Ensaio Energético

Estocagem subterrânea de gás natural e perspectiva no mundo carbono neutro

Introdução

A estocagem subterrânea de gás natural (ESGN) é uma infraestrutura muito comum em mercados maduros de gás natural, com papel importante na segurança energética desses países devido sua capacidade de armazena o energético para suprimento da demanda durante o inverno. As estruturas geológicas mais comumente utilizadas para ESGN são: campos de óleo e gás depletados, aquíferos e cavernas de sal. Os dois primeiros costumam ter uma maior capacidade de armazenar gás natural, porém contam com taxa de injeção e retirada limitadas, sendo utilizadas mais comumente como estocagens de perfil sazonal. Por outro lado, as cavernas de sal possuem uma capacidade menor para armazenamento, mas são capazes de fornecer uma taxa de injeção e retirada elevadas, sendo utilizadas mais comumente para balanceamento de curto prazo do sistema.

No Brasil, ainda não existe infraestrutura de ESGN, mas diversos players estão desenvolvendo esse modelo de negócio que tem alta demanda no contexto de abertura de mercado. Por esse motivo, torna-se relevante a análise desses investimentos tendo em vista o contexto de transição energética, pois o investimento em ESGN requer maturação de longo prazo, com prazos de amortização entre 20 e 30 anos. Apesar do potencial risco de se tornar um “stranded asset”, o investimento em ESGN é essencial para o mercado de gás no curto e médio prazo. E no longo prazo?

O gás natural é um combustível que tem um papel relevante no processo de transição energética. A necessidade de tal transição se deve aos impactos nocivos que a emissão dos Gases de Efeito Estufa (GEE) tem no meio ambiente, o principal destes, relacionado ao aumento da temperatura média do planeta que pode ter efeitos catastróficos ambientais, econômicos e sociais que serão sentidos com cada vez mais intensidade nos próximos anos. Atualmente, é consenso entre a comunidade científica a necessidade de zerar as emissões líquidas até 2050, limitando o mencionado aumento da temperatura, sendo a meta atual o “well below two degrees” – ou bem abaixo dos 2°C de aumento médio.

As discussões giram em torno de qual é o melhor jeito de atingir essa meta, minimizando o impacto na economia dos países. O gás natural é um hidrocarboneto, cuja queima gera emissão de GEE, embora sua emissão seja menor do que outros combustíveis fósseis como o petróleo e o carvão. Ademais, tem a capacidade de ser complementar à intermitência do setor elétrico com crescente participação das renováveis. Essas duas contribuições estão relacionadas às medidas de curto prazo que tem impacto imediato na redução de emissões de GEE, através da substituição de fontes mais poluentes na geração de energia elétrica e nos processos industriais.

Por outro lado, a longo prazo, o gás e, mais importante, as infraestruturas de rede relacionadas ao gás natural terão um papel chave pra viabilizar algumas tecnologias de baixo carbono atualmente em desenvolvimento. As principais estão relacionadas a captura e armazenamento de carbono (CCS), hidrogênio, biometano e metano sintético. Essas quatro vias tecnológicas precisarão de soluções de transporte e armazenamento, que tem forte sinergia com as soluções já existentes no mercado de gás.

A subseção seguinte irá tratar da importância da ESGN no mercado de gás brasileiro, especialmente dado o contexto de abertura de mercado, no qual são necessárias soluções de flexibilidade para permitir que novos players entrem no mercado e consigam gerir seus portfolios.

Na última subseção serão apresentadas as tecnologias essenciais para redução das emissões de carbono do setor energético: biometano, CCUS, hidrogênio e metano sintético. Para cada uma dessas soluções serão apresentados os conceitos básicos sobre a tecnologia e sobre o funcionamento dos mercados. Além disso serão apresentados os desafios e oportunidades de aproveitamento da infraestrutura de estocagem subterrânea de gás natural para cada uma dessas atividades.

 

Importância da ESGN no Brasil a curto e médio prazo

Contexto de abertura de mercado

O mercado de gás natural no Brasil se desenvolveu tendo a Petrobras como fornecedora, investidora e consumidora. A empresa possuiu uma função central no mercado incipiente, ao assumir os riscos dos vultuosos investimentos em infraestrutura. Dado que a Petrobras detinha o controle da infraestrutura e das fontes de suprimento, as demandas por flexibilidade do mercado eram integralmente solucionadas pela empresa, através da administração de seu portfólio de suprimento e utilização de modelos econômicos e operacionais para otimizar o fluxo de gás no sistema (Prade, 2020).

