A reforma da indústria do gás natural no Brasil está em pauta, há muitos anos. O projeto de nova lei em discussão tramita sobre lei vigente (Lei nº 11.909) relativamente recente, de 2009, que também percorreu longo caminho de elaboração. Nesse percurso, a pauta reformista e a regulação da ANP reforçaram um movimento de abertura do setor e o porvir de um mercado a se construir.
O Projeto de Lei (PL) aporta novos contornos à indústria, amplamente discutidos desde a articulação da iniciativa do Gás para Crescer de 2016. A tramitação do PL esbarra em estratégias diversionistas e pautas obtusas, endêmicas no Congresso. O texto do PL aprovado na Câmara em setembro de 2020 (PL 6.407/2013), em regime de urgência, sofreu emendas no Senado com o parecer do Senador Eduardo Braga, aprovado no dia 10 de dezembro (PL 4.476/2020). Em decorrência das emendas, o texto foi remetido novamente à apreciação da Câmara.
O texto aprovado na Câmara é compreendido como essencial para o Novo Mercado de Gás, reforçando a abertura de uma indústria que se constituiu e desenvolveu nas últimas décadas sob o manto da Petrobras – empresa de controle estatal, verticalizada e monopolista em todos os elos da cadeia. O reposicionamento estratégico da Petrobras na indústria – iniciado após a crise financeira de 2014 e cristalizado pelo Termo de Cessação de Conduta (TCC) assinado em julho de 2019 com o CADE – abre espaço para a entrada de novos agentes e a perspectiva de um mercado competitivo para a comercialização da molécula.
Artigos do Ensaio Energético (Santos & Almeida, Tavares, Prade & Almeida) abordam diferentes aspectos positivos da proposta da nova lei, com destaque para (i) separação mais clara da atividade de transporte; (ii) garantia de acesso negociado às infraestruturas essenciais; e (iii) reforço das competências da ANP para regular a atividade de comercialização. Os artigos também discutem aspectos críticos e desafios para traduzir o novo marco legal em efetivo ambiente competitivo.
As disputas em torno da reforma residem, essencialmente, na definição das fronteiras entre transporte, distribuição e comercialização de gás natural no Brasil. O PL busca assegurar a neutralidade da rede de transporte e separar a atividade de comercialização do energético (sujeita à competição) da atividade de movimentação da molécula (sujeita à regulação).
As reformas das indústrias de rede – como eletricidade e gás natural – tem por objetivo primordial justamente a separação de atividades competitivas e não competitivas, assegurando a neutralidade da rede para evitar discriminação de acesso a terceiros interessados. O ambiente competitivo levaria a sinalização mais adequada para alocação eficiente de recursos – o que não implica necessariamente em redução de preços, mas justifica os esforços reformistas por ganhos de bem-estar.
A reforma do gás no Brasil busca essa direção, mas esbarra em fronteiras conflagradas na arquitetura nacional da indústria que dificultam a efetiva separação entre a comercialização do energético e a prestação do serviço de movimentação por dutos. O presente artigo aponta conflitos existentes nessas fronteiras, cujos embates devem perdurar a despeito da aprovação do novo marco legal e cujos efeitos podem comprometer a construção de um mercado competitivo de gás natural no Brasil.
Ambiente de Reformas e o Projeto da Nova Lei do Gás da Câmara
Por força constitucional (artigo 25), os “serviços locais de gás canalizado” são prerrogativas exclusivas dos estados, com poderes concedente e regulatório.[1] Todas as demais atividades e segmentos estão sujeitos à esfera federal. A fronteira constitucional é frequentemente estendida – o que será discutido em mais detalhes adiante –, induzindo a assunção estadual sobre toda e qualquer matéria ou atividade relacionada à distribuição por dutos, configurando-a um monopólio legal estadual.
Adicionalmente, a presença monopolista e verticalizada da Petrobras encobriu, na prática, as fronteiras entre segmentos não competitivos – transporte e distribuição, sujeitos à regulação tarifária e de entrada – e segmentos competitivos, sujeitos à entrada e competição de outros agentes. A abertura da exploração e produção de óleo e gás no Brasil após a década de 1990 não reverberou para os demais segmentos da cadeia do gás, permanecendo a Petrobras monopolista de fato na comercialização do energético.
