O Senado brasileiro está discutindo a aprovação de uma emenda na medida provisória (MP) da Privatização da Eletrobras que obriga o setor elétrico a contratar 6 GW de térmicas inflexíveis nas regiões Norte, Centro-Oeste e no estado do Piauí. Apesar de não ter nenhuma relação com a privatização da Eletrobras, a contratação obrigatória de termelétricas foi colocada como contrapartida à aprovação da privatização da Eletrobras. Esta emenda prevê que o governo deve realizar leilões de reserva exclusivos para termelétricas a gás natural, criando uma reserva de mercado para as térmicas a gás em regiões específicas do país.
Apesar de entendermos que é legítimo os deputados e senadores pleitearem políticas para aumentar a oferta de gás nos seus estados, a forma que isto está sendo feito representa um grande retrocesso para o país, para o setor elétrico e para a própria indústria de gás natural.
Caso a MP seja aprovada pelo Senado sem alterações, esta emenda representa um grande retrocesso para a governança do setor energético nacional. Estaríamos decidindo uma questão super relevante para o futuro do setor energético nacional através de emenda parlamentar, sem respeitar os processos e os ritos do planejamento energético nacional. Portanto, sem o amparo de estudos setoriais sobre os impactos econômicos, ambientais e tributários e as alternativas existentes. Ademais, sem a realização de análise de impacto regulatório, sem consultas e audiências públicas.
É inegável que Parlamento tem legitimidade para propor emendas. Mas aproveitar o forte interesse do governo para a MP da Privatização da Eletrobras para incluir emenda com temas sem relação com a MP não é politicamente correto. Trata-se de um comportamento politicamente oportunista, que dá um péssimo sinal a outros grupos de interesse do setor de energia. O parlamento passa a mensagem para os grupos de interesse que o melhor caminho para aprovar uma política pública não é o processo de planejamento energético liderado pelo governo federal. Mas é a exploração das oportunidades políticas através de emendas como moeda de trocas em outros assuntos de interesse do governo. Um péssimo exemplo, que se seguido por outros grupos de interesse, tem potencial para simplesmente desmontar o planejamento energético nacional.
Seria um grande retrocesso para o setor elétrico porque estamos criando uma reserva de mercado para uma tecnologia na geração sem ao menos saber se existem opções mais baratas para o consumidor. Não há dúvidas que existem custos importantes que não foram devidamente avaliados. As térmicas estariam longe dos grandes centros de consumo , o que vai implicar na necessidade investimentos em infraestrutura de transmissão. Ademais, é importante avaliar o impacto econômico no setor da inflexibilidade operativa destas térmicas, principalmente se não tiver o benefício de viabilizar o escoamento de gás associado doméstico. Na região Nordeste e Norte , a flexibilidade do despacho é muito importante para acomodar a sazonalidade e variabilidade de eólica e fio d’água.
O Ministério de Minas e Energia (MME) publicou uma nota técnica no seu site afirmando que estas térmicas seriam opção mais barata para o setor elétrico. Se este é o caso, então por que não as deixar competir com as outras fontes? Só tem uma maneira irrefutável de saber se existem opções mais baratas, que é a realização de leilões competitivos onde todas as fontes disputam a demanda futura de energia sem restrições de localização.
Seria um retrocesso também para o setor de gás natural. Primeiramente, é importante ressaltar que reservas de gás descobertas que precisam ser monetizadas estão localizadas na região Sudeste. Portanto, o gás doméstico para suprimento de tais térmicas teria que vir de regiões distantes, através da construção de novos e custosos gasodutos. Portanto, existem basicamente duas soluções para o suprimento de gás para estas térmicas propostas na MP: i) a primeira seria o suprimento com Gás Natural Liquefeito (GNL) importado; ii) a segunda seria subsidiar a construção dos gasodutos necessários para levar o gás doméstico até as térmicas. A proposta do subsídio já foi até apresentada ao parlamento como emenda (outro jabuti) que propôs usar dinheiro do Fundo Social dos contratos de Partilha para subsidiar gasodutos (Emenda do Brasduto).
Ambas as soluções não são boas para nossa indústria de gás nacional. No caso do suprimento das térmicas com GNL, estaríamos retirando mercado de projetos de térmicas supridas com gás doméstico localizadas perto das áreas de produção de gás. No segundo caso, estaríamos numa situação em que a indústria de gás além de ter de uma reserva de mercado no setor elétrico, ainda usufruiria de um subsídio para sua infraestrutura. Ou seja, uma situação completamente contrária as diretrizes do Novo Mercado de Gás. Ou seja, após aprovar uma lei do gás que aponta para a liberalização e a concorrência, meses depois aprovaríamos outra que aponta para reserva de mercado e subsídios no setor.
O gás natural ainda tem muito espaço para se desenvolver no Brasil e é legítimo se buscar políticas para disponibilização do combustível nas diferentes regiões do país. Mas estas políticas devem estar alinhadas com a diretrizes econômicas e ambientais colocadas para o setor de energia nacional. Ademais, no momento em que o mundo se lança na transição energética, o Brasil deveria refletir muito antes de decidir caminhar no sentido oposto.
Ao criar subsídios e reserva de mercado para uma fonte fóssil, certamente o país estaria não apenas se distanciando da transição energética, mas também afastando de princípios supostamente caros para o atual governo como o da liberdade econômica e da competição.
Sugestão de citação: ALMEIDA, E. (2021). O Jabuti do Gás na MP da Eletrobras. Ensaio Energético, 11 de junho, 2021.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.
[…] a capitalização da Eletrobras podem transparecer como inevitável a contratação das custosas termelétricas-jabutis na matriz renovável brasileira. A contratação determinativa de 8 GW de termelétricas a gás, […]