Desde 2016, o mercado de gás natural no Brasil vem experimentando profundas mudanças estruturais, em consequência dos desinvestimentos planejados e efetuados pela Petrobras nos ativos de distribuição, transporte e de importação de gás natural. Como consequência, os planos da Petrobras desencadearam diversas discussões acerca das necessidades de ajuste regulatórios que se deram no âmbito da iniciativa “Gás para Crescer” iniciada em 2016 e coordenada pelo Ministério de Minas e Energia (MME), em conjunto com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Além de diagnosticar os problemas relativos à posição dominante da Petrobras ao longo da cadeia, a iniciativa propôs uma mudança legislativa, que culminou no estabelecimento de uma Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134/2021), que incentivaria a concorrência no mercado.

O processo de liberalização ainda está em curso e nem todas questões regulatórias foram solucionadas, aguardando a evolução da agenda da ANP.

Mesmo sem todo arcabouço regulatório estruturado, o mercado já vem apresentando indícios de evolução. Com o compromisso assumido pela Petrobras com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em que a estatal não mais compraria gás natural dos seus parceiros produtores, estes se viram obrigados a oferecer sua molécula no mercado. Em outra frente paralela, com os desinvestimentos da Petrobras de ativos de óleo e gás onshore, novas companhias assumiram o fornecimento de gás direto ao cliente, principalmente na Região Nordeste.

A partir de 2022, começou a primeira grande onda de abertura do mercado com a assinatura dos primeiros contratos entre distribuidoras e produtores de gás associado offshore (Shell, Galp, Equinor) e primeiros contratos de transporte do novo modelo regulatório de entrada e saída. De acordo com MME (2022), até 2021 o único player que comercializava gás na malha integrada de gás natural era a Petrobras, já ao fim de 2022 eram 10 novos ofertantes com market share de aproximadamente 20%.

Nesse contexto, surgem novos desafios para a inserção desses novos players no mercado. Soluções que antes eram ajustadas dentro do portfólio da Petrobras, agora precisam ser solucionadas pelos agentes de forma independente. A próximo subseção apresenta o problema da flexibilidade no mercado de gás brasileiro.

 

Necessidade de flexibilidade no mercado de gás brasileiro

A redução da presença da Petrobras no mercado de gás brasileiro trouxe uma nova perspectiva, na qual se vislumbra uma transição da estrutura monopolista para uma estrutura de maior concorrência. A Petrobras, como monopolista de facto do mercado de gás natural, assumiu o risco de suprimento do mercado, ao realizar as escolhas de importação e/ou produção para atender a demanda, porém repassando o risco do preço aos consumidores. Além disso, a empresa sempre foi capaz de fornecer flexibilidade ao sistema, por centralizar a operação, as entradas e saídas de gás do mercado. A Petrobras tem instrumentos de flexibilidade em seu portfólio, tanto pelo lado da oferta (compras de GNL spot, produção em campos de gás não associados ao petróleo), como da demanda (nas suas refinarias, fábricas de fertilizantes e termelétricas).

Com as mudanças estruturais no mercado de gás brasileiro, a estratégia de aquisição de gás natural deixa de estar centralizada na estatal e passa a ser um desafio para os consumidores e distribuidoras de gás natural. O desafio está no gerenciamento do portfólio de gás tendo como vetor a flexibilidade exigida pelo segmento elétrico e o novo leque de possibilidades contratuais, incluindo o mercado internacional de GNL. Ademais, o risco de suprimento que vinha sendo administrado pela Petrobras passa a ser uma responsabilidade dos próprios consumidores ou distribuidora (ou mesmo supridores), que devem buscar as condições que mantenham a oferta de gás em níveis seguros e minimize o risco de volume associado a cláusulas de take-or-pay.

A necessidade de flexibilidade no mercado de gás natural brasileiro se dá pelos diferentes perfis do lado da demanda e oferta. A demanda de gás tem dois componentes no Brasil: a demanda firme, que precisa de garantia de fornecimento constante; e a demanda do setor elétrico, que necessita de disponibilidade de fornecimento de gás quando os reservatórios de água estão baixos. Pelo lado da oferta, temos a produção doméstica que é em sua maioria associada ao petróleo e importação de GNL, principalmente relacionada ao despacho termelétrico.

