Novas tendências tecnológicas para a mobilidade urbana vêm crescendo e modificando o modo como os cidadãos se deslocam nas cidades. Destacam-se, em especial, duas tendências: o compartilhamento e a eletrificação da mobilidade.
Mais da metade da população global vive em cidades e estima-se que nas próximas duas décadas mais de 1 milhão de pessoas se mudarão para as cidades todas as semanas (WBCSD, 2021). As cidades precisam combinar diversos meios de transporte, tais como carros particulares, transporte público, ciclismo e caminhada, em sistemas de transporte integrados a fim de combater o congestionamento e a poluição (McKinsey, 2019).
Compartilhamento
É crescente o compartilhamento da mobilidade, para além dos táxis, aluguéis de carro tradicionais e transportes públicos, novos modelos de negócios vêm ganhando espaço, como o compartilhamento de carros (carsharing), bicicletas e patinetes. O compartilhamento da mobilidade leva a uma modificação da percepção do consumidor quanto a mobilidade individual, deixando de ser atrelada unicamente a aquisição de veículos e passando ser vista como um serviço.
A flexibilidade e a conveniência levaram a uma expansão desta tendência nos últimos anos, principalmente por meio de aplicativos de transporte individual. A mobilidade compartilhada é o uso compartilhado de um veículo, bicicleta ou outro modal que permite que os usuários tenham acesso de curto prazo aos meios de transporte sob demanda.
Vale notar que a conectividade surge como uma ferramenta que busca garantir maior flexibilidade e eficiência aos sistemas de deslocamento vigentes. Esta tendência, no entanto, é muito dependente da digitalização (CEBRI, 2018). Espera-se que, até 2030, as vendas de veículos individuais sejam reduzidas em pelo menos 10% devido ao maior uso de veículos compartilhados (McKinsey, 2016).
Plataformas que se propõem a facilitar a mobilidade urbana, fator preocupante nas grandes cidades do mundo, são populares na economia compartilhada. O compartilhamento de automóveis tem como princípio básico proporcionar aos seus usuários todos os benefícios de um carro particular, sem que haja a necessidade de sua posse. Esse setor é um dos que têm maior diversidade de modelos de negócio. Como os veículos particulares ficam parados por cerca de 95% do tempo, o compartilhamento de carros pode aumentar a eficiência do uso do automóvel (Fraiberger; Sundararajan, 2015).
No modelo de compartilhamento business-to-peer (B2P), o usuário paga uma taxa de adesão para acessar o veículo quando desejar, ainda que sujeito a disponibilidade, podendo também optar pelo sistema de aluguel por hora utilizada. No Brasil, a primeira empresa de compartilhamento de veículos foi a Zazcar, atuante em São Paulo desde 2010 (REUTERS, 2013). Outra forma de compartilhamento de veículos é através do modelo peer-to-peer (P2P), no qual os proprietários podem alugar seu próprio carro, o fazendo de acordo com suas disponibilidades de horário e escolhendo potenciais usuários. Os proprietários são remunerados por meio de um percentual do valor do aluguel, sendo a plataforma comissionada pela intermediação (SCHOR, 2015).
Outro modelo de compartilhamento P2P é o que conecta passageiros a motoristas de carros particulares, onde a cobrança das corridas é realizada através de um aplicativo para smartphones da empresa que fornece o serviço. Esse modelo se iniciou em 2009, com o lançamento da plataforma da empresa norte-americana Uber, a qual chegou ao mercado brasileiro em 2014 (UBER, 2015). Vale observar que a Uber se define como uma empresa de tecnologia, não de transporte e, em seu modelo de negócio, os motoristas se cadastram juntamente com seu carro e se tornam parceiros da empresa, e por meio do aplicativo Uber são conectados aos passageiros.
Outra forma de compartilhamento é a micromobilidade compartilhada, ou seja, o uso compartilhado de uma bicicleta, patinete ou outro modal de baixa velocidade. A micromobilidade compartilhada inclui vários modelos de serviço e meios de transporte que atendem às diversas necessidades dos viajantes, como por exemplo o compartilhamento de bicicletas com estações fixas de retirada e devolução e o compartilhamento de bicicletas e patinetes sem doca[1], ou seja, sem a necessidade de uma estação, uma vez que a devolução pode ser feita em qualquer local (Shaheen et al, 2020).