O movimento reformista, gestado a partir da articulação do Gás para Crescer e do reposicionamento da Petrobras, alcançou aprimoramentos infralegais e regulatórios, com destaque para as publicações do(a): (i) Decreto nº 9.616/2018, que alterou o Decreto nº 7.382/2010 que regulamenta a Lei do Gás vigente; (ii) Resolução do CNPE nº 16/2019, que estabeleceu diretrizes para promoção da competição no mercado de gás; (iii) Termo de Cessação de Conduta (TCC) firmado entre CADE e Petrobras em julho de 2019; e (iv) Decreto nº 9.934/2019, que instituiu o Comitê de Monitoramento da Abertura de Mercado do gás.
As alterações do Decreto nº 9.616/2018 visaram: (i) destravar os estudos para expansão da malha de gasodutos do país; (ii) indicar a migração para o modelo de entrada e saída na malha de transporte; (iii) determinar que a ANP estabeleça diretrizes para o acesso de terceiros às infraestruturas essenciais (escoamento, processamento e terminais de regaseificação) e autorize, regule e fiscalize a atividade de estocagem; e (iv) determinar a articulação federativa para a harmonização e o aperfeiçoamento das normas da indústria, mencionando explicitamente a regulação do consumidor livre. A Resolução do CNPE recomendou, dentre outras medidas, que o MME, a ANP e a EPE se articulem para promover o apoio de treinamento e capacitação das agências reguladoras estaduais.
Dentre as medidas previstas pelo TCC celebrado entre o CADE e a Petrobras, destacam-se: (i) a negociação do acesso de terceiros às rotas de escoamento e unidades de processamento de gás natural; (ii) a redução de volumes adquiridos pela Petrobras de terceiros; (iii) a definição de capacidade excedente nos gasodutos de transporte, indicando as suas demandas por entrada e saída de gás, por área de concessão das distribuidoras e consumo próprio, eliminando flexibilidades e congestionamento contratual; e (iv) a alienação total da participação da empresa nos ativos de rede (transporte e distribuição).
Neste contexto, o projeto de lei (PL) aprovado na Câmara define contornos mais nítidos entre os diversos segmentos da cadeia do gás natural, com separação clara entre a atividade de transporte de gás e as atividades concorrenciais (art. 5º) – exploração, desenvolvimento, produção, importação, estocagem, carregamento e comercialização.
O PL institui novamente o regime de autorização para construção de novos gasodutos ou ampliação de existentes, precedida de chamada pública, nos termos da ANP (art. 4º). O PL amplia as competências da ANP para determinar caraterísticas técnicas dos dutos de transporte (art. 7º) e certificar a independência dos transportadores (art. 5º)[2]. E institui o modelo de entrada e saída para contratação de capacidade nos sistemas de transporte (art. 13), com a constituição de gestores de área de mercado (art. 14).
O PL garante o acesso negociado às infraestruturas essenciais (art. 28) – gasodutos de escoamento, plantas de processamento e terminais de regaseificação de GNL – e preserva a livre inciativa, por conta e risco do interessado, das atividades de acondicionamento e comercialização ao consumidor final de gás natural por modais alternativos ao dutoviário (rodoviário, ferroviário e aquaviário), sob regulação da ANP (arts. 24 e 25).
O PL replica o dispositivo, existente na lei vigente, que permite a consumidores livres, autoprodutores e autoimportadores construir dutos de uso específico, desde que não possam ser atendidos pela distribuidora de gás canalizado estadual, ainda que com a celebração de contrato com a concessionária para operação e manutenção (art. 29).
O texto do PL é taxativo ao determinar que a comercialização é competência federal, sujeita à autorização e regulação da ANP (art. 31). O regulador federal deve “estabelecer o conteúdo mínimo dos contratos de comercialização, bem como a vedação a cláusulas que prejudiquem a concorrência”, vedando a regulação da “venda de gás natural, pelas distribuidoras de gás canalizado, aos respectivos consumidores cativos”. A atividade pode ser exercida, por sua conta e risco, pelas distribuidoras, consumidores livres, produtores, autoprodutores, importadores, autoimportadores e comercializadores.
