As preocupações com as consequências ambientais provocadas pelas emissões de gases de efeito estufa (GGE) têm levado diversos países a redefinirem suas economias de forma a atingir metas mais sustentáveis. Para atender as demandas energéticas no setor de transporte, os biocombustíveis aparecem como uma das principais soluções. O etanol tem sido o biocombustível mais utilizado no mundo (BP, 2018), mas sua expansão sustentável nos cenários de descarbonização (IEA, 2017) passa pela produção dos biocombustíveis avançados como o etanol de segunda geração (E2G), uma solução que utiliza resíduos como o bagaço e a palha da cana-de-açúcar e apresenta um significativo potencial de redução de emissões (Maga et al., 2019).
O aproveitamento dessas novas matérias-primas exige etapas adicionais ao processo tradicional de produção de etanol, conforme é apresentado na Figura 1. Os principais desafios tecnológicos do etanol 2G residem nessas novas etapas que visam a liberação dos açúcares da estrutura lignocelulósica. Mas os desafios do etanol 2G não se limitam às questões tecnológicas. Questões como coleta, logística e formas de precificação da biomassa são exemplos de desafios para estruturação desse novo biocombustível. Soma-se ainda questões estratégicas em relação ao uso e comercialização do etanol que hoje pode ser vendido para mercados tradicionais – mais facilmente acessado e distribuído – ou para mercados específicos que pagam um valor prêmio por biocombustíveis avançados.
Figura 1 – Diferenças entre os processos de primeira e segunda geração
Fonte: Elaboração Própria.
Apesar dos desafios, empresas de diferentes setores vem buscando aproveitar a oportunidade de converter matéria-prima celulósica em etanol. Empresas dos segmentos de óleo e gás, químicos, start-ups e empresas do próprio setor de etanol de primeira geração entraram na corrida do etanol 2G. Essa diversidade de atores não é só um reflexo do potencial da inovação, mas também das oportunidades que dela surgem através, por exemplo, da possibilidade de produção de químicos. Existem inúmeras oportunidades associadas ao uso do açúcar proveniente de biomassa não alimentícia na produção de químicos biobased e outros produtos de maior valor agregado (Comissão Europeia, 2015; OCDE 2018; Santos e Silva et al. 2019).
O segmento de etanol 2G é novo, intersetorial e com a presença de desafios tanto tecnológicos quanto não tecnológicos. Para lidar com esse tipo de complexidade, alguns autores têm recorrido a abordagem de ecossistemas de inovação (EI) para estudar esses processos de estruturação. A abordagem de EI é um caminho para a compreensão desse processo, pois foca na interdependência das organizações e suas atividades (Adner, 2016) ao invés da visão por setor ou indústria. Um EI pode ser definido como um conjunto de arranjos colaborativos e competitivos através do qual instituições de diferentes domínios de conhecimento combinam as suas ofertas individuais para criar e capturar valor (Moore, 2006; Adner & Kapoor, 2010). Uma das principais contribuições desse conceito é a ideia de que uma empresa não faz parte apenas de uma indústria, mas sim de um ecossistema que cruza diversas indústrias.
Moore (1993) mostrou que um ecossistema passa por quatro estágios: nascimento, expansão, liderança e renovação/morte. Cada um com desafios competitivos e cooperativos específicos. No entanto, a experiência dos projetos de etanol 2G tem mostrado uma complexidade na fase de nascimento que merece ser melhor endereçada. Assim, considerando as metas de sustentabilidade cada vez mais urgentes e o papel dos biocombustíveis avançados no atendimento dessas metas, é importante questionar sobre o processo inicial de estruturação dos ecossistemas de etanol de segunda geração.
Uma pesquisa do Grupo de Estudos em Bioeconomia (GEBio) da UFRJ acompanhou seis projetos de plantas comerciais de etanol 2G (Tabela 1). Foram realizados estudos de caso de empresas que tiveram plantas comerciais construídas até o ano de 2019 e que eram baseadas em processos fermentativos – atualmente a tecnologia mais utilizada para a produção do biocombustível.
Dentre as informações levantadas no estudo de caso, foram analisados 573 artigos publicados em 56 sites especializados em biocombustíveis entre o período de janeiro de 2012 até agosto de 2018. Esse conjunto foi utilizado para determinar a dinâmica de estruturação dos ecossistemas do etanol 2G, isto é, o registro temporal dos principais acontecimentos. Esse material foi analisado e classificado em cinco categorias: (i) oportunidade do negócio, (ii) estruturação do ecossistema, (iii) desafios, (vi) evolução e co-evolução, e (v) encerramento das atividades. Considerou-se que inicialmente as empresas buscam aproveitar uma oportunidade de inovação, estruturam seu ecossistema, possivelmente se deparam com desafios, enfrentam esses desafios de maneira isolada (evolução) ou com outros parceiros (co-evolução) e, caso não consigam avançar com o ecossistema, encerram suas atividades. A Tabela 2 apresenta a categorização dos artigos.
Tabela 1 – Características dos projetos comerciais de E2G
Fonte: Adaptado de Lux Research (2016) e IEA (2020).
Tabela 2: Categorização dos artigos.