O setor elétrico é o segundo segmento com maior consumo de gás natural do Brasil, representando 46% do consumo total em 2021 (MME, 2023). Sua demanda tem alta variabilidade, conforme pode ser visualizado no Gráfico 1. A razão para essa variabilidade tão significativa está no modelo adotado para o setor elétrico brasileiro. O Brasil adota um sistema hidro-térmico, no qual as térmicas a gás natural são utilizadas como backup do sistema hídrico. De acordo com Prade (2020), as oscilações da demanda termelétrica por gás natural tem dois componentes: (i) um componente sazonal, devido as variações estações secas e úmidas que afetam a geração hidrelétrica; e (ii) um componente aleatório, advindo da possibilidade de secas extremas imprevisíveis, que não

permitem recuperação regular dos reservatórios para a geração hidrelétrica. Portanto, a demanda de gás para a geração elétrica depende das condições dos reservatórios hídricos.

Ademais, um novo formato de leilão foi lançado a partir de 2021, o Leilão de Reserva de Capacidade que incentiva o uso das térmicas a gás como fonte de flexibilidade para o setor elétrico, com disponibilidade para despacho no curtíssimo prazo.

 

Gráfico 1 – Demanda de gás natural por tipo de setor

Fonte: Elaboração própria com dados MME (2023).

 

A produção de gás no Brasil é principalmente associada a produção de petróleo, aproximadamente 90% da produção total (MME, 2023). Isso significa que o gás é subproduto do petróleo e que a lógica de produção e objetivos da operadora é de retirar a maior quantidade possível de petróleo ao longo do período de produção. A produção de gás nesse caso é necessária para aumentar a produção do petróleo. Essa condição implica que o gás associado exige que sempre haja mercado para absorvê-lo de forma a não prejudicar a produção de petróleo. Além de não fornecer nenhum grau de flexibilidade ao mercado, o gás associado não é firme: um único produtor não pode garantir um fornecimento estável de gás, uma vez que a curva de produção varia muito diariamente, tanto para cima como para baixo.

O desenvolvimento de infraestruturas que forneçam flexibilidade ao mercado de gás natural no Brasil é essencial para sua evolução. O país não possui ainda a estocagem subterrânea de gás natural, que é bastante comum para acomodar variações do fluxo de gás em sistemas maduros. Ademais, é utilizada para garantir o fornecimento de gás nos períodos de maior demanda nos períodos de inverno, assegurando energia para atendimento sazonal.

A ESGN é primordial para incentivar a abertura do mercado de gás no Brasil, criando opcionalidades de negócios e garantindo a segurança energética. Os produtores de gás associado, por exemplo, normalmente não tem um portfólio amplo para acomodar variações diárias, e soluções de estocagem se tornam essenciais para gerir sua produção. Nos momentos em que há pico de produção, estes podem direcionar o volume excedente para a estocagem e retirá-lo nos momentos em que há uma redução inesperada da produção ou quando surgir alguma boa oportunidade de venda. Dessa forma, o produtor é capaz de fornecer um contrato firme com algum grau de flexibilidade agregando valor ao portfólio do cliente.

Por outro lado, consumidores, distribuidoras ou comercializadores podem usar a estocagem para gerir seu portfólio e aproveitar oportunidades de compras de gás menos flexível ou spot, com preço reduzido, direcionar à estocagem e retirar quando for consumir ou revender a outro cliente.

 

A ESGN no futuro: vias de ressignificação da infraestrutura

Na seção anterior foram apresentados todos os valores que a estocagem de gás subterrânea pode trazer para o mercado de gás brasileiro, como o balanceamento entre produção e consumo,  flexibilidade e liquidez pro sistema. Neste capítulo serão abordados a perspectiva de conversão de uma estocagem de gás natural subterrânea para armazenar cada um destes gases: (1) biometano, (2) metano sintético, (3) hidrogênio e (4) CO2. Ademais, serão apresentados os desafios para cada tipo de estocagem: a) aquíferos/campos depletados e b) cavernas de sal.

