Ensaio Energético

Mobilidade elétrica justa e formas de promovê-la

Segundo a quarta comunicação nacional (documento enviado pelo Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), o setor de transporte representou mais da metade das emissões brasileiras dos setores de queima de combustíveis em 2016, último ano de emissões calculadas (Brasil, 2020). A mobilidade elétrica é, sem dúvida, um tema relevante nesse contexto de mudanças climáticas e necessárias reduções de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), visto que um veículo elétrico em circulação tem emissão nula durante o uso e mesmo quando analisadas as emissões do ciclo de vida, ou seja, desde a geração de energia elétrica até o uso final no veículo, os impactos são reduzidos.

Ainda assim, é importante ponderar quais as melhores maneiras de se incentivar o uso da eletricidade no transporte brasileiro, pois as desigualdades sociais no país são acentuadas e privilegiar veículos que custam acima de 3 vezes o valor de um carro popular pode agravar essa situação. Nesse sentido, este artigo busca analisar como e porque o transporte automotor privado foi privilegiado historicamente no Brasil e quais as consequências dessas políticas para as famílias mais pobres, propondo medidas que promovam a mobilidade elétrica de forma mais justa.

A urbanização de forma desordenada nas grandes cidades gerou e continua agravando a fragmentação do espaço urbano. Sem um planejamento adequado do uso do solo, começaram a surgir, ao mesmo tempo, vazios urbanos e áreas extremamente adensadas, produzindo a necessidade de infraestrutura cada vez maior, tanto para a circulação de automóveis quanto para o transporte público. Esse processo de urbanização também promoveu uma segregação socioespacial, fazendo com que a população mais pobre precisasse se deslocar para áreas periféricas, longe dos locais de maior oferta de emprego, lazer, educação e saúde. Esse fato resultou em um aumento do tempo gasto com transporte na medida em que tornava os custos sociais, ambientais e econômicos mais elevados (Pero & Mihessen, 2013)

Sendo assim, a análise do desenvolvimento urbano em países como o Brasil, deve ir além das questões econômicas, trazendo para a discussão uma análise histórica e sociológica (Santos, 1982). Nesse sentido, quando o foco é transporte, deve-se analisar a mobilidade urbana não apenas como consequência, mas também como parte do que mantém o status quo da desigualdade social nas grandes cidades (Dupuy, 1980). Maiores tempos de deslocamento resultam em redução do tempo de lazer, estudos, trabalho, e consequentemente, da renda e qualidade de vida da população.

De fato, não apenas a urbanização, mas a própria forma como a mobilidade urbana foi promovida nas cidades agravou as desigualdades socioespaciais, visto que, historicamente o foco dos incentivos foi direcionado ao transporte rodoviário individual em detrimento de investimentos em infraestrutura de transporte público. Desde o início da década de 1990 observa-se um aumento da renda domiciliar per capita média das famílias que, acompanhado de um aquecimento da economia, facilidade no acesso ao crédito e incentivos fiscais à indústria automobilística, resultou em um aumento expressivo nas vendas de veículos leves no país.  

Porém esse momento não foi acompanhado por melhorias significativas nas infraestruturas de transporte, em especial do transporte público, que já sofria com a precarização e a falta de segurança, além da falta de confiabilidade e dos custos elevados. Os fatos destacados geraram um aumento do congestionamento nas regiões metropolitanas, sendo que as consequências foram mais expressivas nas classes de renda mais baixas, que já sofriam com tempos maiores de deslocamento casa-trabalho. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), proporção de viagens com mais de uma hora de duração chegou a aproximadamente 20% dos deslocamentos do primeiro decil em 2008 (Pereira & Schwanen, 2013).

Vale destacar que, historicamente, os governantes atribuem elevada prioridade às obras direcionadas ao transporte privado individual, em detrimento do transporte coletivo, pois os formadores de políticas públicas consideram que o carro é desejo final de todo o usuário de transporte público. Este modelo de desenvolvimento já vem sendo criticado desde a década de 70 por  DUPUY (1980), que destacou que o conceito de contraprodutividade poderia ser aplicado a questão da mobilidade urbana. Ou seja, ao invés de trazer melhorias nos deslocamentos, colocar mais um automóvel em circulação em um sistema de transporte já saturado, gera imobilidade.

Quando se observa como as políticas de promoção a mobilidade elétrica vem sendo estruturadas em outros países, pode-se ainda notar que, em muitos casos, o foco ainda é o veículo privado, que tem seu valor subsidiado por governos como o dos EUA, Portugal, França e Itália. Além disso, tendo em vista que os impostos de circulação são reduzidos e que o preço da eletricidade como combustível é relativamente barato (quando comparado a combustíveis como gasolina), em alguns casos, o custo de operação do veículo elétrico é menor do que o valor da passagem de ônibus, gerando um desincentivo ao uso do transporte coletivo.

Outra forma de estímulo aos carros elétricos ocorre por meio dos incentivos não financeiros, como por exemplo, permissão de circulação em faixas exclusivas, vagas de estacionamento próprias, e restrições à circulação de veículos a combustão em locais com elevados índices de poluição atmosférica local. Apesar de serem soluções que de fato podem reduzir as taxas de poluentes, é necessário analisar o quão excludente essas políticas podem se tornar.

Como visto anteriormente, os tempos médios de deslocamento casa-trabalho são mais elevados nas classes de renda mais baixa e privilegiar com faixas, estacionamentos e locais exclusivos de circulação apenas quem possui poder aquisitivo para a compra de veículos elétricos pode agravar ainda mais essas diferenças. Sendo assim, essas políticas devem vir acompanhadas de alternativas de mobilidade para que não haja ainda mais prejuízos às populações periféricas.

