O mercado internacional de gás natural atravessa uma tempestade perfeita. A guerra na Ucrânia representa apenas mais uma dimensão desta grande crise que começou em 2021. A tempestade perfeita começou com o crescimento da demanda mundial de gás em função dos seguintes fatores: i) retomada da economia após o fim das restrições da pandemia; ii) grande seca no Brasil e outros países da América do Sul que acarretou o aumento demanda de GNL; iii) implementação de políticas de transição energética com o fechamento de plantas a carvão na Europa e na China, o que provocou um aumento da demanda pela geração termelétrica a gás.
O exemplo mais notável deste processo foi a China, país responsável por 20% da demanda mundial de GNL em 2020. O governo chinês aproveitou a forte queda da demanda de energia em 2020 para fechar minas de carvão e térmicas ineficientes. Entretanto, quando a economia se recuperou em 2021 o país enfrentou uma forte crise energética. A crise energética se instalou no país em função da disparada dos preços de GNL e carvão. A subida dos preços destes energéticos causou um forte desequilíbrio econômico no parque gerador termelétrico, já que o governo controlou os preços da eletricidade e deixou livre os preços do gás e do carvão. Este desequilíbrio econômico no setor de geração térmica levou à falta de energia elétrica e frequentes apagões. Para enfrentar a crise elétrica no país, a China aumentou sua demanda de GNL em 2021 em cerca de 25%.
A oferta mundial de GNL simplesmente não acompanhou o crescimento da demanda em 2021. A pandemia em 2020 afetou a disponibilidade de recursos para investimentos na manutenção e expansão da oferta de GNL. Ademais, a desorganização cadeias de fornecimento de insumos industriais, afetou a disponibilidade de equipamentos para manutenção e construção de plantas de GNL.
A oferta mundial de gás também foi afetada por questões de política energética para promoção da transição energética na Europa. A produção de gás na Europa caiu cerca de 20% em 2021 frente a 2019. Com a perspectiva de rápida transição energética promovida pela Comissão Europeia (European Green Deal), o aumento da produção doméstica de gás deixou de ser uma prioridade da política energética. Desta forma, em 2021 a dependência europeia do gás natural importado aumentou. Em um contexto de maior dependência gasífera, a crise política com a Rússia deu contornos dramáticos para o mercado de gás na região com impactos para o mercado mundial de GNL.
Gráfico 1 – Evolução da Produção e Importações de Gás Natural na Europa
Fonte: IEA, Gas Market and Russian Supply 2022.
A Rússia é responsável por cerca de 40% das importações da União Europeia, com a exportação de cerca de 160 bilhões de metros cúbicos (BCM) em 2021. A dependência da Rússia varia muito por país. Esta dependência é muito mais elevada nos países do Leste Europeu, na Alemanha (55%) e na Itália (50%). A crise de suprimento de gás Russo para a Europa começou em 2021, quando ficou pronto do gasoduto Nordstream II que conecta diretamente a Rússia e a Alemanha. Com o acirramento das tensões entre Ucrânia e a Rússia, aumentou a oposição dos Estados Unidos e países Europeus ao comissionamento deste gasoduto. Estes países temem que mais uma rota direta de exportação de gás para a Alemanha dará a Rússia a capacidade deixar de utilizar os gasodutos que cortam a Ucrânia, o que aumentaria a pressão econômica da Rússia sobre a Ucrânia. Por esta razão, o governo da Alemanha decidiu não dar o aval ao comissionamento do gasoduto, o que levou a Rússia a reagir reduzindo a oferta de gás via contratos de curto prazo e spot. Apesar de ter cumprido seus contratos de longo prazo, esta decisão da Rússia impactou fortemente os mercados de gás europeus com forte elevação de preços nos mercados spot da Europa (TTF e NBP) e do GNL (JKM).
A Guerra entre Rússia e Ucrânia foi apenas mais um capítulo da tempestade perfeita, em que o gás natural passou a ser um elemento central da disputa geopolítica entre Rússia e Europa Ocidental (Fullwood et al. 2022). Apesar da guerra não ter provocado uma redução dos volumes de exportação de gás Russos para Europa em 2022 (Rússia continua a honrar contratos assinados), agravou-se a ansiedade dos mercados diante da possibilidade de uma interrupção das exportações Russas para Europa.