O PL ainda revoga o artigo 16 da Lei 10.438/2002, que veda a participação na atividade de distribuição de gás canalizado de concessionárias ou permissionárias de serviço público de energia elétrica, bem como a sua controlada ou coligada.[3] Ao retirar barreiras indevidas entre a gestão de infraestrutura de redes distintas, o PL permite o aproveitamento de sinergias com a integração horizontal, a exemplo do que ocorre em outros países.
Emendas ao Projeto da Nova Lei do Gás no Senado
O parecer do Senador Eduardo Braga recém aprovado no Senado, incluiu emendas ao texto que podem reduzir o alcance da delimitação de fronteiras entre as atividades de transporte e distribuição e as de distribuição e comercialização.
O objetivo primordial das alterações é impedir mudanças que possam interferir no status quo, caracterizado por alcance estendido e ilimitado do monopólio estadual dos “serviços locais de gás canalizado”. A inclusão do artigo X nas disposições finais e transitórias é emblemática para ilustrar a motivação das emendas: “Ficam preservadas as competências estaduais previstas no §2º, do art. 25, da Constituição Federal, com relação aos serviços locais de gás canalizado”. O objetivo é impedir mudanças que tornem mais nítidos os contornos e limites do monopólio estadual, ainda que travestindo objetivos permanentes em disposições transitórias.
Neste mesmo sentido, as emendas procuram cercear competências da ANP para classificação de dutos de transporte, ao propor alteração da redação do inciso VI do artigo 7º do PL. A redação aprovada na câmara – “gasodutos destinados à movimentação de gás natural, cujas características técnicas de diâmetro, pressão e extensão superem limites estabelecidos em regulação da ANP” – passa a incluir a seguinte ressalva: “excetuados os gasodutos de distribuição localizados em um mesmo Estado”.
A supressão do parágrafo 2º do mesmo inciso VI – que faz referência ao inciso II, “gasoduto interestadual destinado à movimentação de gás natural” – denota o ímpeto de impedir qualquer interferência no vago monopólio dos estados, cuja redação estabelecia: “gasoduto e instalações enquadrados exclusivamente no inciso II do caput destinados à interconexão entre gasodutos de distribuição poderão ter regras e disciplina específicas, nos termos da regulação da ANP, ressalvadas as respectivas regulações estaduais”.
A supressão do artigo 25 é ainda mais acintosa, pois a redação proposta replica ipsis litteris a redação do artigo 42 da lei vigente, os quais garantem a regulação da ANP para a distribuição e comercialização de gás natural a granel – liquefeito (GNL) ou comprimido (GNC) – movimentada por outros modais (aquaviário, ferroviário ou rodoviário).[4] A supressão do artigo representaria um retrocesso no marco legal, pois permitiria a extensão inconstitucional do artigo 25 para além dos limites do gás canalizado – o que na prática já se verifica, como será apontado adiante.
O parecer do Senador Eduardo Braga ainda incluiu um capítulo específico para a integração do setor de gás com o setor elétrico, com dois artigos (41 e 42). O artigo 41 principal estabelecia a contratação de termelétricas inflexíveis locacionais a gás natural.[5] O artigo foi destacado na votação no Senado e acabou excluído do texto aprovado.
A insistência por térmicas inflexíveis a gás natural é recorrente no setor, apoiando-se sob a justificativa da necessidade de demanda firme para absorver o gás nacional inflexível, associado à produção de óleo; e para ancorar investimentos em nova infraestrutura de transporte.[6] A contratação de fonte específica e a operação indiferente à ordem de mérito econômico dos recursos representam transferência indevida de custos ao setor elétrico. A exclusão do artigo proposto no parecer, por votação específica, representou uma vitória no Congresso contra pautas voltadas à predeterminação de contratação de recursos independentemente de ordem de mérito econômico, com subsídios cruzados entre setores.
O artigo 42 desse capítulo determina planejamento anual da EPE para expansão da malha de gasodutos, “priorizando os dutos para atendimento das térmicas inflexíveis locacionais” – que deixam de encontrar respaldo no texto com a exclusão do artigo 41 – e “garantindo o pagamento da receita máxima” para gasodutos objetos de autorização, com custo rateado por encargos do sistema elétrico. A garantia de receitas é controversa e a atribuição desse custo a encargos apenas reforça a prática insustentável e ineficiente de subsídios cruzados no setor elétrico.