Contudo, existem barreiras ao compartilhamento da mobilidade e espera-se que este tipo de mobilidade substituirá apenas parcialmente a propriedade de um carro. Uma pesquisa da McKinsey de 2017 revela que 67% de todos os entrevistados nos EUA preferem dirigir seus próprios veículos a usar aplicativos de pedágio, e 63% não estão interessados em trocar seus veículos por viagens de mobilidade compartilhada, ainda que estas sejam gratuitas (McKinsey, 2017). A percepção dos consumidores americanos é semelhante a brasileira. Para boa parte da população brasileira, comprar o próprio carro significa a realização de um sonho. Contudo, as novas gerações não necessariamente fazem esta associação (BCG, 2019).
No caso brasileiro, é notório o crescimento da mobilidade compartilhada por meio de aplicativos de mobilidade privada. Pode-se destacar o caso da Uber, empresa que tem no Brasil um de seus maiores mercados, atrás apenas dos Estados Unidos. Algumas características brasileiras favorecem a penetração deste tipo de mobilidade, como: a população altamente concentrada em algumas regiões urbanas; os transporte público de baixa qualidade; a falta de segurança que leva ao medo de utilizar transporte público; o elevado nível de conectividade por meio de dispositivos móveis, em especial pela característica da pirâmide etária brasileira, com um maior percentual de jovens, os quais costumam ser mais abertos a novas tecnologias; o alto custo de aquisição de veículos; e as altas taxas de desemprego e de emprego informal, sendo o transporte por aplicativo uma ocupação em períodos de desemprego e até mesmo uma forma de garantir uma renda extra (BCG, 2019).
Eletrificação
Com relação a eletrificação, o cenário atual de inserção de veículos elétricos (VEs) no mercado mostra uma evolução significativa em suas vendas pelo mundo, como pode ser observado na figura abaixo.
Figura 1 – Vendas de carros elétricos nos principais mercados (por milhão) e o percentual de Market Share de 2010 a 2020
Fonte: IEA (2020).
A tendência de eletrificação dos transportes foi motivada por algumas razões. Dentre elas, destaca-se a preocupação com as mudanças climáticas, levando a busca por soluções de mobilidade menos poluentes, uma vez que o setor de transportes responde por 25% das emissões globais de gases de efeito estufa a partir da queima de combustíveis fósseis. Deste modo, a mobilidade elétrica passou a ser vista como um dos principais vetores da descarbonização da matriz energética e vários países estruturam incentivos para promovê-la.
A maior eficiência dos VEs também é uma vantagem frente aos modelos a combustão interna. A eficiência de VEs pode superar 80%, enquanto veículos a combustão interna não chegam a 20% de eficiência (US-DOE, 2020). A eletrificação combinada à penetração de renováveis na matriz de geração elétrica potencializa a redução de emissões de gases de efeito estufa.
A adoção de VEs traz também outros benefícios como redução da dependência de importação de combustíveis fósseis, a diminuição do ruído e a melhora na qualidade do ar nos centros urbanos. Destaca-se também como motivação para a adoção de VEs a possibilidade de utilização das baterias veiculares como recurso energético distribuído. A partir do momento que os consumidores se tornam prosumers, ou seja, além de utilizar a energia da rede também a produzem por geração distribuída, os veículos elétricos se tornam um recurso inteligente para melhor utilização da energia (Delgado et al., 2017). É importante observar o caso da tecnologia vehicle-to-grid (V2G), que permite que os proprietários não apenas liguem na rede para carregar seus veículos, mas também alimentem e vendam energia em momentos de alta demanda de eletricidade (Fontaínhas; Cunha; Ferreira, 2016). Deste modo, a tecnologia V2G permite acelerar a aceitação de veículos elétricos, diminuir a necessidade de ampliar a capacidade de geração para momentos de pico, já que os veículos inativos podem atuar como uma grande bateria, contribuindo para a estabilização do fornecimento de energia e até mesmo fornecendo energia para momentos de interrupção. Ademais, podem contribuir para a minimização de problemas de intermitência associados a fontes renováveis.
Contudo, a eletrificação da mobilidade enfrenta diversos desafios. Apesar das motivações acima apresentadas, persistem obstáculos significativos à efetiva incorporação de VEs no mercado, como o alto custo de aquisição em comparação a outras opções no mesmo segmento de mercado de automóveis. O preço das baterias, que utilizam a tecnologia de íons de lítio, acarreta em maiores preços dos veículos, apesar de apresentarem uma tendência de queda.