A Figura 2 mostra o resultado do levantamento, que é um retrato do estágio de nascimento do ecossistema do etanol 2G. Observa-se que inicialmente a maioria do material divulgado tratava de assuntos relacionados com a oportunidade do negócio e os movimentos iniciais de estruturação, como a busca de parceiros para co-inovar. A partir de 2014 até meados de 2015 a curva de desafios começa a subir, refletindo as primeiras dificuldades das plantas recém-inauguradas. Entre 2015 e 2017 aparece a curva de projetos encerrados[1] representando a saída de 3 dos 6 principais players. Em 2016 há um pico na curva de “evolução e co-evolução” transladada da curva de desafios. Esse perfil reflete as ações das empresas em buscar enfrentar seus desafios através de processos de reestruturação dos seus ecossistemas, principalmente através de substituição e adição de novos atores e conhecimentos.
Figura 2 – Categorização das notícias levantadas
Fonte: Elaboração Própria.
O resultado da Figura 2 pode ser dividido em 3 fases: (i) estruturação e definição de estratégias; (ii) – desafios; e (iii) – reestrututuração e co-evolução. A fase 1 deixou 2 pontos bastante claros sobre os projetos de etanol 2G. O primeiro é a diversidade de players interessados no desenvolvimento do biocombustível – empresas de diferentes países, diferentes setores, start-ups e maduras. O segundo ponto é a busca por parcerias para acessar matéria-prima e insumos estratégicos do processo, como enzimas e leveduras. Esses dois pontos destacam a complexidade – talvez não tão óbvia – do etanol 2G. Apesar de ser um biocombustível conhecido, a exigência tecnológica para alcançá-lo a partir de matéria-prima não alimentícia é significativa. Soma-se ainda o potencial intrínseco do processo em questão de gerar outros produtos de maior valor agregado a partir dos açúcares de segunda geração – o que explica o interesse por parte de empresas do setor químico.
Apesar da euforia pelo etanol 2G identificado na fase 1, a fase 2 deixou evidente o grande desafio de rodar um processo com biomassa lignocelulósica. A fase 2 é uma sequência de anúncios de plantas paradas e parceiros sendo processados por promessas não cumpridas. Já a fase 3 é marcada por anúncios de novas parcerias, adaptações nos processos e mudanças significativas nas estratégias como forma de adaptação diante de desafios não previstos.
Como comentado anteriormente, este estudo acompanhou seis projetos de etanol 2G, três que foram encerrados e três que avançam lentamente suas produções sem, no entanto, anunciar segundas fábricas. Apesar disso, o etanol 2G ainda continua a ser ambicionado por muitas empresas. Um exemplo é o anúncio feito em fevereiro deste ano da Clariant de licença tecnológica com Harbin Hulan Sino-Dan Jianye Bio-Energy – empresa chinesa de energia verde – para a tecnologia sunliquid® de etanol celulósico. Resta-nos aguardar e esperar que os novos projetos usufruam das lições vividas pelos pioneiros e que esses ecossistemas cresçam e madureçam.
Notas
[1] Vale ressaltar que nos 3 projetos encerrados houve fatores não relacionados com o E2G que influenciaram no fechamento dos projetos, como as crises internas da Abengoa e do Grupo Mossi Ghisolfi e o processo de fusão da Dow-Dupont.
Referências
ADNER R.; KAPOOR, R. Value Creation in innovative ecosystems: how the structure of technological interdependence affects firm performance in new technology generations. Strategic Management Journal. v. 31,p. 306–333. 2010.
ADNER, R. Ecosystem as Structure: An Actionable Construct for Strategy. Journal of Management, v. 43, n. 1, p. 39–58, 2016.
BP. 2018. BP Statistical Review of World Energy. Junho de 2018.
COMISSÃO EUROPEIA, 2012. Innovating for Sustainable Growth: A Bioeconomy for Europe.
IEA, 2017. International Energy Agency. Delivering Sustainable Bioenergy. 2017.
IEA, 2020. International Energy Agency. Advanced Biofuels – Potential for Cost Reduction. 2020.
LUX RESEARCH. Custo de produção estimado do etanol celulósico nas 6 maiores usinas do mundo (2016). Disponível em: <https://www.novacana.com/n/etanol/2-geracao-celulose/custo-producao-etanol-celulosico-usinas-mundo-150316> Acessado em agosto de 2018.
MAGA, D. et al. Comparative life cycle assessment of first- and second-generation ethanol from sugarcane in Brazil. International Journal of Life Cycle Assessment, v. 24, n. 2, p. 266–280, 2019
MOORE, J. F. Predators and Prey: a new ecology of competition. Harvard Business Review. v. 71, n.3, p.75-86. 1993.
MOORE, J. F., 2006. Business Ecosystems and the view from the firm. The antitrust Bulletin. v. 51, n. 1, p. 31-74.
OECD (2018), Meeting Policy Challenges for a Sustainable Bioeconomy, OECD Publishing, Paris. http://dx.doi.org/10.1787/9789264292345-en
SANTOS E SILVA, Daniella Fartes dos; BOMTEMPO, José Vitor; ALVES, Flávia Chaves. Innovation opportunities in the brazilian sugar-energy sector. Journal of Cleaner Production, vol. 218, 2019.
Sugestão de citação: Silva, D. F. S. (2021). Baby Steps: Nascimento dos Ecossistemas de Etanol 2G. Ensaio Energético, 04 de março, 2021.
Daniella Fartes dos Santos e Silva
Engenheira Química pela UFPE, mestre e doutora em Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos pela UFRJ. É consultora no Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE e pesquisadora no Grupo de Estudos em Bioeconomia GEBio/UFRJ.