O parágrafo único do artigo ainda garante ao detentor de “projeto ou anteprojeto de gasoduto de transporte já autorizado ou em processo de licenciamento ambiental”, utilizado em processo licitatório, o pagamento de até 5% dos investimentos considerados no cálculo da receita máxima. O dispositivo pode presentear detentores de papel com rendas extraordinárias incompatíveis com o movimento de abertura e liberalização em curso, ainda que para isso proponha uma futura articulação entre ANP e ANEEL, cuja parceria poderia ser reorientada para objetivos mais nobres.[7]
Fronteiras Conflagradas: a extrapolação dos serviços locais de gás canalizado
Oportuno resgatar o texto original do parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição, antes da Emenda Constitucional nº 5 de 1995 extinguir o monopólio estadual estatal, cuja redação explicitava a essência da atividade de distribuição dos serviços locais de gás canalizado: “Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, a empresa estatal, com exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado”.
Por um lado, o Brasil não distingue a rede de transporte da rede distribuição por critérios técnicos, o que tem consequências na alocação de custos e riscos da infraestrutura de rede. A regulação estadual pode permitir que as distribuidoras integrem em suas bases de ativos infraestrutura que poderia, de outro modo, constituir uma rede mais ampla de transporte. Essa extensão interfere na remuneração de ativos, na alocação de custos e na própria expansão da rede.
A interferência alocativa é ainda mais deletéria face à realidade contratual peculiar da maior parte das concessões de distribuição no país, que estabelece remuneração real fixa de 20% sobre custos de capital e de operação, além de considerar apenas 80% do volume distribuído para determinação das tarifas. Mesmo concessões com remuneração a ser estabelecida por revisões tarifárias previstas em contrato – casos sobretudo de São Paulo e Rio de Janeiro – ainda verificam na prática taxas exclusivas de capital próprio (caso do Rio de Janeiro) ou ainda definição regulatória de custo médio ponderado de capital (WACC) que não considera o benefício da dívida (caso de São Paulo), onerando o custo de capital na indústria.
Por outro lado, a falta de clareza também permite a cobrança indistinta de margem de distribuição a toda movimentação por dutos dentro da área de concessão, revertendo os “serviços locais” em taxação local. A margem incide, por exemplo, em termelétricas abastecidas por dutos dedicados com características de transporte ou mesmo em térmicas instaladas em terminais de regaseificação de GNL – o que em geral é defendido como consequência do monopólio legal e justificado por princípio de solidariedade da rede.
A extensão dos “serviços locais” também adentra, em alguns casos, em atividades competitivas de distribuição e comercialização de gás natural a granel – liquefeito (GNL) ou comprimido (GNC) –, transportado por outros modais que não o canalizado. A extensão indevida do monopólio estadual a essas atividades não encontra respaldo legal. Entretanto, existem contratos de concessão que as contemplam como atividades exclusivas (caso do Amazonas); e aditivos contratuais que estabelecem pagamento de outorga da concessionária para exploração das atividades (caso do Rio de Janeiro).
No Amazonas, a Eneva terá que arcar com margem de distribuição sobre o gás extraído do campo de Azulão e não comercializado no estado, que será liquefeito e transportado para a termelétrica instalada no sistema isolado de Roraima, a mil quilômetros de distância. O consumidor de eletricidade de Roraima arcará implícita e indevidamente com a taxa de distribuição. A mesma empresa já arca com margem de distribuição no Maranhão no complexo termelétrico de Parnaíba, embora o estado não tenha rede alguma de distribuição de gás – caso emblemático para ilustrar o caráter taxativo do monopólio legal.
No Rio de Janeiro, a exclusividade do abastecimento de GNC na rede das concessionárias da Naturgy em cidades não conectadas a gasodutos impede a competição na prestação desse serviço, onerando as tarifas de todos os consumidores.
A GasLocal (Projeto Gemini), pareceria entre Petrobras e White Martins, é outro exemplo emblemático que ilustra conflitos entre as fronteiras de transporte, distribuição e comercialização. O projeto inaugurado em 2006 é a única planta de liquefação em operação para o fornecimento de gás natural sob a forma liquefeita (GNL), transportado por caminhões em raio de até mil quilômetros.