 

Biometano

“O Biogás consiste em uma mistura de metano, CO2 e outros gases em menor quantidade, obtido através de digestão anaeróbica de componentes orgânicos. Sua composição exata podendo variar a depender do tipo de matéria prima e do método de produção” (IEA, 2020). O biometano é obtido através de um processo de upgrade no qual é removido o CO2 e as demais impurezas, resultando em metano em estado praticamente puro (IEA 2020).

Entre as duas principais fontes de biometano, temos aquele obtido de biogás de aterros sanitários, e  biometano resultado do upgrade de biogás de resíduos agrícolas. O Brasil, por ser um dos maiores produtores de produtos agrícolas do planeta, naturalmente possui um potencial para elevada produção do biometano. Segundo um estudo da EPE de 2023, o potencial de produção de biometano para 2024 no setor sucroenergético é de aproximadamente 14 milhões de m³/dia. Mas no mesmo ano, a capacidade instalada de produção do biometano considerando todas as fontes, era de apenas 411 mil m³/dia (EPE, 2023).

A princípio, as plantas de biometano de resíduos urbanos tem mais facilidade de se viabilizar, porém com uma produção em menor escala, faz mais sentido econômico a venda destes volumes diretamente para as distribuidoras locais. O maior potencial de produção do biometano em termos de volume está no upgrade do biogás agrícola. Mas essa produção se concentra principalmente no interior do país, distante dos centros consumidores. Como a malha de gasodutos no Brasil se concentra no litoral do país, o desafio está em conectar este potencial de oferta à demanda.

Além do desafio relacionado ao desenvolvimento de infraestrutura de transporte, existe também uma dificuldade adicional relacionada à sazonalidade das safras. O biometano proveniente da produção agrícola acaba se tornando também sazonal, com venda apenas durante um período do ano. Ademais, a produção fica exposta a intempéries climáticas e riscos de contaminação por pragas, que pode reduzir a expectativa de disponibilidade em alguns momentos (Soares, 2020).

Nas condições atuais do mercado de gás interconectado, em que não há liquidez, a oferta de um produto com esse perfil tem dificuldade de encontrar demanda. Se a solução for dedicar a um cliente específico via GNC, por exemplo, o cliente fica excessivamente exposto ao risco de suprimento. Dessa forma, é essencial que o biometano tenha acesso a estocagem de gás natural para lidar com a sazonalidade.

É possível injetar biometano em uma estocagem subterrânea de gás natural, uma vez que sua composição é a mesma da molécula de gás natural comum. Dois fatores devem ser levados em consideração: (i) os compostos residuais do gás; e (ii) os níveis de oxigênio na molécula (Marcogaz, 2022).  Segundo estudo técnico realizado em 2018 pelo British Standards Institution, os contaminantes presentes no biometano estão bastante abaixo dos limites estabelecidos. Estudos adicionais, com biometano de diferentes origens, precisam ser realizados para confirmação dos resultados, mas este não parece ser um grande desafio, de acordo com os autores. (Marcogaz 2022).

No entanto, o maior desafio está relacionado ao nível de oxigênio de biometano. O gás natural possui nível de oxigênio irrisório em sua composição naturalmente: o gás natural que circula em uma rede de transporte usual costuma ter concentração de oxigênio inferior a 1 ppm. Por outro lado, a molécula do biometano contém normalmente 3000 ppm de oxigênio, em alguns casos o valor pode chegar a 4500ppm. A presença de oxigênio é oriunda do processo de desulfurização: para remover o H2S resultante do processo de fermentação, oxigênio é inserido no fermentador para que aconteça a precipitação do enxofre. A presença de oxigênio no biometano é um desafio a integridade principalmente em contato com o gás úmido, o que não ocorre na rede de gasodutos de transporte e distribuição mas é uma preocupação relevante no caso do armazenamento subterrâneo (Marcogaz 2022).

