço pago durante os próprios apagões. Entretanto, durante apagões, não existe um preço de equilíbrio do mercado. Por isso, mesmo em mercados energy-only (Texas, Austrália), durante apagões seletivos, os preços precisam ser definidos de forma administrativa.
As decisões de consumo de energia dos consumidores são influenciadas por temperatura, renda, custos de buscas e diversos fatores comportamentais, mas também por preços. Nos encontramos presos agora a um ciclo vicioso: a pouca elasticidade da demanda diminui a eficiência dos mercados de curto prazo de eletricidade, mas a falta de preços que revelem o real valor da energia no tempo e espaço restringem as possibilidades de programas de resposta da demanda.
Grande parte dos consumidores residenciais não tem acesso a tarifas que reflitam o custo de eletricidade. Limitações tecnológicas, limitações de sistemas de medição e cobrança, custos transacionais, além de barreiras políticas, regulatórias e comportamentais, limitam a resposta da demanda. Estas “falhas” do lado da demanda e impossibilidade de encontrar uma política ótima de apagões seletivos impedem que os preços se equilibrem e nos prende em um ciclo vicioso: a pouca elasticidade da demanda diminui a eficiência dos mercados de curto prazo de eletricidade, mas a falta de preços que revelem o real valor da energia no tempo e espaço restringem as possibilidades de programas de resposta da demanda.
Mecanismos de capacidade são construídos para garantir a quantidade adequada de recursos necessários (não para incentivar e remunerar flexibilidade), de forma complementar ao mercado de energia. A literatura econômica [13] é clara ao afirmar que mercados de capacidade não podem ser desenhados para resolver problemas no desenho do mercado atacadista. Primeiro vem o aperfeiçoamento do mercado de curto prazo com preços de escassez e depois o mercado de capacidade. Por isso, não podemos então falar de separação de lastro e energia sem falar de mecanismos de capacidade. Assim como não podemos falar de mecanismos de capacidade sem falar de mercados de energia e do problema da adequação de recursos e da insuficiência de recursos. O que nos leva de volta ao consumidor e a resposta da demanda. As decisões de consumo de energia dos consumidores dependem dos incentivos postos. Esta decisão é influenciada pela temperatura, renda, custos de buscas, diversos fatores comportamentais e, é claro, por preços.
Resposta de Demanda
O uso de sistemas de gerenciamento da demanda viabiliza maior flexibilidade operativa, contribuindo para reduzir o estresse do sistema, além de poder contribuir para redução da demanda na ponta e consequentemente o investimento em capacidade e manutenção da rede. Pode então aumentar a confiabilidade do suprimento. O Plano Decenal de Expansão de Energia de 2030 [14] representa, pela primeira vez, a Resposta da Demanda baseada em incentivos no cenário de referência. Mas o Brasil ainda tem um enorme potencial a ser explorado.
As “Bandeiras Tarifárias” (RN ANEEL 547/2013) consistem em três níveis de cobrança (quatro cores de bandeiras que podem variar mês a mês) adicionais que deveriam refletir os custos variáveis da geração. Elas possuem baixo custo transacional e deveriam, por isso, induzir bastante resposta. No entanto, de acordo com a metodologia para o acionamento das bandeiras tarifárias algumas das variáveis que definem o patamar (PLD e GHband) resultam da programação mensal de operação (PMO) [15], logo, dos modelos de despacho. Portanto, problemas na formação do preço e no despacho contaminam também a formação da bandeira e consequentemente o sinal para o consumidor. Consumidores de média e alta tensão podem optar pela adesão a uma tarifa TOU (RN 464/2011). Já a tarifa branca é uma tarifa TOU aplicável a consumidores residenciais. Dados da ANEEL de maio de 2020 mostram que há atualmente entre os brasileiros uma adesão média à Tarifa Branca de 0,04% para o setor residencial e de 0,12% para o setor comercial [16]. A Resolução Normativa 792/2018 estabeleceu os critérios para um projeto piloto para consumidores do Norte e Nordeste de alta e média tensão, com baixa adesão também. Avanços tecnológicos, além dos avanços na área de ciência comportamental e uso de experimentos controlados (que incluem uma dimensão não monetária) tem contribuído para abrir o caminho para um engajamento maior dos consumidores, o que levará a uma demanda mais responsiva ao preço [17].