Essas soluções podem ser estudadas em dois níveis: o transporte de maior capacidade, que fará a maior parte do trajeto do passageiro, da sua residência até uma determinada estação próxima ao seu destino final e o transporte individual, que fará o último percurso do passageiro.

As soluções de transporte de massa possuem um potencial de mitigação de emissões elevado. Enquanto o diesel utilizado nos ônibus possui 12% de biodiesel em sua composição, a gasolina C utilizada nos veículos leves possui 27% de etanol anidro, além disso, os veículos leves flex fuel podem circular com etanol hidratado. Os biocombustíveis configuram uma alternativa 100% renovável. Por fim, os ônibus são responsáveis pela maior parte do total de passageiros-quilômetro (p-km) transportados nas cidades. Entre 2002 e 2008 houve um aumento de 4% na participação dos ônibus na matriz-modal da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que passaram a representar 80% do total de p-km transportado na cidade.

Além de não emitirem poluentes atmosféricos durante o uso, os ônibus elétricos possuem um nível de conforto e segurança maior, gerando um impacto positivo para as pessoas de baixa renda que, como visto anteriormente, estão mais distantes dos locais de trabalho e passam mais tempo nos deslocamentos. Sendo assim, incentivos e regulações que auxiliem no aumento da participação dos ônibus elétricos nas frotas municipais são importantes para a melhoria da qualidade do ar nas grandes cidades e redução das emissões de GEE.

Dentre os incentivos que vem sendo aplicado para esse tipo de modelo destaca-se o financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a compra de ônibus urbano: enquanto a remuneração ao BNDES para o financiamento de ônibus a Diesel chega a 3,5% a.a., para os ônibus híbridos a taxa é de 2,5% a.a. e para elétricos, 1% a.a.. Além disso, no programa de financiamento do BNDES, os períodos de carência e amortização são maiores para veículos híbridos e elétricos.  

Para além dos incentivos para a compra dos ônibus, São Paulo lançou em 2018 um edital de licitação de linhas de ônibus em que as empresas ganhadoras devem substituir gradualmente a sua frota de veículos a Diesel por combustíveis alternativos, como por exemplo, diesel de cana-de-açúcar, biodiesel, elétricos, híbridos e biometano. Essa substituição deve ocorrer seguindo um cronograma de redução de emissões de CO2, NOX e MP, que devem ser nulas em até 20 anos.

Este tipo de regulação também é importante na construção de uma mobilidade sustentável, porém é importante destacar que o percentual de ônibus elétricos na frota dos municípios ainda será baixo e que a destinação desses veículos para linhas que realizam um percurso maior e que atenda locais onde a renda é mais baixa terá um impacto maior tanto na melhoria da qualidade de vida da população, quanto na economicidade do modelo de negócios (visto que, por conta dos custos reduzidos de combustíveis e manutenção, os veículos elétricos se viabilizam mais quanto maior for a quilometragem percorrida).

No caso das soluções de transporte individual, essas podem ser pensadas em um contexto de economia compartilhada, por meio de soluções como o e-carsharing ou micromobilidade compartilhada (patinetes e bicicletas). O compartilhamento de veículos elétricos é uma das soluções para inserir a mobilidade elétrica nas cidades sem incorrer na contraprodutividade citada anteriormente. Um veículo nesse sistema pode retirar até 14 carros privados de circulação, além disso, a quilometragem percorria em veículos automotores por usuários de sistemas de carsharing tente a ser reduzida, visto que esses usuários passam a utilizar mais o transporte público e o transporte ativo.

Sendo assim, para que os benefícios da mobilidade elétrica sejam maximizados é importante que a forma de oferecer e consumir mobilidade seja repensada. Os incentivos aos veículos elétricos devem ser direcionados aos que impactem de forma mais positiva a população, tendo em vista que os carros elétricos particulares, mesmo que reduzam a poluição local, possuem outras externalidades negativas. Portando, a transição para a mobilidade elétrica deve ser promovida de forma justa, garantindo o acesso à cidade para toda a população, gerando uma maior integração dos espaços e reduzindo as desigualdades socioespaciais.

Referências

Brasil. (2020). QUARTA COMUNICAÇÃO NACIONAL DO BRASIL À CONVENÇÃO-QUADRO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MUDANÇA DO CLIMA.

Dupuy, J.-P. (1980). Introdução à crítica da ecologia política. Civilização Brasileira.

Pereira, R. H. M., & Schwanen, T. W. (2013). Tempo de deslocamento casa-trabalho no Brasil (1992-2009): Diferenças entre regiões metropolitanas, níveis de renda e sexo.

Pero, V., & Mihessen, V. (2013). Mobilidade urbana e pobreza no Rio de Janeiro. Revista Econômica, 15(2), 23–50. https://doi.org/10.22409/economica.15i2.p71

Santos, M. (1982). Ensaios sobre a urbanização Latino-Americana.

Sugestão de citação: Oliveira, L. B. (2021). Mobilidade elétrica justa e formas de promovê-la. Ensaio Energético, 19 de março, 2021.

Luiza Di Beo Oliveira

Engenheira ambiental pela UFRJ, mestre em Planejamento Energético e Ambiental pela COPPE e doutoranda no mesmo programa. Tem como principal linha de pesquisa análise energética, ambiental e econômica do setor de transporte.

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