Entre os principais riscos da presença de oxigênio em estocagens subterrânea estão:  corrosão de equipamentos, precipitação de enxofre, impacto no ecossistema de aquíferos e campos depletados devido a existência de bactérias anaeróbicas e degradação do glycol, composto utilizado nas unidades de desidratação do gás e necessário para que o gás retorne as especificações aceitáveis para entrada na rede de transporte (Marcogaz, 2022). A questão do oxigênio é um desafio que pode ser solucionado de duas formas: se o biometano for armazenado conjuntamente com a molécula de gás tradicional, sua concentração deve ser reduzida. É importante assegurar que os níveis de oxigênio se mantenham abaixo de 10 ppm (Marcogaz 2022). Outra opção é a remoção do oxigênio do  antes da injeção do biometano na estocagem. Essa remoção pode acontecer, na planta de upgrade, no ponto de entrada na rede de transporte, ou na interconexão com a estocagem (Marcogaz 2022). Vencido o obstáculo da concentração de oxigênio, o biometano pode ser armazenado conjuntamente com o gás natural ou isoladamente e produtores de biometano se tornam potenciais clientes da estocagem.

 

Armazenamento de CO2

A captura e armazenamento de carbono (CCS) é uma das tecnologias consideradas chave para atingimento das metas globais de neutralidade das emissões líquidas de carbono até 2050. O processo consiste em capturar o carbono diretamente do ar (DACCS), ou de uma fonte emissora, transportar esse carbono armazenado via gasoduto, navio ou mesmo via caminhão até uma formação geológica, onde o carbono é permanentemente armazenado. O CCUS é uma variação desse processo, onde parte ou todo o carbono capturado pode ser utilizado como insumo para algum processo, como a produção do metano sintético por exemplo.

O CCUS é considerada uma tecnologia chave para atingimento  das metas de redução de CO2. A IEA considera a captura de 7,6 Gtpa CO2 em 2050, em seu cenário de emissões líquidas zero para 2050 (IEA 2021). Esse volume de captura representa um aumento de 31 vezes em comparação com o volume de 243 Mtpa, que é a capacidade nominal de todos os projetos de CCUS operacionais e em desenvolvimento no ano de 2022 (Global CCS Institute, 2023).

Dentre os setores industriais com maior potencial para se beneficiar do CCUS temos a siderurgia, produção de cimento e a produção de fertilizantes. A geração termoelétrica e o processamento de gás natural também são processos onde é possível se capturar o carbono a um custo relativamente baixo por tonelada. No Brasil, existe alto potencial da produção de bioenergia, especialmente a base de etanol com armazenamento de carbono (BECCS). Um processo que resulta em emissões líquidas negativas, com baixo custo de captura por tonelada. O Marco regulatório para a atividade de captura e armazenamento de dióxido de carbono, o PL 1425/22 foi aprovado no senado e se encontra em etapas finais de aprovação na câmara dos deputados (Câmara dos Deputados, 2023).

Será necessário ainda a aprovação de uma precificação do carbono que crie os incentivos necessários para viabilizar mais projetos de CCUS. Existem atualmente apenas dois projetos de CCUS no país. O primeiro, já em fase operacional, é um projeto da Petrobras na Bacia de Campos, no qual o carbono é injetado para recuperação secundária de óleo, aumentando o nível de produção. Existe também um projeto de BECCS, da empresa produtora de etanol FS, a empresa produz etanol 100% do milho e o projeto em fase de estudos de viabilidade prevê a capacidade de captura de 432 mil ton/ano de CO2 (Canal Rural, 2023). Ambos são projetos verticalizados, onde a empresa que realiza a atividade industrial é a mesma responsável pela captura, transporte e armazenamento do CO2. Com o crescimento da atividade de CCUS é esperado a disseminação do modelo de CCUS as a service, onde um operador poderá oferecer solução de captura, transporte e armazenamento para terceiros, criando um hub de carbono, o que gera ganhos de escala, necessários para viabilizar gasodutos e estocagens subterrâneas de grande porte para o carbono.

A estocagem subterrânea de carbono pode ser realizada nas mesmas estruturas geológicas utilizadas para armazenamento de gás natural. As linhas de injeção e retiradas devem ser diferentes, uma vez que dutos que transportam CH4 não podem ser utilizados para o transporte seguro do CO2. É possível criar uma estocagem de carbono permanente, onde o carbono absorvido das fontes emissoras será injetado continuamente para que fique isolado da atmosfera. Também é viável a criação de estocagem de carbono temporária, utilizando cavernas de sal. O objetivo desta última é estocar o carbono para que possa ser posteriormente retirado e utilizado como insumo em algum processo industrial, como a produção de metano sintético por exemplo. Um empreendimento de estocagem subterrânea de gás natural pode ser convertido para estocagem de CO2, em uma etapa posterior, caso as condições de mercado tornem essa atividade mais atrativa. Também pode ser possível utilizar o CO2 como gás de colchão para uma estocagem subterrânea de hidrogênio, biometano ou gás natural (Al Shafi, M. et al 2022).