A digitalização permite a adoção de tecnologias que auxiliam os consumidores a gerirem seu consumo em resposta a incentivos e sinais de preços mais granulares: interfaces digitais disponibilizam informações instantâneas, e tecnologias facilitadoras têm sido testadas com bons resultados. Bollinger e Hartmann (2015), por exemplo, por meio de um experimento controlado, mostram que a resposta aos preços é duas vezes maior para consumidores que receberam tecnologia de automação além da informação de preços. Apesar de uma tarifa do tipo horosazonal (Time-of-Use -TOU) já ser usada no Brasil (tarifa Branca) – com baixíssima adesão – Faruqui e Sergici (2017) demonstram que a partir de uma razão de 1 para 5, as reduções percebidas na ponta são mais significativas, atingindo até aproximadamente 30%.
Maior granularidade significa maiores oportunidades de aumentar a eficiência. Wolkak (2011) estima que a transição de um modelo com preços horários zonais para nodais na Califórnia em 2009 resultou numa redução dos custos variáveis e energia consumida pelas plantas de gás natural (aproximadamente 60% da geração instalada na Califórnia em 2009) [18]. Apesar da discretização horária dos preços ser apontada como incentivo para redução da demanda em momentos críticos, desde o início da divulgação dos preços sombra horários pela CCEE, eles apresentaram pouca variabilidade intradiária. Já os custos marginais de operação por barra, indicam alta heterogeneidade de custos intrarregional. O ONS divulga semanalmente a reunião semanal da programação da operação com algumas destas análises [19]. A título de ilustração, no dia 17 de julho de 2020, as barras nos subsistemas SE/CO e Norte apresentaram Custos Marginais de Operação (CMO) de R$ 0,00 /MWh em alguns horários, quando o PLD horário (sombra) mínimo foi de R$ 82,6 2/MWh em ambos. No dia 05 de fevereiro de 2021, com o PLD horário já em vigor, o subsistema SE/CO observou CMOs acima de R$ 2.000,00 /MWh nas primeiras horas do dia, e o PLD horário estava abaixo de R$ 150,00 /MWh. Na apresentação do dia 12 de fevereiro, o mesmo subsistema apresentou CMOs acima de R$ 800,00/MWh, tendo o PLD horário variado entre R$ 159,52 /MWh e R$185,15/MWh. Os ganhos de engajar a demanda e melhorar o sinal de preço interagem e são potencializados, como ilustra o modelo a seguir.
Preços Locacionais e Resposta da Demanda: Modelo Ilustrativo
A teoria microeconômica é taxativa quando determina que a maximização da eficiência requer que preço de um bem deve ser igual ao custo marginal de curto prazo (incluindo tanto o custo privado do/s produtor/es quanto externalidades) de produzir uma unidade adicional (ou a menos). O mesmo vale para eletricidade. Se o preço estiver abaixo do custo marginal, o consumo acima do socialmente ótimo é ineficiente tanto no curto quanto no longo prazo. No curto prazo, imagine a bateria de um veículo elétrico sendo carregado num momento de escassez de energia elétrica quando o consumidor poderia fazê-lo em outro momento sem absolutamente nenhum transtorno. No longo prazo, sem acesso ao real (alto) valor da eletricidade, poderia não ser economicamente atrativo para o consumidor investir em aparelhos mais energeticamente eficientes. Por outro lado, preços acima dos valores eficientes levam a um consumo menor no curto prazo e podem, por exemplo camuflar o incentivo de aposentar plantas/tecnologias que já não criam valor para sociedade. Para os economistas este é chamado o peso morto (deadweight loss), ou a perda em eficiência econômica.
Imagine um sistema com apenas duas barras, localizadas na área A e área B, como ilustrado pela Figura 1. Existe um gerador em A com capacidade instalada igual a QA e dois geradores em B com capacidade instalada igual a QB1 e QB2 e a demanda em A e B é igual a DA e DB (inelástica). Os custos de produção de cada gerador i é são Ci(q) = βiq, e K a capacidade de carregamento suportada pela linha de transmissão entre A e B.
Figura 1
Vamos assumir que:
Em um sistema de preços locacionais marginais, em equilíbrio teríamos p*A = βA e p*B = βB2. Já num modelo zonal, teríamos p*Z = βB1.
Agora, vamos supor um novo desenho de tarifa, associado a uma propaganda massiva que aumentou a responsividade da demanda, que agora tem uma elasticidade constante (mas ainda pequena, de forma que em equilíbrio as hipóteses acima não são violadas). Neste caso, em ambas as regiões, estaríamos observando perda de eficiência econômica com impactos no curto e longo prazo. A Figura 2 seguir ilustra o peso morto deste simples modelo.
