Ensaio Energético

O desafio dos materiais para a transição energética

A cada nova publicação sobre mudanças climáticas as recomendações para acelerar a transição energética se intensificam. O relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) voltou a ressaltar que transformações substanciais devem acontecer no setor energético para acelerar a redução de emissões de gases de efeito estufa e chegar ao net zero (IPCC, 2022). Nesse sentido, a geração de eletricidade a partir de fontes de baixo carbono e as tecnologias de armazenamento ganham relevância e se constituem como as principais ações de mitigação do setor.

De acordo com a Agência Internacional de Energia (IEA), para alcançar emissões líquidas nulas até 2050, será necessário aumentar a capacidade instalada de geração solar fotovoltaica em 630 GW por ano (IEA, 2021a). No caso da geração eólica onshore e offshore, estima-se que o aumento anual da deverá ser de 350 GW (IEA, 2021a). O cenário apresenta ainda entrada massiva de baterias para carros elétricos e armazenamento de energia (IEA, 2021a). Por trás da expansão dessas tecnologias estão os materiais necessários para esse desenvolvimento. Do cobre e alumínio para linhas de transmissão, passando pelo neodímio para turbinas eólicas e motores elétricos, silício para painéis solares até chegar ao cobalto, níquel e lítio para baterias, paira o questionamento sobre a disponibilidade de materiais críticos para viabilizar a transição energética no ritmo que ela deve ocorrer.

Na última década, o crescimento das fontes renováveis resultou em um aumento de 50% na quantidade média de minerais por unidade de capacidade instalada (IEA, 2021b). Um aumento semelhante é percebido com os veículos elétricos, uma vez que esses utilizam seis vezes mais minerais que os carros convencionais (IEA, 2021b). Essa tendência torna o setor energético consumidor de muitos materiais críticos cuja oferta e investimentos atuais não são suficientes para atender à demanda crescente que se projeta, o que pode resultar em períodos de escassez no curto prazo e volatilidade de preços.

Qualquer semelhança com a dinâmica da indústria de petróleo e gás não é mera coincidência. Dentro da economia dos recursos naturais, os materiais críticos também estão sujeitos às tensões geopolíticas e interrupções na cadeia de suprimentos. Os impactos dessas circunstâncias tendem a ser ainda mais significativos nesse mercado devido à grande concentração. Atualmente, a República Democrática do Congo é responsável por 70% da produção de cobalto, a China por 60% de minerais de terras raras, a Austrália por cerca de 50% do lítio, e o Chile por quase 30% da extração de cobre (IEA, 2021b). Dessa forma, a preocupação com eventuais desequilíbrios entre oferta e demanda é grande.

Diversas análises buscam antever o impacto desses desequilíbrios para traçar estratégias tomando como base o histórico de produção, as reservas e projeções de aumento da demanda. As perspectivas variam entre os materiais, mas reflexões comuns desses estudos destacam que os principais gargalos estão relacionados à lentidão no desenvolvimento de novos projetos e à concentração geográfica. Nesse sentido, uma alternativa para garantir a disponibilidade de minerais para aplicação nas tecnologias de energia limpa passa pela descentralização, não somente da extração mineral, mas também das etapas seguintes de separação e processamento, atualmente dominadas pela China (GIELEN, 2021). Contudo, os sinais dos governos para acelerar a transição energética ainda são insuficientes para subsidiar as decisões de investimento das empresas que acabam se baseando em cenários mais conservadores.

Em paralelo, a exaustão das reservas e a redução na qualidade dos minérios demandará o avanço para áreas de mineração mais complexas e de menor produtividade. Nessas condições, a mineração exige mais energia, o que acaba por elevar os custos de produção, emissões de gases de efeito estufa e volume de resíduos. Essa tendência de rendimentos decrescentes já é percebida na produção de cobre no Chile, onde o teor médio do minério diminuiu cerca de 30% nos últimos 15 anos (IEA, 2021b). Junto dos esforços necessários para expandir a produção de minerais, emergem preocupações sobre a capacidade dessa indústria de intensificar suas atividades de forma sustentável.

Historicamente, a mineração foi marcada por episódios de contaminação do solo e da água por metais pesados, além de impactos à biodiversidade e comunidades locais (LEE et al., 2020). Um estudo recente avaliou os riscos ambientais, sociais e de governança (ESG) associados à extração de materiais críticos para a transição energética. Verificou-se que 65% dos recursos de lítio estão localizados em áreas que podem sofrer estresse hídrico, e que 70% dos recursos de cobalto estão expostos a elevados riscos sociais e de governança (LÈBRE et al., 2020). Essa perspectiva evidencia o papel controverso da mineração que, por um lado é essencial para as tecnologias de baixo carbono, e por outro pode intensificar impactos socioambientais.

Assim, é fundamental que se reinventem os modos de produção e utilização de materiais. Da exploração e processamento ao design dos produtos, os esforços de pesquisa e inovação podem aliviar as pressões sobre a cadeia de suprimento primário, permitir substituições de materiais para determinadas aplicações e reduzir a intensidade de uso em outras. Já a reciclagem de minerais, ainda que seja uma estratégia importante para reduzir a geração de resíduos, tem contribuição limitada nos cenários de escassez que podem surgir no curto e médio prazo, enquanto os projetos de mineração não estiverem alinhados com as demandas da transição. Neste contexto, a trajetória de exploração dos materiais determinará em que medida essa será uma transição justa e sustentável.

 

 

Referências

GIELEN, D. Critical minerals for the energy transition. Abu Dhabi: [s.n.].

IEA. Net Zero by 2050 A Roadmap for the. Paris: [s.n.]. Disponível em: <www.iea.org/t&c/>.

IEA. The Role of Critical Minerals in Clean Energy TransitionsWorld Energy Outlook Special Report. Paris: [s.n.]. Disponível em: <https://www.iea.org/reports/the-role-of-critical-minerals-in-clean-energy-transitions>.

IPCC. Summary for PolicymakersClimate Change 2022: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. [s.l: s.n.].

LÈBRE, É. et al. The social and environmental complexities of extracting energy transition metals. Nature Communications, v. 11, n. 1, p. 1–8, 2020.

LEE, J. et al. Reviewing the material and metal security of low-carbon energy transitions. Renewable and Sustainable Energy Reviews, v. 124, n. March, p. 109789, 2020.

Sugestão de citação: Lorentz, L. (2022). O desafio dos materiais para a transição energética. Ensaio Energético, 11 de abril, 2022.

 

Letícia Lorentz

Consultora na Escopo Energia, mestranda em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ, pós-graduanda em Gestão Sustentável de Energia pela mesma instituição, e Engenheira Eletricista formada pela Universidade Veiga de Almeida. Desenvolve pesquisa na área de energia com foco nos temas de bioenergia, modelagem integrada, eficiência energética, e transição energética.

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Maria Nilva de Oliveira Chaves
Maria Nilva de Oliveira Chaves
2 anos atrás

Parabéns Letícia!!! Muito importante que a população tenha esse conhecimento.

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