O biometano é um biocombustível gasoso constituído essencialmente de metano, derivado da purificação do biogás, apresentando características muito similares ao gás natural. No Brasil, a regulação acerca do biometano é muito recente, sendo introduzida pelas Resoluções da ANP 8/2015, 685/2017 e 734/2018. Embora o mercado seja incipiente, o Rio de Janeiro se destaca no atual cenário. Primeiro, o estado possui duas, das três plantas existes de biometano no Brasil, o que representa cerca de 67% da capacidade instalada no país (ANP, 2021). Segundo, o estado possui uma das mais avançadas regulações sobre biometano, pois determina uma mistura obrigatória de biometano na rede de distribuição de cerca de 10% do consumo não-térmico atendido pelas distribuidoras de gás natural, a CEG e a CEG Rio.
Contudo, mesmo possuindo plantas de grande porte e uma mistura obrigatória, até hoje, todo o biometano produzido no estado é comprimido e vendido a postos de combustíveis e a clientes industriais, não há ainda injeção na rede. Este breve artigo busca identificar as causas que dificultam a venda do biometano às distribuidoras assim como apresentar o atual contexto de competitividade do biometano no estado do Rio de Janeiro.
1. Produção e potencial do biometano
1.1. Atual produção de biometano no Rio de janeiro
Dentre as três instalações autorizadas pela ANP para exercício da atividade de produção de biometano, duas estão localizadas no estado do Rio de Janeiro, são elas a planta da GNR Dois Arcos (Ecometano) e da Gás Verde (ANP, 2021).[1] A GNR Dois Arcos está localizada no aterro sanitário Dois Arcos (São Pedro da Aldeia), que atende a Região dos Lagos (530 mil habitantes) e possui uma capacidade de recebimento de resíduos sólidos urbanos (RSU) de 762 t/dia (DOIS ARCOS, 2021; GUERREIRO, 2020). A Gás Verde está localizada no Centro de Tratamento de Resíduos (CRT) Rio, em Seropédica, e recebe cerca de 10 mil toneladas de RSU por dia provenientes dos municípios do Rio de Janeiro, Seropédica, Itaguaí, Mangaratiba, São João de Meriti, Piraí e Miguel Pereira (CICLUS AMBIENTAL, 2021; GUERREIRO, 2020).
A capacidade instalada de produção de biogás da GNR Dois Arcos é de 35 mil m³/dia, o que resulta em uma produção máxima de biometano de 16 mil m³/dia (ANP, 2021; GUERREIRO, 2020). A Gás Verde possui uma capacidade instalada de produção de biogás de 450 mil m³/dia, equivalente a uma produção máxima de biometano de 204 mil m²/dia (ANP, 2021; GUERREIRO, 2020). Atualmente, nenhuma das duas instalações injetam o biometano na rede de distribuição de gás natural. Ambas escoam a produção através da compressão do biometano e o despache por caminhões (GUERREIRO, 2020). Toda a produção da GNR Dois Arcos é vendida a postos GNV localizados na Região dos Lagos, ao passo que a produção da Gás Verde é vendida a postos GNV e a consumidores industriais (por exemplo, a companhia siderúrgica Ternium) (GUERREIRO, 2020).
1.2. Potencial de produção de biometano no Rio de Janeiro
Segundo a ABIOGÁS (2020, 2021), o estado do Rio de Janeiro possui um potencial para produzir 1.230 mil m³/dia de biometano. Esse potencial se concentra nos RSU e no tratamento de esgoto, que representam um potencial de produção de 593 mil m³/dia. Isso é equivalente 2,7 vezes a atual capacidade instalada no Rio de Janeiro. A Figura 1 mostra que grande parte dos aterros sanitários e das estações de tratamento de esgoto está localizada próxima a gasodutos de distribuição de gás natural. Isso é um fator facilitador para a injeção de biometano na rede de distribuição.
Figura 1 – Malha de gasodutos do Rio de Janeiro e localização dos aterros sanitários e estações de tratamento de esgoto
Fonte: elaboração própria com dados de IBGE (2021), EPE (2021), SNIS (2021a, 2021b).