 

Hidrogênio

O hidrogênio é uma molécula amplamente utilizada hoje em processos industriais, como na indústria de fertilizantes e na produção de metano sintético. A rota mais comum de produção do energético é o hidrogênio cinza, obtido a partir da reforma do gás natural. Quando se fala do papel do hidrogênio na redução das emissões de GEE, se fala da produção da molécula por vias neutras em emissões líquidas de CO2. As duas rotas limpas mais amplamente discutidas e com mais projetos em andamento são: a do hidrogênio verde, obtido através da eletrólise da água utilizando eletricidade de fontes renováveis; e a do hidrogênio azul, obtida através da reforma do gás natural com a tecnologia de captura de carbono. Menos de 1% dos 95 Mt de hidrogênio produzidos no mundo em 2022 é proveniente de rotas neutras em emissões, sendo 0,5% de hidrogênio azul (CCUS) e apenas 0,1% produzido através de eletrólise. Se todos os projetos de hidrogênio limpo anunciados com início de operação até 2030 entrarem de fato em operação, a capacidade de produção de hidrogênio renovável será de 20 Mt/ano. O hidrogênio renovável é uma potencial solução para descarbonização de setores industriais de difícil abatimento como o refino, siderurgia, indústria de cimento. O hidrogênio também pode ser uma solução para descarbonização do setor de transporte (IEA 2023).

 

Gráfico 2: Produção de hidrogênio global por fonte entre 2020 e 2022

Fonte: IEA (2023).

 

Alguns desafios precisam ser superados para que o hidrogênio renovável ganhe tração e seja produzido em larga escala, entre eles: a disponibilidade de energia renovável de baixo custo, o custo e disponibilidade de eletrolisadores e o desafio logístico de transporte do energético. O Brasil, por ter alta disponibilidade de água e energia renovável, é um potencial candidato para se tornar um produtor e exportador relevante de hidrogênio verde, podendo abastecer a demanda doméstica e de mercados externos, como o Europeu. É estimado que o custo de produção do hidrogênio verde  no país em 2030 pode ser inferior a 2 USD/kg de H2 no Nordeste do país (IEA 2023). O governo brasileiro promoveu a criação de um programa nacional do hidrogênio em 2023. Dentre as iniciativas dos governos estaduais, vale ressaltar a criação do hub de hidrogênio verde no complexo do Pecém, que prevê incentivos fiscais em um porto com amplo acesso a energia renovável e localização ideal para exportação.  Apesar destas iniciativas, ainda não existe nenhum projeto de hidrogênio verde no país com decisão de investimento tomada.

Para o surgimento de um mercado de hidrogênio de larga escala, o armazenamento subterrâneo será crucial. Irá cumprir as mesmas funções de uma estocagem subterrânea de gás natural: fornecer a flexibilidade para o balanceamento entre oferta e demanda. Mas esse papel será ainda mais importante no caso do hidrogênio, pois o gás natural possui outros instrumentos de flexibilidade, entre as quais estão: liquefação ou compressão do gás para posterior armazenamento, liquidez no mercado, compra de molécula flexível. Por ter uma densidade energética bem menor (24% do gás natural à 100 bar) e uma temperatura de liquefação muito mais baixa (-253°C à 100 bar x -160°C do gás natural), a liquefação e estocagem em tanques não serão opções viáveis, o que reforça a centralidade do armazenamento subterrâneo como ferramenta de flexibilidade para o hidrogênio (GIE 2021).

É possível armazenar o hidrogênio em formações geológicas subterrâneas conjuntamente com o gás natural aproveitando a infraestrutura existente. Ou a estocagem subterrânea pode ser reformada para armazenar hidrogênio puro. Já existem casos bem sucedidos de estocagem subterrânea de hidrogênio em cavernas de sal no Reino Unido, que é usado para produção de amônia e metanol e no estado do Texas (EUA), onde o H2 é utilizado na indústria petroquímica (GIE 2021). Não existe ainda um caso de estocagem de hidrogênio puro em campos depletados e aquíferos, mas um projeto piloto na Áustria, a Underground Sun Storage, conseguiu armazenar um blend de 10% hidrogênio e 90% metano (GIE 2021). Muitas empresas estão avaliando a estocagem subterrânea de hidrogênio em tais campos. E os estudos até agora confirmam o potencial de utilização destas estruturas para armazenamento do hidrogênio. Um investidor que deseje investir em armazenamento subterrâneo de gás hoje, tem no hidrogênio uma possibilidade de mercado, seja puro, seja blend, para expandir seu portfólio de clientes e extrair valor do investimento por um horizonte temporal maior.