O fornecimento de gás para a planta por ramal direto da rede de transporte (GASBOL) suscitou contestação judicial que perdura até o presente com processo em tramitação no Supremo Tribunal Federal, reivindicando o monopólio da distribuição local por duto para fornecimento do gás à planta. A comercialização do GNL também suscitou longas discussões no âmbito da defesa da concorrência sob a alegação de captura de clientes âncoras, sem os quais a expansão da rede de gasodutos restaria prejudicada. As contendas regulatória, administrativa e jurídica do caso Gemini ilustram o grau de conflagração das fronteiras entre transporte, distribuição e comercialização e a dificuldade em se estabelecer limites que favoreçam a expansão da indústria no país.[8]
Esses exemplos alertam que a extrapolação das fronteiras dos serviços locais de gás canalizado para além da distribuição geram efeitos econômicos e concorrenciais perversos, prejudiciais à expansão do gás natural no país. O resultado é a onerosidade dos serviços prestados ao mercado existente de gás canalizado, penalizando a sua competitividade, e o comprometimento do acesso de potenciais consumidores em novos mercados do energético.
Fronteiras Conflagradas: o mercado livre de gás
O projeto da Nova Lei do Gás define limites mais claros entre as esferas de transporte, distribuição e comercialização, embora seja tímido em definir o escopo e o cronograma de liberalização do mercado de gás. A reforma reforça as competências da ANP para regular a comercialização dos mercados atacadista e varejista, ao passo que reconhece a autonomia dos estados para determinar limites mínimos para exigibilidade ao consumo livre.
Nessa direção, Armbrust (2020) enfatiza que o “o texto atual do projeto está longe de garantir a todos os consumidores, sem exceção, o direito de livre escolha de seu comercializador de gás”, propondo determinações mais enfáticas que limitem os graus de interferência estadual na comercialização.
A esfera da comercialização do gás natural não se confunde com os serviços locais de gás canalizado, pois referem-se a atividades essencialmente distintas. A distribuição por dutos é serviço regulado não competitivo, ao passo que a atividade de comercialização é passível de competição entre agentes existentes e potenciais.
A liberalização do mercado não interfere nas atividades intrínsecas de distribuição atribuídas aos concessionários da rede. A remuneração regulada da distribuição deve ser clara e suficiente para cobrir os custos de operação, manutenção e capital, permitindo adequada prestação e expansão do serviço. A abertura e a concorrência em elos da cadeia passíveis de competição têm por objetivo alcançar eficiência alocativa e produtiva de recursos e maior bem-estar, ao reduzir o poder de mercado e aprimorar a sinalização econômica para operação de curto prazo e a expansão de longo prazo (FGV CERI, 2020).
A fronteira constitucional difusa dos serviços locais de gás canalizado desafia propostas nessa direção – primeiro por receio dos próprios reformadores e reguladores (como ANP e CADE), depois pela resistência política efetiva dos entes federativos e das concessionárias atuais. Resta a via de harmonização das regulações estaduais para construção do mercado livre no âmbito varejista; e para regulação assentada em bases mínimas de boas práticas.
A Deliberação da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (ARSESP) nº 1.061/2020 é um claro indício dos desafios a serem enfrentados para a harmonização efetiva das regulações estaduais. A Deliberação recém aprovada condiciona a comercialização do mercado livre de são Paulo à autorização da Agência estadual, restringindo a atividade apenas a comercializadores registrados em São Paulo. Além de adentrar em esfera regulatória federal, a determinação acarreta dupla restrição: restringe a comercialização à figura dos comercializadores e obriga o registro em São Paulo.[9]
Embora as regulações estaduais possam diferir, o desenvolvimento do mercado de gás e o acesso à comercialização ocorrem em escala nacional. O futuro mercado de gás é, por definição e objetivo, supra estadual. A participação no mercado e a competição entre ofertantes ocorrerá em âmbito nacional, sob regulação federal – o mercado livre não deve ser de São Paulo ou de apenas outro estado.
A maior amplitude geográfica do mercado potencializa a abertura ao reduzir barreiras à entrada – inclusive as de cunho meramente burocrático –, favorecendo a competição entre agentes, existentes e potenciais. A maior competição produz ganhos para todos os agentes, ao reduzir poder de mercado e favorecer a maior competitividade do gás natural.