Os resíduos da pecuária apresentam uma produção potencial de 551 mil m³/dia de biometano (ABIOGÁS, 2020, 2021). A DataSebrae (2021) estima que 74% desse potencial está concentrado nos resíduos bovinos, 23% nos resíduos de aves e 3% nos resíduos de suínos. Provavelmente, esse potencial será aproveitado para autoconsumo uma vez que há predominância de pequenos e médios produtores. Além disso, parte considerável deste potencial encontra-se na região noroeste e norte fluminense (DATASEBRAE, 2021), afastada dos gasodutos de distribuição. Por fim, os resíduos sucroenergéticos e os resíduos agrícolas apresentam um baixo potencial para a produção de biometano, isto é, 79 mil e 8 mil m³/dia, respectivamente.
2. Regulação do biometano
2.1. Política Estadual de Gás Natural Renovável (biometano)
A Lei 6.361/2012 estabeleceu a Política Estadual de Gás Natural Renovável (RIO DE JANEIRO, 2012). O Decreto 44.855/2014, alterado pelo Decreto 46.476/2018, regulamenta a política (RIO DE JANEIRO, 2014, 2018). A Política Estadual de Gás Natural Renovável obriga as distribuidoras do estado do Rio de Janeiro (CEG e CEG Rio) a adquirir todo o biometano produzido no estado até o limite de 10% do volume gás natural distribuído, não incluindo o volume destinado ao mercado térmico.
Em 2020, a CEG distribuiu 3.919 mil m³/dia de gás natural para o mercado não-térmico (MME, 2021), o que significava que ela estava obrigada a adquirir todo o biometano fornecido até o limite de 392 mil m³/dia. Nesse mesmo ano, a CEG Rio distribuiu 2.192 mil m³/dia (MME, 2021), resultando numa obrigatoriedade de compra de 219 mil m³/dia de biometano. Portanto, a Política Estadual de Gás Natural Renovável obrigava as distribuidoras de gás natural a comprar um volume de biometano (611 mil m³/dia) maior do que o potencial estadual proveniente dos RSU e do tratamento de esgoto (593 mil m³/dia), que estão localizados próximos das redes de distribuição. Isso contrasta com a ausência, no estado, de projetos que injetem o biometano na rede de distribuição de gás natural.
O Decreto 46.476/2018 estabeleceu um preço máximo de R$ 1,20/m³ (preços de novembro de 2018 e sem impostos indiretos) para a venda do biometano às distribuidoras. Este preço é atualizado trimestralmente com base na variação do “Custo do Gás Demais” das tabelas tarifárias aprovadas pela Agência Reguladora de Energia e de Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (AGENERSA). Em maio de 2021, o preço máximo para aquisição do biometano era de R$ 1,4788/m³ para a CEG e R $ 1,4705/m³ para a CEG Rio (AGENERSA, 2018a, 2018b, 2021a, 2021b).
2.2. Diferencial de ICMS entre biometano e gás natural
O ICMS no estado do Rio de Janeiro favorece o gás natural em detrimento do biometano. O gás natural tem redução de ICMS no estado, onde sua alíquota é de 12%. Por outro lado, embora o estado do Rio de Janeiro faça parte do Convênio ICMS 112/2013 [2], que autoriza o estado a reduzir a carga tributária do ICMS sobre o biogás e biometano para a alíquota de 12% (CONFAZ, 2013), esse convênio ainda não foi incorporado à legislação estadual. Assim, a alíquota de ICMS incidente sobre o biometano é de 20% (RIO DE JANEIRO, 2020). [3]
3. Oportunidades de inserção do biometano no mercado de gás natural no Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro possui um mercado de gás natural bem desenvolvido em relação aos demais estados do Brasil. Ele possui uma demanda expressiva e uma rede de distribuição relativamente abrangente. Além da venda às distribuidoras através da injeção na rede, o biometano também pode ser vendido diretamente aos clientes finais. Os principais mercados de interesse são o automotivo e o industrial, pois apresentam condições de demanda firme.
