Ensaio Energético

Perspectivas de gênero na pobreza energética: implicações para mulheres e meninas

  1. Introdução

A pobreza energética e a falta de acesso a fontes limpas de energia continuam sendo desafios urgentes em nível global. De acordo com Bouzarovski e Petrova (2015), a pobreza energética é definida como a incapacidade de acessar níveis adequados de serviços energéticos essenciais no lar. Essa situação pode decorrer da ausência de eletricidade, da impossibilidade de arcar com os custos dos serviços energéticos ou da dependência de fontes tradicionais como lenha ou carvão.

Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE, 2023a), em 2023, mais de 750 milhões de pessoas ainda não tinham acesso à eletricidade, enquanto quase 2 bilhões dependiam de biomassa tradicional — como madeira, carvão e esterco — para cozinhar e se aquecer (AIE, 2023b). Essa carência limita a capacidade das famílias de acessar serviços básicos e afeta negativamente diversos aspectos da vida, incluindo a equidade educacional, a mortalidade infantil (UNIDO e ONU Mulheres, 2013), a saúde mental (Clancy e Feenstra, 2019; Clancy et al., 2017) e a qualidade de vida em geral. Além disso, o uso de combustíveis tradicionais aumenta a poluição do ar e gera problemas de saúde, perpetuando o ciclo da pobreza (Organização Mundial da Saúde -OMS-, 2016).

No entanto, a pobreza energética afeta homens e mulheres de forma desigual em todo o mundo devido às desigualdades estruturais na posição social e aos papéis de gênero tradicionalmente atribuídos (BID, 2019; Robinson, 2019). Em muitas sociedades, as mulheres assumem a maior parte das responsabilidades relacionadas ao trabalho doméstico, ao cuidado e educação dos filhos e filhas, à manutenção do lar e à gestão das relações familiares (BID, 2018). Nesse contexto, este ensaio expõe como a pobreza energética impacta de forma específica a vida das mulheres.

 

  1. Como a pobreza energética afeta as condições de vida das mulheres?

 Em muitos países em desenvolvimento, onde os lares não têm acesso à energia moderna, é comum o uso de biomassa tradicional, lenha ou carvão para cozinhar e atender outras demandas energéticas do domicílio (UNIDO e ONU Mulheres, 2013). Frequentemente, são mulheres e meninas as responsáveis por buscar e coletar a biomassa, uma tarefa que consome muito tempo, que poderia ser destinado a outras atividades. A Agência Internacional de Energia (2018) estimou que as mulheres de países em desenvolvimento dedicam, em média, 1,4 horas por dia para recolher lenha para cozinhar e 4 horas cozinhando com esse tipo de material (cozinhar com lenha leva mais tempo do que com fontes modernas de energia). Além disso, a atividade de coleta expõe mulheres e meninas ao risco de lesões devido às cargas pesadas, ao esforço físico e, em alguns casos, à violência sexual (Parikh, 2011).

O uso de biomassa tradicional para cozinhar afeta a saúde das mulheres, meninas e meninos, pois a inalação da fumaça aumenta o risco de doenças respiratórias, cardíacas e câncer (OMS, 2016). Dos 2 milhões de pessoas que morrem anualmente por causa da poluição do ar interior, estima-se que 85% sejam mulheres e crianças (UNIDO e ONU Mulheres, 2013).

Além disso, a falta de eletricidade impede o acesso a serviços energéticos como iluminação, refrigeração de alimentos e lavagem de roupas. Essa ausência de energia prolonga as jornadas domésticas e reduz o tempo que as mulheres poderiam dedicar a atividades educativas, recreativas ou produtivas, seja um empreendimento ou a participação no mercado de trabalho. Os gastos também são mais elevados. Em países como El Salvador e Peru, os lares sem acesso à eletricidade destinam uma proporção maior de sua renda à compra de velas, querosene ou à recarga de baterias, em comparação com aqueles que têm energia elétrica (BID, 2018).

A pobreza energética também se manifesta nos países desenvolvidos, embora, nesses contextos, esteja relacionada principalmente à dificuldade de arcar com os custos de serviços energéticos adequados, mais do que à falta de acesso físico à energia moderna. Na Europa, as mulheres são particularmente vulneráveis a esse problema devido a múltiplos fatores estruturais, como as disparidades salariais de gênero e a alta proporção de lares chefiados por mulheres e monoparentais (Petrova e Simcock, 2021; Clancy e Feenstra, 2019; Clancy et al., 2017). As mulheres idosas, especialmente as aposentadas, enfrentam um risco ainda maior, pois seus rendimentos tendem a ser inferiores aos dos homens, o que limita sua capacidade de arcar com os gastos energéticos e investir em moradias energeticamente eficientes (Clancy et al., 2017).

Um estudo realizado em Madrid, na Espanha, revelou que 32% dos lares chefiados por mulheres sofriam de pobreza energética, e essa cifra chegava a 51% no caso de mulheres sozinhas ou com mais de 65 anos (Sanz et al., 2017). O estudo concluiu que os lares chefiados por mulheres foram desproporcionalmente afetados pelos altos preços da energia.