Figura 2
Note que a demanda em A e B em equilíbrio no modelo zonal seria D’A,D’B e no modelo nodal seria D*A,D*B.
Price Caps
Outro problema constantemente levantado é o fato de mercados de eletricidade serem especialmente sujeitos a abuso de poder de mercado. Então, tetos de preço são relevantes para conter abuso de poder de mercado. Na ausência de um teto, os geradores teriam incentivos para aumentar os preços a níveis abusivos quando o sistema estivesse se aproximando do limite de sua capacidade. Quanto mais inelástica é a demanda, maior é esse efeito [20]. No entanto, os geradores recuperam os investimentos fixos justamente nestes momentos. Por isso, a definição de um teto de preços é de extrema importância no desenho de mercado, e apresento aqui uma breve reflexão sobre o tema.
Os limites máximos para o Preço de Liquidação de Diferenças (PLD) no Brasil, estabelecidos atualmente pela Resolução Normativa 858 de 2019 da ANEEL não são calculados a partir de um valor associado ao custo da falta de energia elétrica para o consumidor, ou ao Value of Loss Load (VOLL). A nota técnica da ANEEL Nota Técnica nº 70/2019–SRM-SRG/ANEEL cita que “o preço teto do PLD, PLDmax, no mercado de energia elétrico brasileiro tem a função de hedge (proteção) dos agentes de mercado em termos econômicos e financeiros quando há escassez de energia elétrica”, e que o “PLDmax_horário deve ser calculado com base na média ponderada, pela potência instalada, dos Custos Variáveis Unitários (CVUs) das usinas termelétricas a óleo”.
Ainda que, por exemplo, a agência reguladora federal americana Federal Energy Regulatory Commission (FERC) tenha estabelecido através da Ordem 831 de 2017 um teto para fins de formação de preço locacional marginal de até US$ 2.000,00/MWh para o lance de energia incremental [21] baseado em custo verificado [22] do agente para os RTO/ISOs sob sua jurisdição, dois pontos são importantes ressaltar. O primeiro é que ela se refere a tetos para a os lances no mercado de energia, não para o preço final. Outro ponto de atenção está nos detalhes no texto da Ordem 831. Ela ressalta a importância do teto aumentar de US$ 1.000,00/MWh para US$ 2.000,00/MWh para que preços locacionais não sejam suprimidos em momentos de escassez e que agentes devem sempre ser incentivados a ofertar lances que reflitam seus custos reais em momentos de altos custos marginais (escassez de combustível, por exemplo). Desta forma se evita ineficiências que podem ocorrer quando recursos com custos marginais acima de US$ 1.000,00/MWh não ofertarem mesmo quando o mercado estaria disposto a comprar o recurso, o que poderia levar ao uso ineficiente de reservas operativas, racionamento seletivo, ou algum outro recurso Out of Market (OOM). A Ordem 719 do FERC de 2008 estabelece as normas para orientar a precificação durante períodos de escassez. Quando o operador recorre a reservas operativas, redução de voltagem ou racionamentos seletivos, ainda existe o entendimento que o preço deve estar mais próximo ao VOLL.
A Ordem 825 do FERC de 2016 também avança na direção de melhorar o sinal de preço no mercado spot e demanda que se alinhe os intervalos de despacho e liquidação (de reservas operativas e energia) e que cada RTO/ISO ative um preço de escassez em todos os intervalos de despacho e preço em que o operador indique escassez de energia ou reserva operativa. No caso do Pennsylvania-New Jersey Interconnection (PJM), este intervalo é caracterizado por intervalos de 5 minutos. Quando este preço de escassez é ativado, um fator penalidade é incorporado ao LMP. Este preço de escassez também é ativado quando o operador recorre à redução de voltagem, por exemplo.
No sistema nodal (como é o caso do PJM), o preço em cada nó é o custo total de atender a demanda incremental naquele nó. Quando a restrição de transmissão está ativa, pode levar a um aumento na produção de um gerador e diminuição de outro. O custo deste re-despacho pode exceder o valor da oferta mais alta. No PJM, por exemplo, existem penalidades quando uma restrição destas está ativa, e não tem geração alternativa para solucionar. Neste caso, o preço sombra da restrição é determinado pelo fator penalidade de transmissão e afeta o LMP. Estas penalidades são administrativamente determinados e são também uma forma de preço de escassez.