O Rio de Janeiro se caracteriza por ser o maior consumidor de gás natural veicular (GNV) do Brasil (ABEGÁS, 2021). Ao final de 2020, o estado possuía cerca de 607 postos de combustíveis que operavam com GNV (38% do total do Brasil) que, ao longo de 2020, foram responsáveis por cerca de 2.792 mil m³/dia do gás natural consumido no Rio de Janeiro (ABEGÁS, 2021). O consumo industrial é ainda maior no estado (segundo maior setor consumidor do Rio de Janeiro), com um consumo, em 2020, de 3.525 mil m³/dia e uma gama de 346 clientes, que podem apresentar pequeno, médio e grande porte (ABEGÁS, 2021).
Embora o setor termelétrico seja o maior consumidor de gás natural do estado do Rio de Janeiro, ele apresenta uma demanda sazonal que complementa a oferta de hidroeletricidade, base do setor elétrico brasileiro. Além disso, o setor termelétrico é caracterizado por clientes de porte muito grande. Ao final de 2020, havia apenas 6 clientes termelétricos no estado, que representaram um consumo de 6.711 mil m³/dia (ABEGÁS, 2021). Os demais setores consumidores, como o residencial e comercial, apresentam escala de consumo muito reduzida. Em 2020, eles foram responsáveis por consumir apenas 499 mil m³/dia de gás natural (ABEGÁS, 2021).
Apesar das oportunidades de inserção do biometano no setor industrial e no setor de GNV, ele somente conseguirá acessar o mercado se o seu preço final (incluído a molécula, transporte e impostos indiretos) for igual ou inferior ao preço do gás natural vendido pela distribuidora nestes setores. O preço cobrado pela distribuidora inclui o preço da molécula, a tarifa de transporte, a margem de distribuição (regulada pela Agenersa) e os impostos indiretos. No entanto, quando desconsideramos os impostos indiretos (isto é, PIS/PASEP, COFINS e ICMS), o preço do biometano dever ser inferior ao preço do gás natural, uma vez que o ICMS no estado do Rio de Janeiro favorece o gás natural (12%) em detrimento do biometano (20%). Portanto, essa diferença tributária exige que o biometano seja mais competitivo do que o gás natural para que ele consiga acessar os mercados.
Dessa maneira, iremos definir o preço competitivo do biometano como sendo o preço da molécula mais do transporte do biometano que iguala o seu preço final ao preço do gás natural vendido pelas distribuidoras. Ou seja, o preço competitivo do biometano é o preço máximo que o biometano pode atingir (sem incluir os impostos indiretos) para que ele seja competitivo com o gás natural vendido pelas distribuidoras. O Gráfico 1 e o Gráfico 2 apresentam os preços do gás natural, sem os impostos indiretos, vendido pelas distribuidoras Ceg (Gráfico 1) e Ceg Rio (Gráfico 2) a diferentes clientes e os preços competitivos do biometano nesses mercados.
Gráfico 1 – Preço competitivo do biometano na área de concessão da CEG [4]
Fonte: elaboração própria com dados da AGENERSA (2021a).
Gráfico 2 – Preço competitivo do biometano na área de concessão da CEG Rio
Fonte: elaboração própria com dados da AGENERSA (2021b).
4. O desincentivo a injetar o biometano na rede de distribuição de gás natural
Como apresentado anteriormente, a legislação estipula um preço máximo (sem incluir os impostos indiretos) para aquisição do m³ de biometano pelas distribuidoras, onde para a Ceg esse preço é de R$ 1,4788 e para a Ceg Rio é de $ 1,4705 (valores para maio de 2021). O Gráfico 3 mostra a diferença do preço competitivo do biometano e o preço estipulado pela legislação vigente. Assim, esse gráfico mostra o limite do custo de transporte, em R$/m³, para que seja mais vantajoso vender o biometano para os clientes finais nos diferentes mercados do que diretamente para distribuidora, através da injeção na rede. Ou seja, sempre o custo de transporte, por m³, for inferior aos valores apresentados no Gráfico 3, será vantajoso vender para o cliente final e não para a distribuidora.
Gráfico 3 – Diferença entre o preço máximo do biometano nos diferentes mercados e o preço regulado
Fonte: Elaboração própria com dados da AGENERSA (2021a, 2021b) e RIO DE JANEIRO (2018).