Em resumo, a pobreza energética impacta negativamente a saúde física e mental das mulheres, acarreta perda de tempo, exige maior esforço físico e compromete, de forma geral, a qualidade de vida.

 

  1. Transformações possíveis: benefícios do acesso à energia moderna

Entre os benefícios que o acesso à energia moderna proporciona às mulheres estão a redução dos gastos com energia doméstica, melhor iluminação, maior conforto térmico no lar, menor poluição intradomiciliar, redução do tempo gasto na coleta de combustíveis tradicionais e aumento da renda.

No Peru, o acesso à eletricidade aumentou em 50% o tempo de leitura das crianças. Na Guatemala, as mulheres com acesso à energia duplicaram o tempo dedicado ao trabalho remunerado (BID, 2018). Na Nicarágua, observou-se um aumento de 23% na participação laboral de mulheres rurais, sem mudanças equivalentes nos homens (UNIDO e ONU Mulheres, 2013).

Na Indonésia, a transição para o uso de gás liquefeito de petróleo reduziu a exposição das mulheres a poluentes e melhorou sua saúde. Na Índia, o acesso à eletricidade aumentou a participação feminina no mercado de trabalho e melhorou o bem-estar familiar (Balgansuren e Arunotai, 2025).

Estudos tem demonstrado que o acesso à energia limpa e a preços acessíveis constitui um fator determinante para melhorar os meios de subsistência, mitigar a desigualdade de gênero e acelerar o desenvolvimento socioeconômico (UNIDO e ONU Mulheres, 2013; BID, 2018).

  1. Conclusões e reflexões

Como foi exposto, às mulheres é atribuído o papel do trabalho doméstico, no qual a energia é um fator chave para sua realização. Nesse contexto, nos países em desenvolvimento, a falta de acesso a fontes de energia limpa e moderna afeta mais severamente as mulheres do que os homens, aprofundando as desigualdades de gênero existentes. No caso da Europa, as disparidades salariais entre homens e mulheres são um dos principais fatores que explicam a feminização da pobreza energética.

É fundamental que as políticas voltadas para o combate à pobreza energética reconheçam e atendam às vulnerabilidades resultantes da interseção entre gênero, acesso à energia doméstica e nível de renda. Promover o acesso universal à energia limpa, confiável e acessível com perspectiva de gênero ajudaria a reduzir o tempo e o esforço que as mulheres dedicam às tarefas domésticas e lhes permitiria participar de outras atividades educativas e produtivas que gerem renda.

Bigliografia

AIE – Agência Internacional de Energia. (2023a). Access to electricity. https://www.iea.org/reports/sdg7-data-and-projections/access-to-electricity

AIE – Agência Internacional de Energia. (2023b). Access to clean cooking. https://www.iea.org/reports/sdg7-data-and-projections/access-to-clean-cooking#abstract.

AIE   – Agência Internacional de Energia. (2018). Tracking gender and the clean energy transition. https://www.iea.org/articles/tracking-gender-and-the-clean-energy-transition

Balgansuren, O., Arunotai, N. (2025). Insights on energy, poverty, and gender nexus in urban ger district households: A case study from Ulaanbaatar, Mongolia. Global transitions, vol. 7, 2025, Pages 189-198.

Bouzarovski, S., & Petrova, S. (2015a). A global perspective on domestic energy deprivation: Overcoming the energy poverty–fuel poverty binary. Energy Research & Social Science, 10, 31-40.

Clancy, J; Daskalova, V.; Feenstra, M.; Franceschelli, N.; Sanz, M. (2017). Gender perspective on access to energy in the EU. https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2017/596816/IPOL_STU(2017)596816_EN.pdf

Clancy, J.; Feenstra, M. (2019). Women, Gender Equality and the Energy Transition in the EU.

Moniruzzaman,  M., & Day, R. (2020). Gendered energy poverty and energy justice in rural Bangladesh. Energy Policy, 144, 111554.

Organização Mundial da Saúde -OMS). (2016). Burning opportunity: clean household energy for health, sustainable development, and wellbeing of women and children. World Health Organization. https://www.who.int/publications/i/item/9789241565233

Parikh, J. (2011). Hardships and health impacts on women due to traditional cooking fuels: A case study of Himachal Pradesh, India. Energy Policy, 39(12), 7587-7594.

Petrova, S., Simcock, N. (2021). Gender and energy: domestic inequities reconsidered. Social & Cultural Geography 2021, Vol. 22, No. 6, 849–867.

Robinson, C. (2019). Energy poverty and gender in England: A spatial perspective. Geoforum 104 (2019) 222–23.

Sanz, A., Gómez, G., Sánchez, C., Nuñez, M. (2016). Estudio técnico sobre pobreza energética en la ciudad de Madrid, ciudad de Madrid, España.

UNIDO, & UN Women. (2013). Sustainable energy for all: The gender dimensions. Vienna and New York: UNIDO and UN Women.

Sugestão de citaçãoPoveda, Y. E. M. (2025). Perspectivas de gênero na pobreza energética: implicações para mulheres e meninas. Ensaio Energético, 27 de maio, 2025.

Autora do Ensaio Energético. Economista e mestre em Economia pela Universidade Nacional de Colômbia, sede Medellin, doutora em Economia pela Universidade Federal Fluminense e membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

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