A situação apertada do mercado não permitiu uma estocagem adequada na Europa para o inverno 2021-22. Vale ressaltar que a estocagem de gás na Europa é uma atividade orientada principalmente pelo mercado. Diante dos preços elevados do gás no verão de 2021, e as curvas de preços futuros apontando para queda dos preços, as principais comercializadoras de gás optaram por reduzir sua demanda por estocagem (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Evolução dos Volumes de Gás Estocados na Europa
Fonte: IEA, 2022.
O gráfico 3 deixa claro que a crise do mercado internacional de gás é anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia. Em janeiro de 2021 os preços do GNL no mercado internacional já haviam atingido patamares muito elevados. A partir de maio de 2021 os preços iniciaram uma trajetória explosiva e atingiram recordes históricos.
Gráfico 3 – Evolução dos Preços Internacionais do Gás natural
Fonte: Platts
O nível atual de preços de gás na Europa e no Mercado de GNL é insustentável. Isto porque este patamar de preços inviabiliza economicamente vários segmentos industriais intensivos em energia. Por sua vez, os preços elevados do gás contaminam os preços da energia elétrica, já que em mercados liberalizados é o custo da geração térmica a gás que determina o preço do mercado spot e de curto prazo de eletricidade. Ou seja, a crise do gás se transformou numa crise energética. Esta crise tem repercussões não apenas no Europa, mas também em outros mercados mundiais, com consequências econômicas ainda não totalmente compreendidas.
A resposta da União Europeia (EC, 2022) para a crise energética até agora teve como objetivo principal dar uma resposta política à Guerra na Ucrânia. Ou seja, o objetivo principal é reduzir a dependência das importações de GN da Rússia, como forma de reduzir o financiamento ao esforço de guerra Russo. A União Europeia lançou um plano para reduzir a demanda de gás russo em 2/3 até o final do ano, tendo como principais medidas:
- a diversificação do suprimento de gás natural através de GNL e importações de outros países
- a aceleração do desenvolvimento de biogás e hidrogênio
- a substituição do gás natural na geração de eletricidade e no aquecimento
- introdução de metas obrigatórias de estocagem de gás natural (meta de alcançar 90% da capacidade em 1º outubro).
- Criação de impostos sobre as empresas de energia (windfall profit taxes)
- Criação de auxílios para população vulnerável aos preços elevados
- Substituição integral o gás russo até 2030.
- Intensificação da transição energética
Estas medidas não dão respostas claras ao problema da crise energética atual, uma vez que foca em medidas cujo efeito não será imediato. Não é possível substituição do gás Russo por GNL importado no curto-prazo. Este movimento já foi feito em 2021 e foi por esta razão que o preço do GNL spot (JKM) acompanhou os preços de gás na Europa (TTF e NBP). A maioria dos terminais de GNL já operam em capacidade máxima. Os terminais que ainda têm capacidade para importar GNL estão localizados na Península Ibérica, região que praticamente não consome gás Russo e que não possui conexão significativa com o resto da Europa. Ademais, não existe atualmente capacidade ociosa de liquefação disponível a curto prazo.
A única medida de efeito imediato é a decisão de aumentar a demanda de gás para estocagem, o que certamente poderá piorar o desequilíbrio do mercado. Assim, a crise do gás na Europa tende a se agravar em um cenário de prolongamento do conflito e redução das compras de gás Russo.
Assim, a crise do mercado de gás na Europa e do mercado de GNL spot pode durar por um tempo suficiente para ter consequências econômicas importantes. O nível de preços atual pode desorganizar o mercado livre de gás na Europa com a quebra de comercializadoras e consumidores intensivos de energia. Certamente, este tipo de consequência levará a novas intervenções no mercado com controle de preços e um retrocesso ao processo de abertura do mercado de gás. Finalmente, um racionamento de gás será inevitável no próximo inverno caso o mercado não se normalize. Alguns países já iniciaram estudos para medidas neste sentido.