No Rio de Janeiro, embora exista duas instalações de biometano muito próximos as redes de distribuição (vide Figura 1), elas não injetam o biometano na rede, mas sim realizam a venda da produção através da compressão do biometano (BioGNC) e o despache por caminhões. Isso indica que o transporte através do BioGNC apresenta um custo por m³ menor do que os valores apresentados no Gráfico 3. Isso significa que há um claro incentivo à venda aos clientes finais, ao invés das distribuidoras. Portanto, no Rio de Janeiro, o surgimento do mercado de biometano se deu principalmente pela própria competitividade das empresas. A obrigatoriedade de compra imposta às distribuidoras pela Política Estadual de Gás Natural Renovável pouco incentiva a criação de um mercado robusto de biometano no estado do Rio de Janeiro.
5. A sustentabilidade do biometano não é remunerada
Por fim, existe ainda um problema intrínseco a Política Estadual de Gás Natural Renovável. Isto é, o custo de aquisição do gás natural pelas distribuidoras no Rio, sem os impostos indiretos, (R$ 1,52 para a CEG e R$ 1,49 para a CEG Rio) é maior do que o preço máximo do biometano estipulado pela legislação (R$ 1,48 para a CEG e R$ 1,47 para a CEG Rio). Percebe-se que a regulação exige que o biometano seja mais competitivo que o próprio gás natural adquirido pela distribuidora. Portanto, o preço limite estipulado para o biometano não remunera a redução das externalidades negativas ocasionadas pelo consumo do biometano, energia limpa e renovável, em detrimento do consumo de gás natural fóssil.
6. Conclusão
Apesar do Rio de Janeiro possuir uma política específica para o biometano, estabelecendo inclusive um mandato de mistura obrigatório às distribuidoras, o efeito dela no incentivo à cadeia do biometano é nulo. Desde quando o estado começou a produzir o biometano, em 2015, até os dias atuais, não houve compra do biocombustível por parte das distribuidoras.
O motivo para não haver a injeção de biometano na rede é que, acompanhando o mandato de mistura, a regulação também estabeleceu um preço limite para a venda do biometano comercializado com as distribuidoras. Quando comparado com o preço que o biometano pode atingir com a venda direta ao mercado automotivo e ao mercado industrial, esse limite se mostra muito baixo, de forma que é preferível vender diretamente ao consumidor final do que vender o biometano para as distribuidoras.
Na verdade, pode-se dizer que o estado possui uma política de incentivo às avessas pois, além do mandato não ser eficiente, no estado ainda há uma penalização ao consumo do biometano pois este possui uma alíquota de ICMS superior à alíquota cobrada ao gás natural.
Mesmo com desincentivo, o estado do Rio é, atualmente, o maior estado produtor de biometano. Ele alcançou esse status não graças à política do governo estadual, mas sim, graças à própria competitividade do biometano construída pelas empresas que atuam no estado. Porém, há ainda um potencial a ser explorado que pode gerar benefícios econômicos e ambientais para o estado. Assim, torna-se imprescindível uma rápida revisão da atual política do biometano no estado.
Notas
[1] A terceira instalação autorizada pela ANP é a GNR Fortaleza (Ecometano).
[2] O estado do Rio de Janeiro foi incluído no Convênio ICMS 112/2013 através do Convênio ICMS 24/2016 (CONFAZ, 2016).
[3] Incluído o adicional de 2% relativo ao Fundo Estadual de Combate
à Pobreza e às Desigualdades Sociais (FECP).
[4] Pequeno porte: consumo de 5 mil m³/mês
Médio porte: consumo de 20 mil m³/mês
Grande porte: consumo de 100 mil m³/mês
Referências
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Sugestão de citação: Soares, G. A; Rocha, F. F. (2021). Incentivo às avessas ao biometano no Rio de Janeiro. Ensaio Energético, 17 de maio, 2021.
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutorando em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da UFRJ. É consultor na Prysma E&T Consultores atuando no mercado de gás natural e de biocombustíveis no Brasil.
Felipe Freitas da Rocha
Autor do Ensaio Energético. Formado em Economia, mestre e doutor em Economia pela UFRJ. Pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio e consultor na Prysma E&T Consultores.