No último dia 20 de Maio lançamos o livro “Flexibilidade na Indústria de Gás Natural: Mecanismos e estratégias para apoiar a concorrência no mercado brasileiro”. Este livro, coordenado por mim, pela Yanna Prade[1] e pelo Prof. José Ricardo Uchoa[2], avaliou de forma detalhada o papel dos diferentes instrumentos de flexibilidade para o funcionamento do mercado atual e futuro de gás natural no Brasil. Este livro deixa claro que a introdução da competição no mercado brasileiro de gás está associada ao desenvolvimento de mecanismos de flexibilidade pelo lado da oferta e pelo lado da demanda no Brasil.
A verticalização e o monopólio da Petrobras na oferta de gás às distribuidoras permitiram desenvolver vários instrumentos de flexibilidade a um custo relativamente baixo. A Petrobras conseguiu desenvolver um portfólio de oferta de gás bastante flexível, composto pela: i) flexibilidade entre o take-or-pay e o máximo contratado da Bolívia; ii) importação de GNL no mercado spot; iii) produção de gás não associado; iv) linepack dos seus contratos de transporte para corrigir pequenos desbalanceamentos da rede. Pelo lado da demanda, a demanda de gás das térmicas e refinarias da própria empresa, constituem um recurso de flexibilidade em situações de desbalanceamento do mercado.
Entretanto, a gestão da flexibilidade da oferta e demanda em um contexto de mercado concorrencial é radicalmente diferente do contexto verticalizado e monopolizado. A coordenação do balanceamento e do equilíbrio do mercado deixará de ser feita de forma centralizada pela Petrobras e passará a depender das estratégias dos diversos participantes no mercado. Neste novo contexto, a garantia do suprimento e o balanceamento do sistema dependem da existência de um desenho de mercado que facilite o desenvolvimento e a comercialização de produtos de flexibilidade ao mercado.
É exatamente neste ponto que se encontra o mercado brasileiro. Os potenciais novos fornecedores de gás no mercado nacional têm um enorme desafio que é garantir o suprimento de gás aos seus clientes e balancear os seus contratos de oferta num contexto de poucos participantes e baixa liquidez no mercado. Este desafio é particularmente dramático no Brasil em um contexto em que 90% da oferta doméstica de gás natural ao sistema de transporte interconectado advém de campos de gás associado. Ou seja, os potenciais novos fornecedores de gás nacional têm uma oferta de gás inflexível e devem disputar um mercado acostumado com grande flexibilidade da oferta de gás da Petrobras.
O fracasso das últimas chamadas públicas coordenadas para suprimento de gás das distribuidoras de gás no Brasil em diversificar a oferta tem muita relação com o problema da inflexibilidade da oferta dos concorrentes da Petrobras. Este problema é ainda mais grave quando se trata da oferta de gás doméstico para o mercado termelétrico, que é muito mais variável que o mercado não termelétrico.
As autoridades energéticas precisam agir rápido para destravar a concorrência no mercado de gás. Para isto, é urgente desenhar um mercado para serviços de flexibilidade de gás, que garanta o equilíbrio entre a oferta e demanda e o balanceamento do sistema de transporte. Vale ressaltar que este desenho do mercado pode estar associado à uma estratégia de promoção da concorrência e progressiva desconcentração da oferta de gás no Brasil.
O acordo TCC entre o CADE e a Petrobras que limita a compra de gás da Petrobras de produtores independentes foi o primeiro passo para a aberturar do mercado de gás no Brasil. Entretanto, estes produtores independentes enfrentarão uma grande barreira de mercado para competir com a Petrobras associada a flexibilidade da oferta de gás. Esta barreira à entrada será muito importante no início do processo de abertura. Isto porque não existem fontes alternativas à Petrobras para a flexibilidade.
Estas fontes alternativas seriam a oferta de serviços de estocagem subterrânea de gás e a oferta de contratos de curto-prazo de GNL importado. Entretanto, ainda não existem projetos em operação de estocagem subterrânea no país e os terminais de GNL independentes da Petrobras ainda não têm ligação com o sistema de transporte interligado.
Dada a ausência de fontes alternativas de flexibilidade, o CNPE determinou através da resolução 16 de 2019 que a Petrobras deveria contribuir para o processo de abertura do mercado de gás através da “oferta de serviços de flexibilidade e balanceamento de rede, devidamente remunerados, garantindo a segurança do abastecimento nacional durante período de transição ou enquanto não houver outros agentes capazes de ofertarem esses serviços”. Ademais, a mesma resolução determina que a Petrobras deve promover um “programa de venda de gás natural por meio de leilões e a remoção de barreiras para que os próprios agentes produtores comercializem o gás que produzem”.
A resolução 16 deixa claro que a Petrobras tem uma missão de destravar o mercado competitivo de gás no Brasil, em particular, em um período de transição enquanto não surja uma diversificação da oferta e demanda suficientemente grande para que novos agentes possam oferecer serviços de flexibilidade. A aprovação da Nova Lei do Gás e a promulgação do Decreto nº 10.712 que regulamenta a Lei, reforça esta missão da Petrobras na promoção da abertura do setor.
