A aprovação da Nova Lei do Gás representa uma mudança definitiva do padrão de organização da indústria de gás brasileira. Os legisladores aprovaram uma lei que define uma diretriz clara para as autoridades energéticas e para as empresas do setor, que é a introdução da concorrência no mercado de gás brasileiro. Uma vez definida a direção de evolução da indústria de gás, é fundamental uma reflexão sobre quais são os principais desafios para se atingir este objetivo.
Até o presente momento, o debate está focado na eliminação das fortes barreiras à entrada de novos fornecedores. Ou seja, se buscou assegurar o acesso de terceiros às infraestruturas essenciais e ao transporte; a abertura do mercado final; o cumprimento do acordo TCC entre a Petrobras e o CADE; o desenho do mercado organizado de gás; entre outras várias iniciativas regulatórias fundamentais para que novos fornecedores tenham um caminho livre para negociar com distribuidoras e consumidores finais.
Entretanto, existe uma barreira estrutural que ainda não foi devidamente debatida pelos stakeholders do setor que é o problema de assegurar a flexibilidade da oferta de gás pelos novos fornecedores. Uma vez todos os desafios regulatórios superados, os novos fornecedores de gás no Brasil irão enfrentar um problema de extrema complexidade que é como fornecer gás ao mercado com uma flexibilidade da oferta compatível com a variabilidade da demanda de gás das distribuidoras, dos grandes consumidores finais, e, particularmente, das termelétricas. Este problema é especialmente complexo para os produtores de gás associado no Brasil, que corresponde à 80% da oferta doméstica total e a cerca de 90% da oferta de gás ao sistema interconectado de gás. Estes produtores não podem variar significativamente sua oferta de gás sem comprometer a produção do petróleo, sendo este responsável pela maior parte do valor agregado do campo. Adicionalmente, estes produtores têm dificuldade em prover uma garantia de oferta em 100% do tempo, pois existem paradas programadas e não programadas das plataformas.
Este problema se aplica também à Petrobras, mas de forma diferente. Em primeiro lugar, como a empresa participa de 90% da produção como operadora e possui muitas plataformas em operação, sua produção total de gás é bem mais confiável. Pela lei dos grandes números, quando uma plataforma tem problemas, a produção total é pouco afetada. Além disso, a empresa buscou complementar a oferta doméstica com importações de GNL em modalidade spot e gás boliviano com take-or-pay de 80%, aumentando a flexibilidade e confiabilidade do seu portfólio de oferta. Desta forma, a empresa pôde oferecer um gás com 100% de garantia de oferta. Para o caso das termelétricas flexíveis a Petrobras importa GNL no mercado spot nos momentos de grande despacho térmico.
Neste contexto, um produtor de gás nacional de gás associado, sem um portfólio diversificado de produção terá uma grande desvantagem competitiva com a Petrobras para atender tanto o mercado firme das distribuidoras quanto as térmicas flexíveis. Mesmo um fornecedor que for importador de GNL poderá enfrentar dificuldades pontuais para atender um mercado de térmicas flexíveis, se seu estoque de GNL for limitado à capacidade de uma FSRU.
Além do problema das assimetrias competitivas, a questão da falta de uma flexibilidade da oferta fornecida por uma estocagem de gás adequada representa uma ameaça não desprezível para a segurança do abastecimento do país em momentos de forte despacho termelétrico. É importante lembrar que uma importação emergencial de GNL dificilmente pode chegar ao país em menos de 10 dias, considerando-se o tempo necessário para a contratação e para o descolamento até o Brasil.
Diante do exposto acima, é fundamental que as autoridades energéticas atentem para a importância central da estocagem de gás para o sucesso da introdução da concorrência no mercado de gás brasileiro. A disponibilidade de serviços de estocagem no país é um instrumento imprescindível para promover a igualdade de condições de concorrência entre os grandes fornecedores que possuem um grande portfólio de oferta e fornecedores de menor escala de produção e importação. Ademais, seria a garantia de que o processo de diversificação da oferta não estaria associado com um maior risco para a segurança de abastecimento.
Vale ressaltar que em todos os mercados onde foi introduzida a concorrência na oferta de gás, foram desenvolvidos projetos de estocagem subterrânea para ofertar serviços de flexibilidade a produtores e consumidores. Estes últimos estão ávidos para conseguir uma oferta de gás alternativa à Petrobras e possivelmente mais competitiva. Mas não estão dispostos a renunciar à segurança de suprimento e flexibilidade da oferta, sem vislumbrar alternativas para momentos de corte no fornecimento. Grande parte dos processos industriais exigem garantia de suprimento de gás. A interrupção do fornecimento não programado pode causar perdas econômicas difíceis de se justificar com descontos na tarifa de gás. O mesmo vale para termelétricas que devem arcar com penalidades muito elevadas caso não gerem quando solicitadas.
Diante deste cenário, chegou o momento para as autoridades energéticas discutirem uma política para a viabilização de projetos de estocagem subterrânea de gás no Brasil. A nova lei do gás destravou a questão do licenciamento que era um grande obstáculo ao desenvolvimento dos projetos. A exigência de leilões para a concessão de áreas para projetos de estocagem era um grande empecilho ao desenvolvimento de estudos geológico para identificação de áreas adequadas à projetos de estocagem. Entretanto, falta ainda um arcabouço regulatório para a estocagem, que inclua definições sobre a tarifação, direito de acesso, formas de alocação de capacidade, integração com os serviços de transporte, bem como políticas de incentivos e um desenho de mercado de estocagem que contribuam para atrair para o Brasil os players do mercado de estocagem internacional.
No que tange ao arcabouço regulatório e ao desenho de mercado, cabe salientar que existem grandes sinergias entre o mercado de transporte e estocagem. Nos grandes mercados liberalizados de gás, existe uma forte integração entre os serviços de transporte e estocagem. Nos Estados Unidos, por exemplo, os centros de comercialização de gás, como o Henry Hub, operam de forma integrada com os sistemas de transporte e estocagem. Na Europa, por outro lado, existe uma separação entre as atividades de transporte e estocagem, mas com desenho de mercados que permitem um forte acoplamento entre os serviços de transporte e de estocagem. Desta forma, cabe uma reflexão sobre como integrar projetos de estocagem aos sistemas de transporte no Brasil, em particular sobre como desenhar um sistema tarifário de transporte que permita um baixo custo de acesso às futuras infraestruturas de estocagem de gás por todos os carregadores.
Por fim, é importante ressaltar que o Brasil está iniciando uma jornada para o desenvolvimento de um mercado competitivo, tendo como meta um mercado organizado de gás com liquidez suficiente para o desenvolvimento de um mercado spot e, por que não, um mercado futuro de gás. Poucos países atingiram este nível de desenvolvimento de um mercado liberalizado e, pelo histórico destes países, sabemos que a duração desta jornada pode ser bastante longa. Assim, as autoridades energéticas brasileiras devem trabalhar de forma intensa para encurtar a jornada em direção ao mercado concorrencial. Justamente, a agenda da promoção da estocagem subterrânea é estratégica para acelerar esta jornada.
Sugestão de citação: Almeida, E. (2021). O Papel da Estocagem Subterrânea de Gás para a Introdução da Concorrência no Mercado de Gás Brasileiro. Ensaio Energético, 05 de abril, 2021.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.