O mercado internacional de GNL continuará apertado em qualquer cenário da Guerra. A demanda Europeia de GNL para substituição de Gás Russo deverá pressionar demanda mundial e os preços de gás no mercado spot de GNL. Esta escalada dos preços tem consequência para todos os mercados mundiais de gás, inclusive no Brasil, que é importador de GNL. Em particular, várias termelétricas têm contratos de gás indexados aos preços de gás europeus ou JKM. Ou seja, a explosão destes preços se transmite automaticamente para o Custo Variável Unitário – CVU das térmicas. Caso seja necessário despachar estas térmicas, o custo da energia termelétrica também será explosivo para o consumidor brasileiro.
As fortes chuvas deste verão permitiram recompor o nível dos reservatórios das hidrelétricas nacionais. Entretanto, o governo brasileiro terá que tomar uma decisão difícil com o fim do verão, que é despachar ou não as térmicas para preservar água dos reservatórios. Se optar pela preservação da água, o país será impactado pela crise do mercado mundial do gás. Se optar por não despachar, assumirá um risco hidrológico com impactos econômicos potenciais também elevados caso ocorra uma nova seca.
A oferta de gás para o mercado não-termelétrico é menos dependente do mercado mundial de GNL. Esta oferta vem principalmente da produção doméstica e das importações da Bolívia. Os contratos das distribuidoras são indexados principalmente ao preço do petróleo. Por enquanto, os efeitos da Guerra na Ucrânia nos preços do petróleo foram menores que o que aconteceu no mercado de GNL. Mesmo assim, a elevação recente dos preços do petróleo terá impactos importantes no mercado de gás nacional, e existe o risco de aumentos ainda mais fortes no preço do óleo em um cenário de agravamento do conflito.
A conjuntura atual de insegurança energética e forte volatilidade dos mercados terão impactos imediatos na política energética. O combate da pobreza energética e a garantia do suprimento passam a ser objetivos importantes neste contexto. Muitos países discutem formas de intervenção em mercados energéticos liberalizados como forma de proteger os consumidores dos preços elevados.
A tempestade perfeita que vive o mercado mundial de gás trará consequências de longo prazo para a política energética. A crise atual deixa claro que a promoção da transição energética não pode menosprezar a garantia de fornecimento dos combustíveis fósseis. É importante promover a segurança de abastecimento dos combustíveis fósseis para viabilizar uma transição organizada e justa. A explosão dos preços e desorganização dos mercados de energia tende a criar incertezas regulatórias que afetam não apenas o mercado de energias fósseis, mas também das fontes renováveis.
Referências
European Comission (2022). REPowerEU: Joint European action for more affordable, secure and sustainable energy. https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_22_1511
Fulwood, M; Sharples, J and Henderson, J. (2022) Ukraine Invasion: What This Means for the European Gas Market. Oxford Institute for Energy Studies. https://www.oxfordenergy.org/publications/ukraine-invasion-what-this-means-for-the-european-gas-markets/
IEA (2022), Russian supplies to global energy markets, IEA, Paris https://www.iea.org/reports/russian-supplies-to-global-energy-markets
Sugestão de citação: Almeida, E.; Losekann, L. (2022). A Tempestade Perfeita no Mercado Internacional de Gás Natural: Causas e Consequências. Ensaio Energético, 29 de março, 2022.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).
Parabéns, excelente e concisa exposição e clareza na transição necessária, mas justa e equilibrada ! Obrigado
Rapazes excelente artigo. Devido minha concentração maior por demanda de mercado / clientes em Avaliação de ativos desinvestidos pela Petrobras e Descomissionamento, fiquei a margem, sem me aprofundar no tema: Novo mercado de gás no Brasil, vocês tem algo atualíssimo sobre o tema? se sim, podem me enviar?
[…] Rússia-Ucrânia aumentou a pressão sobre uma oferta já restrita. Uma ‘tempestade perfeita’ (Almeida & Losekann, 2022), um ‘choque de gás’ (Almeida, 2022) ou qualquer outra expressão que defina o momento buscam […]