O offer cap [23] no ISO do TEXAS, o Electricity Reliability Council of Texas (ERCOT), é o maior no Estados Unidos (um dos maiores no mundo), de US$9.000,00/MWh. No dia 15 de fevereiro de 2021, quando tempestades de neve e frio intenso (atípicos) atingiram a região, gasodutos congelaram, geradores a gás natural e a carvão foram desligadas e a demanda aumentou bruscamente, o operador precisou recorrer a racionamentos seletivos. Os preços no mercado atacadista spot em tempo real atingiram valores acima deste teto, um aumento de mais de 10.000% comparado com valores na semana anterior.
Galetovic et al (2015) fazem um exercício interessante baseado no mercado chileno, cuja operação assim como o Brasil é a partir do despacho econômico baseado em custo com preços de curto prazo determinados pela otimização de modelos estocásticos. No entanto, no caso chileno os geradores recebem ainda um pagamento por capacidade. O despacho baseado em custos permite que eles simulem o mercado sem o pagamento de capacidade alterando o valor do custo de escassez (o custo do déficit) até que o valor presente esperado das receitas provenientes do mercado de energia seja suficiente para que os geradores recuperem seus custos integralmente, sem a necessidade de um pagamento por capacidade. Eles mostram que em equilíbrio custos de escassez maiores resultarão em preços mais elevados quando em momentos de escassez de água, maior volatilidade de preços, o que incentivaria ainda mais contratações de longo prazo para que os agentes se protegessem destas flutuações. Além disso, os geradores teriam ainda mais incentivos para estarem sempre disponíveis nos momentos de maior escassez, quando os preços atingiriam valores mais altos.
Mecanismos de capacidade
A necessidade de um mecanismo de capacidade para garantir a adequação de recursos é tema de debate contínuo em todos os países. Apesar de não ser o foco deste artigo, faço aqui algumas considerações. Mercados de capacidade são construídos para garantir a quantidade adequada de recursos (de acordo com a meta de adequação de recursos definido para o sistema), e não servem para incentivar e remunerar flexibilidade cada vez mais requisitada nem para sinalizar a escassez de recursos. Por isso, reguladores exigem que estes mecanismos sejam justificados a partir de um esforço em aprimorar o mercado de energia e a participação de resposta da demanda [24].
O aprimoramento do mercado de energia e formação de preços são sempre colocados no centro da discussão destes mecanismos. Relatório do PJM de 2017 [25], por exemplo, aponta a ineficiência de não permitir geradores inflexíveis de participar da formação de preços, pois esta regra tem um impacto no preço final do mercado de energia, e consequentemente na remuneração e incentivos de todos os agentes no mercado de energia.
Se insistirmos em mecanismos de capacidade para cobrir as falhas do mercado de energia em que preços não refletem os custos de atendimento a carga, perderemos a referência para remunerar a flexibilidade e valorar os benefícios ambientais relacionados às fontes de energia com baixa emissão de gases causadores do efeito estufa – duas questões cada vez mais relevantes e presentes no PL 414.
Além disso, o desenho de mercado deve sempre levar em consideração o comportamento estratégico – sem conotação negativa – dos agentes.
Conclusão
Além da necessidade de aprimoramento dos mecanismos de competição do mercado de curto prazo, ainda temos que reconhecer que existem duas frentes a serem perseguidas: mecanismos de resposta da demanda (correção de uma falha) e mecanismos de capacidade. Mas como já mencionado acima, aprimoramento de mecanismos de resposta da demanda exigem aprimoramento dos preços do mercado atacadista, e mecanismos de capacidade devem ser complementares ao mercado de curto prazo. A importância da resposta da demanda e dos preços de escassez para o funcionamento dos mercados de curto prazo e da formação de preços para maximizar os ganhos da transição energética precisam acompanhar qualquer debate em torno da construção de um mecanismo de capacidade.
A formação de preços no atacadistaé crucial. Saber o valor da eletricidade (e serviços ancilares) em cada lugar a cada momento é a forma mais confiável de determinar a necessidade e, consequentemente, o valor da flexibilidade para o sistema local e temporalmente.