Para que a trajetória de harmonização das regulações estaduais percorra trajetória exitosa e promova abertura necessária à criação de um mercado livre de gás natural, é essencial que se estabeleçam diretrizes a serem transpostas efetivamente pelos estados.
A experiência da União Europeia é emblemática. Ao passo que os Estados-Membros preservam as suas prerrogativas e competências nacionais, a União Europeia tem poderes para determinar Diretivas a serem incorporadas nas regulações nacionais e atuar em casos de conflito, inconformidade ou não observância de suas diretrizes. A Diretiva voltada ao desenvolvimento do mercado comum de gás natural enfatiza que “a criação de um mercado interno do gás natural plenamente operacional, não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros e pode, pois, ser mais bem alcançado ao nível comunitário” (Diretiva 2009/73/EC, Considerando nº 60).
Comentários Finais: superando conflitos
O projeto da Nova Lei do Gás aprovado na Câmara é um passo importante e necessário para a reforma em curso na indústria do gás rumo à abertura e à livre comercialização, mas não suficiente. As emendas do Senado caminharam no sentido oposto de desvirtuar os propósitos do texto aprovado anteriormente na Câmara, reforçando o monopólio estadual indefinido; o que poderá ser revertido na nova apreciação da Câmara. O status quo colabora para extrapolação dos serviços locais de gás canalizado para além das atribuições constitucionais e conflita com a razão de ser das reestruturações das indústrias de rede em gestação.
O desfecho do novo marco legal no Congresso será importante para definir o grau da abertura a ser percorrida na próxima década pela indústria, sujeita a maior ou menor eficiência econômica na alocação de recursos e expansão da infraestrutura. O ritmo de abertura e a efetiva liberalização dependerão, no entanto, da capacidade de aplicar o arcabouço legal-regulatório, transpor efetivamente as diretrizes aos estados no processo de harmonização e resolver conflitos em âmbitos administrativos e judiciais, com especial destaque para o potencial vinculante do desfecho do Caso Gemini no STF.
O campo de batalha da reforma do gás no Brasil remete aos versos de Drummond em seu “Sentimento do Mundo”: “Os camaradas não disseram / que havia uma guerra / e era necessário / trazer fogo e alimento. / Sinto-me disperso, / anterior a fronteiras”. Os embates são inerentes aos processos de reforma; mas a permanência e pertinência das fronteiras existentes, não. O êxito da reforma dependerá da transposição das fronteiras preestabelecidas e da delimitação de novos limites que induzam ao desenvolvimento efetivo e eficiente da indústria do gás natural no Brasil.
Referências
ARMBRUST, B. (2020). Lei do Gás não garante o direito ao livre mercado para todos os consumidores. EPBR. (link)
FGV CERI (2020). Contribuição à Consulta Pública Arsesp Nº 10/2020.
Prade, Y. C. (2020). O GNL de pequena escala: a game changer no Brasil? Ensaio Energético, 28 de setembro, 2020.
Prade, Y. C.; Almeida, E. (2020). A falta de flexibilidade do mercado de gás no Brasil: um problema para o processo de liberalização. Ensaio Energético, 16 de novembro, 2020.
ROMEIRO, D. L. (2016). O imbróglio da GásLocal (GNL Gemini) no CADE: defendendo a concorrência ou garantindo o monopólio? Boletim Infopetro. (link)
Santos, D.; Almeida, E. (2020). Comercialização de Gás natural no PL 4.476/20: Oportunidade para Redução dos Conflitos Regulatórios. Ensaio Energético, 27 de outubro, 2020.
Tavares, F. B. (2020). Elementos para implantação de sistemas de Entrada e Saída: algumas lições dos mercados europeus. Ensaio Energético, 30 de novembro, 2020
Notas
[1] Artigo 25, § 2º da Constituição: “Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”.
[2] A Consulta Pública da ANP (nº 18/2020) propõe que a separação seja mais rigorosa do que o projeto de lei propõe, reconhecendo dois modelos de independência e autonomia dos transportadores: o OU (Ownership Unbundling), em que não há participação acionária na transportadora de grupos atuantes em elos competitivos; ou ISO (Independent System Operator), que estabelece a operação dos ativos por entidade distinta caso a transportadora tenha participação de empresas ou grupo atuantes em elos competitivos da cadeia. A proposta descarta o modelo ITO (Independent Transmission Operator), em que a operação permanece com a transportadora mesmo com participação acionário de empresas atuantes em outros elos, demandando medidas regulatórias e de governança para garantir independência na gestão dos ativos.