Outro grande desafio é a chamada ansiedade de alcance, do inglês, range anxiety, isto é, a preocupação dos proprietários com a disponibilidade de estações de carregamento dentro da autonomia dos veículos. Essa preocupação pode prejudicar o processo de difusão de veículos elétricos enquanto a rede de recarga é insuficiente. Além disso, estas estações devem ser compatíveis, isto porque existem diferentes modelos de carros elétricos no mercado que não utilizam a mesma infraestrutura de recarga. Assim, os tipos de carregadores nas estações devem corresponder ao necessário para o veículo. Se um comprador potencial não tiver certeza de que essa infraestrutura existe, ele não terá interesse em comprar um veículo a eletricidade. Assim, a expansão da rede de carregamento é essencial para acelerar a difusão de VEs (Li et al., 2017).
Ademais, VEs tem uma menor autonomia se comparados a veículos a combustão interna e possuem um tempo de carregamento médio longo se comparado ao abastecimento com combustíveis fósseis. Por outro lado, se considerarmos a circulação reduzida nos centros urbanos, a exigência por grandes autonomias é mitigada. A distância média diária percorrida no Brasil é de 42 quilômetros (CEBRI, 2018). Ainda da infraestrutura de recarga brasileira seja imatura, diferentes empresas, entre elas de distribuição de combustíveis e energia elétrica, já sinalizam para o desenvolvimento dessa infraestrutura como uma oportunidade de negócio (CEBRI, 2018).
Mobilidade compartilhada será elétrica?
A partir da análise das duas tendências para a mobilidade urbana, é importante entender como o compartilhamento e a eletrificação se relacionam. Com relação aos veículos elétricos, como mencionado anteriormente, apesar do alto custo de aquisição, VEs levam a menores custos com combustível (ou recarga) e com manutenção se comparados aos veículos à combustão interna. Considerando que o compartilhamento das frotas gera um padrão de uso mais intenso dos veículos, o uso de VEs deve reduzir os custos com combustível e manutenção.
Por outro lado, é importante notar que a menor autonomia e o tempo de recarga dos VEs pode ser um fator limitante ao uso intensivo do veículo. Isto porque ainda que a autonomia dos veículos elétricos tenha crescido nos últimos anos, podendo ultrapassar os 300km com uma recarga cheia, pode ser necessário uma nova recarga. Existem diferentes tipos de recarga e o tempo de carregamento varia conforme a alternativa utilizada, podendo levar até 12 horas no caso do carregamento lento ou poucos minutos utilizando superchargers. Contudo, a infraestrutura de recarga rápida ainda é limitada, sendo a opção de carregamento lento a mais difundida. Assim, a combinação de autonomia limitada e longos tempos de carregamento ou acesso limitado ao carregamento rápido pode representar desafios, isto porque a busca por carregadores disponíveis e longos tempos de carregamento pode significar perdas de receita para os motoristas de táxi e aplicativos (IEA, 2019).
Ademais, como mencionado anteriormente, os VEs têm alto valor de aquisição e poucos modelos de VEs disponíveis hoje atendem a todos os requisitos operacionais de táxis e serviços de transporte como autonomia, capacidade de assento e grande espaço no porta-malas (IEA, 2019).
Existem iniciativas que unem estas duas tendências. A Uber irá lançar um plano chamado Uber Green em 15 cidades dos Estados Unidos e Canadá. Neste plano, os usuários do aplicativo vão poder solicitar um carro híbrido ou elétrico, pagando apenas um dólar a mais pela viagem. Já os motoristas que adotarem VEs irão ganhar entre 0,50 e 1,50 dólar a mais por corrida realizada, de acordo com o tipo de veículo.
A Uber pretende começar a operar com uma frota totalmente composta por veículos elétricos a partir de 2030 nos Estados Unidos, Canadá e Europa. A empresa não vai impedir o uso de carros movidos por combustíveis fósseis, esperando que a mudança seja natural e que os benefícios propostos vão incentivar os condutores a trocarem de veículo. A partir do ano de 2040, a Uber pretende se tornar uma empresa totalmente livre de emissões. Esse será um grande desafio em países que ainda estão numa fase inicial de difusão, como o Brasil. (Loureiro, 2020).