Na ausência de preços nodais, o preço de equilíbrio pode ser maior que o custo variável de um gerador localizado numa região e que não será acionado enquanto outros localizados em outra região (com o mesmo preço devido à ausência de preços nodais) precisarão operar. As implicações são ainda mais profundas num momento que precisamos do sinal do real valor da eletricidade em diferentes lugares/tempo para revelar o valor da flexibilidade que o sistema demanda. E remunerar esta flexibilidade é chave para maximizar os ganhos da transição energética. Este sinal é essencial para conseguirmos aumentar a elasticidade da demanda, uma das principais fontes de ineficiência de mercados de eletricidade.
Notas
[1] https://www.nytimes.com/2021/02/17/climate/texas-blackouts-disinformation.html?action=click&module=Spotlight&pgtype=Homepage.
[2] No Texas, os consumidores podem escolher seu provedor de eletricidade, existe competição no varejo. Além disso o ERCOT é o único mercado americano do tipo energy-only (sem um mecanismo de capacidade).
[3] Para mais sobre a importância do desenho de mercado no Brasil e no mundo ver as contribuições do CERI/FGV às CP 33 e 42.
[4] Resolução 29/2019 do Conselho Nacional de Política Energética.
[5] Bushnell et al, 2017.
[6] Schweppe et al, 1988.
[7] Claro que na prática o custo marginal de atender uma unidade incremental de demanda engloba não somente o custo marginal da operação, mas também o valor da energia armazenada, o valor marginal de um incremento de demanda, e o valor marginal das reservas operativas e outros serviços ancilares.
[8] Boiteux (1960).
[9] FERC ORDER 719.
[10] Estas intervenções por fora do mercado (OOM – Out Of Market) criam uma oferta adicional de geração, suprimindo o preço exatamente em momentos de escassez em que os preços subiriam mais.
[11] Joskow e Tirole (2007).
[12] Cramton et al (2013).
[13] Hogan (2018), Bublitz et al 2019, Cramton (2017).
[14] https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-490/topico-564/Minuta_do_Plano_Decenal_de_Expansao_de_Energia_2030__PDE_2030.pdf
[15] https://www.ccee.org.br/ccee/documentos/CCEE_642700. Ver Nota Técnica nº 040/2018-SRG-SRM-SGT/ANEEL.
[16] EPE (2020).
[17] As tarifas já não são reconhecidas como único determinante da demanda de energia. Os determinantes de consumo de energia elétrico são neoclássicos (preços, custo de busca) e comportamentais (normas sociais). É imprescindível a compreensão de ambos os fatores para os reguladores e para as distribuidoras e futuros comercializadores varejistas.
[18] Ver Tirolo e Wolkak (2021) para um estudo do aumento da eficiência com a mudança para o sistema nodal no caso de um mercado energy-only, o ERCOT.
[19] Disponíveis em http://www.ons.org.br/paginas/conhecimento/acervo-digital/documentos-e-publicacoes?categoria=Relat%C3%B3rio+PMO.
[20] Quanto mais elástica é a demanda residual para o ofertante menor o poder de Mercado que ele pode exercer.
[21] Que varia com o aumento (ou redução) da produção.
[22] Lances acima de US$ 1.000,00/MWh precisam passar por esta verificação.
[23] Ressalto aqui de novo que é um teto no lance de preços.
[24]A Comissão Europeia, por exemplo, exige que os Estados Membros demonstrem porque o mercado de energia não é suficiente além de especificar a necessidade de neutralidade tecnológica e provisões para participação de resposta da demanda.
[25] O PJM segue os princípios para o desenho de Mercado estabelecidos em FERC (2002) pelo regulador americano, o Federal Energy Regulatory Commission (FERC): no documento consta que preços marginais locacionais devem ser usados para gerenciamento de congestões, e o operador do sistema deveria operar um mercado centralizado para energia, serviços ancilares – especificamente regulação e reservas operativas – e serviços de transmissão. Estes mercados deveriam ser com oferta de preços pelos agentes em mercados de curto prazo, que consiste no mercado de dia anterior (day ahead markets – DAM – e de tempo real (real time markets – RTM).
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Sugestão de citação: Figer, V. (2021). Aprimoramentos no mercado de curto prazo de energia elétrica: o primeiro passo. Ensaio Energético, 17 de março, 2021.
Vivian Figer
PhD em Economia pela New York University e mestre em Economia pela PUC-Rio, graduou-se em Engenharia de Produção pela UFRJ em 2004. Trabalha como pesquisadora no Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getúlio Vargas. Suas principais áreas de pesquisa são Teoria Aplicada, Organização Industrial e Desenho de Mercados de Eletricidade.