[3] Lei nº 10.438/2002, Art. 16: “É vedado à concessionária e à permissionária de serviço público federal de energia elétrica, bem como à sua controlada ou coligada, à sua controladora direta ou indireta e a outra sociedade igualmente controlada ou coligada da controladora comum, explorar serviço público estadual de gás canalizado, salvo quando o controlador for pessoa jurídica de direito público interno, vedação não extensiva aos agentes autorizados de geração de energia elétrica.”
[4] A justificativa do parecer reforça a orientação viesada das emendas: “Como a outorga dos serviços locais de gás canalizado é competência dos estados e o disposto no §1º do art. 25 é pouco preciso, consideramos recomendável suprimir o artigo para evitar que uma futura regulamentação venha a violar a competência constitucional dos Estados na distribuição de gás canalizado”.
[5] O artigo 41 determinava: “Art. 41. Os próximos leilões de compra de energia termelétrica a gás natural, promovidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, deverão, prioritariamente, substituir a geração termelétrica existente, utilizando diesel ou óleo combustível, garantindo sua reposição por energia elétrica proveniente de usinas termelétricas inflexíveis locacionais a gás natural, a serem despachadas na base do sistema elétrico, independentemente de ordem de mérito, visando, prioritariamente, o abastecimento dos estados da Região Amazônica, de modo a viabilizar o transporte de gás natural para capitais que ainda não dispõem de suprimento e a monetização integral de todas as reservas de gás natural em terra e no mar nessa Região.
Parágrafo único. O montante da energia contratada não ficará limitado ao previsto no caput deste artigo e toda energia produzida por usinas termelétricas inflexíveis locacionais a gás natural poderá ser rateada entre todos os usuários finais de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional – SIN, incluindo os consumidores referidos nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995, e no §5º do art. 26 da Lei no 9.427, de dezembro de 1996, e os autoprodutores apenas na parcela da energia gerada decorrente da interligação ao SIN, na proporção do consumo de cada agente do ano anterior, conforme regulamentação.”
[6] A pauta se relaciona à difusão da ideia enganosa, com consequências perversas, de universalização do acesso do gás natural canalizado como objetivo da reforma. Como pode ser substituído por outros energéticos em todas as suas utilizações e pode ser comercializado por outros modais de transporte, a universalização não deve constituir objetivo de política pública. Conferir, por exemplo, Prade (2020) para ilustrar o potencial de comercialização do GNL.
[7] O artigo 42 determina: “Art. 42. A Empresa de Pesquisa Energética – EPE elaborará anualmente o Planejamento da Expansão de Malha de Gasodutos de Transporte, incorporando as propostas da ANP e da ANEEL, priorizando os dutos para atendimento das térmicas inflexíveis locacionais, garantindo o pagamento da Receita Máxima Permitida de Transporte, pelo prazo da autorização do gasoduto, incluindo este custo anual nos Encargos do Sistema Elétrico, conforme regulamentação conjunta da ANP e ANEEL.
Parágrafo Único. A ANP e a ANEEL, no processo licitatório previsto neste artigo, poderão utilizar projeto ou anteprojeto de gasoduto de transporte já autorizado ou em processo de licenciamento ambiental, garantindo ao seu detentor o pagamento do percentual de até 5% (cinco por cento) dos investimentos considerados para o cálculo da receita máxima permitida.”
[8] Para discussão mais aprofundada do Caso Gemini, conferir Romeiro (2016).
[9] Para discussão mais detalhada da Deliberação da ARSESP nº 1.061/2020, conferir a contribuição do FGV CERI (2020) à Consulta Pública da ARSESP nº 10/2020.
Sugestão de citação: Romeiro, D. L. (2020). A Batalha da Nova Lei do Gás e as Fronteiras Conflagradas da Indústria. Ensaio Energético, 14 de dezembro, 2020.
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia pela PUC-Rio, mestre e doutor em Economia Industrial pela UFRJ. É pesquisador no Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI).