20 anos após o episódio do racionamento de 2001/02 o sistema elétrico volta a discutir a necessidade de contingenciar o consumo de eletricidade para preservar os reservatórios hidrelétricos. Assim como ocorreu em 2001, os reservatórios do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, a “caixa d’água” do Sistema Interconectado Nacional, iniciaram o período seco de 2021 com níveis médios de um terço da capacidade de armazenamento.
Nesses 20 anos, o sistema elétrico brasileiro mudou bastante com a diversificação das fontes de oferta. Podemos destacar a fonte eólica, inexplorada em 2001 e que representa 12% da geração do SIN nesse mês de junho. Mesmo que o sistema seja hoje bem menos vulnerável em relação à produção hidrelétrica, os reservatórios experimentarão níveis muito críticos até o início do próximo período úmido no final do ano.
Em 18/06, o nível de acumulação nos reservatórios no Sudeste foi de 30,2%. Em um cálculo bem simplificado, se os reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste mantiverem o ritmo de esvaziamento dos últimos cinco dias, 0,14 pontos percentuais ao dia, os reservatórios chegarão ao final de novembro com nível de acumulação de 7%, o que acarretaria colapso do sistema (Figura 1).
Medidas pelo lado da oferta podem ser suficientes para reverter essa trajetória de colapso. Se essas medidas acarretarem redução do ritmo de esvaziamento para 0,12 pontos percentuais ao dia, os reservatórios alcançariam o final de novembro com 10% de armazenamento, o nível mínimo para sua operação.
As autoridades do setor, como o Diretor Geral do ONS Luiz Carlos Ciocchi em audiência pública na Câmara dos Deputados, têm defendido esse cenário de alívio com a adoção de medidas de oferta, como a intensificação do despacho termelétrico (inclusive de usinas sem contrato); a realização de leilões para contratar usinas “reservas” de geração de energia; e a flexibilização das restrições à operação reservatórios.
A diferença entre os dois cenários, 0,02% da capacidade de armazenamento no SE/CO, equivale a 29,7 GWh ou 1.239 MW médios. Ou seja, é bastante factível que as medidas anunciadas sejam suficientes para implicar na trajetória de alívio e que não seja necessário contingenciar. Por exemplo, as termelétricas GNA I e Porto de Sergipe I têm capacidade de 1.338 MW e 1.551 MW respectivamente e devem entrar em operação brevemente. Por outro lado, recente estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) aponta índices elevados de indisponibilidade do parque termelétrico, sobretudo das usinas com elevados custos variáveis de operação, o que pode representar complicador adicional para os próximos meses de geração termelétrica elevada e constante.[1]
O ONS recentemente apontou que são necessárias medidas complementares ao modelo de operação para garantir a segurança do abastecimento, com cenário operativo mais adverso do que o projetado pelas curvas de referência para guiar o acionamento de termelétricas pelo CMSE[2]. O ONS solicitou flexibilizações adicionais para redução da defluência mínima no Baixo Paraná (Usinas Jupiá e Porto Primavera) e da cota mínima da Hidrovia Tietê-Paraná para acumular mais água à montante nos reservatórios da cascata e alcançar nível de reserva projetado de 10% ao fim do período seco no SE/CO. O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) corroborou as medidas propostas e solicitou que a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) reconheça a situação de escassez hídrica na Bacia do Paraná para implementar as flexibilizações.[3]
Em meio à crise, ainda circula a possibilidade de uma Medida Provisória para instituir uma câmara de gestão inspirada na experiência do racionamento de 2001, tornando impositivas medidas emergenciais para a geração de eletricidade. As disputas crescentes pelos múltiplos usos dos recursos hídricos (consumo humano, irrigação, navegação, turismo) indicam a necessidade de revisitar a sua governança e a valoração da água entre múltiplos agentes e atividades.
Figura 1 – Projeção do Nível de Armazenamento dos Reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste (% da Capacidade de Armazenamento)
Fonte: Elaboração dos autores. Dados observados ONS.
Mesmo que o racionamento não seja iminente, o setor certamente passará por dificuldades. Em primeiro lugar, a operação do sistema com pequenas margens de segurança implica em riscos de falhas de abastecimento. Os reservatórios atingirão níveis em que nunca foram operados e pode faltar energia nos períodos de pico de demanda. O Ministério de Minas e Energia já sinalizou a provável necessidade de deslocar o consumo de grandes consumidores no horário de ponta em programa voluntário de adesão. O programa piloto de resposta da demanda implementado pelo ONS recentemente só alcançou a participação de uma empresa, o que indica a urgência de incorporar efetivamente a resposta da demanda na equação de suprimento.
Além disso, o preço da eletricidade, que já estava pressionado por encargos e pelo ajuste da pandemia, será pressionado pela operação de térmicas de elevado custo, em parte financiada pela bandeira tarifária. Por fim, as geradoras hidrelétricas deverão passar por dificuldades financeiras, já que o GSF é previsto em 0,8, forçando a aquisição de energia no curto prazo com PLD elevado.
A situação crítica do setor coloca em xeque a sistemática e os modelos de operação do sistema elétrico. Mesmo com a perspectiva de os reservatórios chegarem ao final do período seco em níveis que não foram experimentados anteriormente, os preços determinados pelos modelos têm sido baixos, R$ 277/MWh na média do mês de junho. Assim, há uma completa desconexão entre o despacho efetivo determinado pelo CMSE – contraditoriamente denominado de “fora da ordem de mérito”, que implica em custo marginal superior a R$ 1.000/MWh – e a programação do modelo.
No momento, há evidências que o padrão hidrológico e os usos da água se alteraram no Brasil e a hipótese de convergência da hidrologia para a média de longo prazo já não é mais válida. O aprimoramento do modelo de operação do sistema elétrico é um dos temas da iniciativa de modernização do setor elétrico. Atualmente, há uma consulta pública aberta no Ministério de Minas e Energia sobre os estudos da Comissão Permanente para Análise de Metodologias e programas Computacionais do Setor Elétrico[4]. Estudos de revisão dos parâmetros da curva de aversão ao risco, utilizada para ponderar com maior peso cenários hidrológicos críticos, indicam elevação dos custos marginais de operação do sistema para evitar riscos severos de suprimento e minimizar o grau de discricionariedade e eventual interferência política nas decisões operativas.
No entanto, desde o racionamento de 2001, o tema de aprimoramento dos modelos setoriais é recorrente. O diagnóstico da crise, documentado no relatório usualmente denominado de “Relatório Kelman”, já apontava inadequações e os modelos passaram por frequentes aperfeiçoamentos desde então. Entretanto, todos os ajustes realizados no modelo do setor elétrico não passaram de tentativas de consertos numa máquina extremamente complexa e que está funcionando muito mal. A crise de suprimento atual é um alerta de que o caminho para o setor não pode ser acrescentar novas engrenagens em uma máquina que está totalmente desatualizada em relação ao contexto do setor elétrico.
O problema não está na sofisticação computacional, mas sim na ideia de que a operação do sistema deve ser baseada em modelos centralizados baseados em expectativas de custos. É preciso explorar novas formas de organização do mercado elétrico, abrindo espaço para formação do preço e o equilíbrio do sistema baseado na interação da oferta e demanda no mercado. Igualmente importante é repensar o papel dos reservatórios hidrelétricos para garantir a segurança de abastecimento em um contexto de forte difusão das fontes renováveis variáveis como a solar e eólica.
O modelo atual, caracterizado pela operação centralizada através de modelos matemáticos e leilões de compra de energia para reduzir o risco do investimento, cumpriu um papel importante que foi o de garantir a atração de investimentos para grandes projetos hidrelétricos e termelétricos, em um contexto de custos marginais elevados e escassez de capital no Brasil. Entretanto, o contexto do setor elétrico mudou radicalmente. As novas tendências do setor apontam para a redução dos custos de geração com as novas fontes renováveis (custos marginais de longo prazo decrescente), a crescente descentralização com a digitalização e redes inteligentes e o aumento da concorrência no varejo. Assim, é fundamental se repensar o modelo setorial em busca de um novo alinhamento do setor em relação às tendências de longo prazo.
Notas
[1] EPE (2021). Estudos de Pós Planejamento – Indisponibilidade Termelétrica. Superintendência de Geração de Energia Elétrica.
[2] ONS (2021) NT-ONS DPL 0021/2021 – CONSTRUÇÃO DA CURVA REFERENCIAL DE ARMAZENAMENTO – CREF – PARA O ANO DE 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/conselhos-e-comites/cmse/atas/2021/anexo-4_nt-ons-dpl-0021-2021-metodologia-curva-referencial-2021.pdf.
[3] ONS (2021). Avaliação das Condições de Atendimento Eletroenergético do Sistema Interligado Nacional – Estudo Prospectivo Junho A Novembro de 2021. Maio de 2021.
[4] MME (2021), CONSULTA PÚBLICA Nº 109 DE 02/06/2021. Disponível em: http://antigo.mme.gov.br/web/guest/servicos/consultas-publicas?p_p_id=consultapublicammeportlet_WAR_consultapublicammeportlet&p_ p_lifecycle=0&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_consultapublicammeportlet_WAR_ consultapublicammeportlet_view=detalharConsulta&resourcePrimKey= 1620800&detalharConsulta=true&entryId=1620802
Sugestão de citação: Losekann, L.; Romeiro, D. L.; Almeida, E. (2021). Racionamento em 2021? Ensaio Energético, 21 de junho, 2021.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia pela PUC-Rio, mestre e doutor em Economia Industrial pela UFRJ. É pesquisador no Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI).
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.
Permitam-me discordar. O modelo computacional do ONS só poderia ter despachado mais térmicas anteriormente se parâmetros que não dependem do operador fossem alterados. Cito dois: O custo do déficit e a taxa de desconto do futuro. Temas polêmicos que foram alvo de muito debate no passado com inevitável grau de subjetividade! Apesar disso, teria que ser definido, no mínimo, no âmbito do CSME.
A atual crise sequer é inédita no histórico de afluências. O período 1948 – 1956 tem % de MLT piores. Além disso, o modelo matemático que gera 2.000 anos, produz “crises” mais sérias do que o período crítico.
Na minha opinião, o que falta é investimento, principalmente privado. Quase 17.000 MW de hidrelétricas só saiu com parceria. Isso fora as Eólicas e linhas. O leilão de 2008 (o do ICB) foi mais um “jeitinho” para compensar os 10 anos de “bolsa MW” no mercado livre, que se viciou em PLDs baixos e não contratou expansão da oferta nem para eles próprios. Muitas térmicas caras privadas. Essas é que esvaziam reservatórios.
Precisamos é de mais debates.
Roberto, obrigado pelo comentário atento e pelas informações.
Acredito que, mesmo com a atualização de parâmetros, modelos centralizados não serão mais adequadas para dar conta da diversidade de fontes e agentes no setor elétrico brasileiro. A incorporação das expectativas de oferta e demanda dos agentes na operação do sistema é a forma mais adequada de lidar com essa complexidade.
Com a queda dos custos da energia solar, principalmente, o investimento privado não deve ser o problema futuro (tampouco considero que a capacidade de geração é o problema atual, pois hoje alcança 170 GW para uma demanda de pico de 90 GW). A problema crucial será a adequação do suprimento. Como você aponta, contamos com um parque termelétrico caro que não serve para preencher os reservatórios.
Luciano,
170 GW, mas quantos GW a custos exorbitantes? Com a entrada das solares e eólicas para valer, apesar dos problemas elétricos que vamos ter, a reserva de 290 GWmês vai oscilar em níveis mais altos. Tentaram fazer isso com as térmicas, mas o custo é muito alto e os parâmetros que citei não justificam. Ainda acho que a nossa reserva hidráulica de mais de 4 meses de consumo é um diferencial no planeta. Repito: Falta debate.
[…] Como apontado em junho no Ensaio Energético, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) projetou níveis inéditos e alarmantes dos reservatórios do SE/CO – responsáveis por 70% da reserva do sistema – para o fim do período seco (abaixo de 10%) caso não fossem flexibilizadas restrições de defluências mínimas de hidrelétricas em diversas cascatas, impactando múltiplos usos da água. O objetivo é armazenar água nos reservatórios de cabeceira dos rios, aproveitando a geração em cascata das usinas a jusante. […]