O Decreto nº 10.712 criou o caminho para a promoção da redução da concentração na oferta de gás natural de que trata a lei do gás no art. 33 através da oferta de serviços de flexibilidade. O artigo 22 do Decreto estabelece como uma das diretrizes para o programa de gas release a ser implementado a critério da ANP , que os comercializadores que detenham elevada participação no mercado (leia-se Petrobras) ofereçam contratos diários, mensais, trimestrais ou anuais para o gás vendido por meio do programa.
Ou seja, a ANP está autorizada pelo decreto a determinar que a Petrobras ofereça contratos de curto-prazo ao mercado. Estes contratos, podem ser um poderoso instrumento para promoção da flexibilidade no mercado de gás. Cabe agora à ANP desenhar um mercado para viabilizar leilões de gás a ser ofertado pela Petrobras nos três sistemas de transporte de gás no Brasil (TBG, NTS e TAG).
É possível desenhar um mercado de curto-prazo de gás que ao mesmo tempo contribua para viabilizar a entrada de novos comercializadores e garantir a segurança de abastecimento e balanceamento do sistema. Para isto, este desenho de mercado deveria ter as seguintes características:
- Organização de um mercado de balcão e de leilão para comercialização de contratos de curto-prazo (diário e semanal) nos três sistemas de transporte de gás (TAG, TBG e NTS)
- Participação obrigatória da Petrobras e voluntária dos demais comercializadores no mercado, com leilão diário de contratos de curto-prazo
- Definição de um volume máximo de oferta e de compra de gás pela Petrobras no leilão diário
- Definição de um preço-teto para venda de gás diário pela Petrobras e de um preço-piso para compra de gás pela Petrobras
A função da Petrobras neste mercado seria garantir liquidez no seu período inicial. Ou seja, a Petrobras seria a compradora e vendedora de última instância. Os comercializadores teriam duas oportunidades para balancear seus contratos de venda de gás e de transporte. A primeira seria no mercado de balcão. Ou seja, aqueles que já previssem que têm gás sobrando podem negociar com comercializadores que precisam de gás adicional para cumprir seus contratos. Finalmente, poderiam participar em um leilão de ajuste no final do dia, com a certeza de que têm liquidez garantida pela Petrobras e com preços limites já conhecidos.
Vale ressaltar que o preço teto/piso acordado entre o Governo e a Petrobras seria um preço de última instância e poderia ser contestado pelos comercializadores. Ou seja, os comercializadores poderão negociar contratos de curto prazo, buscando preços mais atrativos que os preços teto/piso da Petrobras. Somente os desequilíbrios após o funcionamento do mercado de balcão e de leilão seria precificado pelo preço teto/piso da Petrobras.
A partir do momento que outras ofertantes tiverem condições de importar gás da Bolívia com alguma flexibilidade e que fornecedores privados de GNL se posicionem no mercado, a Petrobras terá que enfrentar concorrência na oferta de gás de curto prazo para equilibrar o mercado. A oferta obrigatória de contratos pela Petrobras seria uma medida transitória até o mercado atingir um mínimo de liquidez que permita seu pleno funcionamento.
Vale ressaltar que a Petrobras já organizou leilões de gás de curto-prazo para venda de sobras de gás e tem experiência neste tipo de mercado. Da mesma forma, a TBG já formatou os produtos de capacidade de transporte de curto prazo. Assim, o governo tem toda condição para, em cooperação com a Petrobras e outros stakeholders do setor, criar uma proposta de um desenho de mercado que possa ser lançado rapidamente e que evolua com o tempo para um Mercado Organizado de Gás de elevada liquidez e maturidade.
É fundamental agir rápido na implementação de um desenho de mercado de gás que garanta a oferta de gás e o equilíbrio do mercado, além de dar segurança aos novos comercializadores quanto à existência de um mecanismo para garantir a flexibilidade de oferta.
Notas
[1] Especialista de comercialização de energia na Eneva e Editora-chefe no Ensaio Energético.
[2] Funcionário da Petrobras e Diretor Presidente das empresas Metanor/Copenor e Professor Adjunto da Escola Politécnica da UFBA.
Referências
ALMEIDA, E.; PRADE, Y. e ALMEIDA, J.R.C (orgs) 2021. Flexibilidade na Indústria de Gás Natural: Mecanismos e Estratégias para Apoiar a Concorrência na Indústria Brasileira de Gás. Editora Synergia, Rio de Janeiro.
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2002). Flexibility in Natural Gas Supply and Demand. Paris, OCDE
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (2019). Global Gas Security Review 2019. Disponível em: <https://www.iea.org/publications/reports/globalgassecurityreview2019/>. Último acesso em: 28/09/2019.
Sugestão de citação: Almeida, E. (2021). Papel da Petrobras como Fornecedora de Flexibilidade ao Mercado Concorrencial de Gás no Brasil. Ensaio Energético, 14 de junho, 2021.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.