Reflexões para a mobilidade a partir da pandemia de COVID-19
O setor de transporte vem enfrentando desafios desencadeados pela pandemia de COVID-19 e as estratégias de distanciamento social implementadas para conter sua disseminação. A pandemia prejudicou o uso do transporte público e compartilhado.
Durante a pandemia de COVID-19, a poluição do ar caiu quase 60% em muitas cidades, como foi o caso de Delhi, Índia, uma vez que veículos elétricos não têm emissões de escape, além de produzirem menos ruído em comparação com os veículos convencionais. Deste modo, priorizar a adoção de veículos elétricos poderia ajudar a manter as melhorias na qualidade do ar e a diminuição do ruído em grandes cidades (WRI, 2020).
Ademais, a pandemia acelerou a necessidade de conectividade e a preocupação com o acesso a Internet para atividades anteriormente realizadas presencialmente. Esta ampliação da digitalização pode contribuir para a ampliação da mobilidade compartilhada, visto que diferentes modelos de negócio relacionados ao compartilhamento da mobilidade fazem uso de plataformas que dependem da conectividade.
Assim, é importante que este momento de crise de Covid-19 possa ser utilizado como forma de repensar a mobilidade, buscando soluções aos desafios trazidos pela pandemia que estejam no caminho para um sistema de mobilidade mais sustentável e compartilhado.
Notas
[1] Doca: equipamento físico em que a bicicleta é afixada nas estações.
Referências
Boston Consulting Group (2019). The New Reality of Mobility in Brazil. Disponível em: <https://image-src.bcg.com/Images/BCG-Artigo-Mobilidade-En-2019_tcm9-237797.pdf>.
CEBRI (2018). Mobilidade elétrica: perspectivas e desafios. RELATÓRIO V, ANO I.
IEA (2019). Shared, automated… and electric? Disponível em: https://www.iea.org/commentaries/shared-automated-and-electric.
DELGADO, F; COSTA, J; FEBRARO, J; SILVA, T (2017). Carros Elétricos. FGV ENERGIA, v. 4, n. 7, p. 112.
LOUREIRO, R. (2020). Uber avança em plano para ter apenas carros elétricos no aplicativo, Exame. Disponível em: <https://exame.com/tecnologia/uber-avanca-em-plano-para-ter-apenas-carros-eletricos-no-aplicativo/>.
FONTAÍNHAS, J.; CUNHA, J.; FERREIRA, P (2016). Is investing in an electric car worthwhile from a consumers’ perspective? Energy, v. 115, p. 1459–147.
Fraiberger, S., & Sundararajan, A. (2015). Peer-to-peer rental markets in the sharing economy. NYU Stern School of Business Research Paper.
McKinsey (2016). Automotive Revolution – perspective towards 2030.
McKinsey (2017) How shared mobility will change the automotive industry.
McKinsey (2019). The future of mobility is at our doorstep.
REUTERS (2013). Zazcar aproveita geração da Internet e caos no trânsito para crescer. Portal G1, 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2013/03/zazcar-aproveita-geracao-da-internet-e-caos-no-transito-para-crescer.html>.
SCHOR, J. (2015). Collaborating and Connecting: The emergence of the sharing economy. In: REISCH, L.; THOGERSEN, J. (Ed.). Handbook on research on sustainable consumption. Cheltenham, UK.
SHAHEEN, S; COHEN, A; CHAN, N; BANSAL, A. (2020). Sharing strategies: carsharing, shared micromobility (bikesharing and scooter sharing), transportation network companies, microtransit, and other innovative mobility modes. In: Transportation, Land Use, and Environmental Planning.
UBER (2015). Os Primeiros Ubers Chegaram no Rio. Disponível em: <https://www.uber.com/pt-BR/blog/rio-de-janeiro/os-primeiros-ubers-chegaram-no-rio/>.
World Business Council for Sustainable Development (2021). Cities & Mobility. Disponível em: < https://www.wbcsd.org/Programs/Cities-and-Mobility>.
WRI (2020). 4 Reasons to Prioritize Electric Vehicles After COVID-19. Disponível em: <https://www.wri.org/blog/2020/10/4-reasons-prioritize-electric-vehicles-after-covid-19>.
Sugestão de citação: CORDEIRO, A. C. (2021). O Futuro da Mobilidade Urbana: Compartilhamento e Eletrificação. Ensaio Energético, 23 de março, 2021.
Ana Carolina Cordeiro
Economista pela UFRJ, mestre e doutoranda em Economia pela UFF. Membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).