 

Metano Sintético

O Metano sintético ou e-methane, é um combustível sintético renovável, cuja produção se dá através de uma mistura de hidrogênio renovável e CO2.  Resultando em produção do CH4. A queima do metano sintético resulta em emissão de carbono assim como o metano tradicional (gás natural). No entanto caso o carbono seja capturado diretamente do ar (DACCS) ou seja criado um loop fechado de captura e queima do CO2, é possível ter um processo neutro em emissões de CO2.

Outra opção é utilizar o processo de metanação, isto é a produção do metano sintético em conjunto com o processo de metanização, que é o processo de produção de biometano. Ao absorver o CO2 liberado no processo de upgrade do biogás para o biometano e utilizar para a produção de carbono sintético, o processo total se torna neutro em emissões (Terega 2024).

 

Gráfico 3: Cadeia de produção de biometano e metano sintético

Fonte: Terega (2024).

 

A tecnologia ainda está em fase de desenvolvimento e o custo de produção de molécula de metano sintético ainda é bem elevado. Um dos problemas é o fato do metano sintético ser produzido em duas etapas o que gera perda de eficiência no processo. Pesquisadores da Tokyo Gas em conjunto com a JAXA (Agência de exploração aeroespecial Japonesa) e a universidade de Osaka estão desenvolvendo métodos alternativos de produção de metano sintético. O objetivo é transformar as duas etapas em uma etapa única, em que a eletrólise da água e a redução do carbono acontecem simultaneamente, reduzindo custos e aumentando a eficiência do processo (Tokyo Gas, 2024).

Apesar dos desafios tecnológicos, o Brasil tem potencial para produção competitiva de metano sintético, uma vez que possui plantas de etanol, que são uma fonte onde o CO2 pode ser capturado a um baixo custo e potencial para produção de H2 verde barato.  O metano sintético, sendo virtualmente idêntico ao gás natural, pode ser injetado em estocagens subterrâneas de gás sem a necessidade de nenhum tipo de adaptação e utilizando as mesmas linhas e poços. Um site de estocagem poderia estocar ao mesmo tempo H2 em uma sessão do reservatório, CO2 em outra e o metano sintético, produzido a partir dos dois em uma terceira. O gás poderia ser armazenado junto com molécula de biometano e gás natural fóssil tradicional.

 

Conclusões

O gás natural, como combustível fóssil com menor pegada de carbono, tem um papel central nesse caminho até o mundo descarbonizado, convertendo o consumo de alguns energéticos em setores hard to abate, e fornecendo flexibilidade para o setor elétrico com crescente participação da intermitência da geração renovável. Ademais, as infraestruturas de gás podem ter um papel relevante também no desenvolvimento das novas energias, tanto para seu transporte como para armazenamento. Especificamente, a Estocagem Subterrânea de Gás Natural tem papel importante no fornecimento de flexibilidade para o setor de gás.

O mercado de gás natural no Brasil está vivendo seu momento de abertura, com o crescimento da participação de agentes e investimentos em novas infraestruturas. Nesse contexto, se torna relevante o questionamento sobre o futuro dessas novas infraestruturas com longo tempo de maturação.

O artigo se propôs a analisar o potencial de conversão das infraestruturas de ESGN para as novas energias do mundo com baixa emissão de carbono. Dessa forma, foi consultada a literatura acerca do assunto, relacionado a 4 recursos específicos: biometano, CCUS, hidrogênio e metano sintético. Por ora, a ESGN apresenta maior potencial técnico para o armazenamento do metano sintético e do biometano, gases que podem ser armazenados concomitantemente com o gás natural, utilizando inclusive a mesma infraestrutura de dutos. É possível adaptar a ESGN para armazenamento de H2 ou CO2, mas para tanto é necessário um maior investimento para adaptar o reservatório para receber esses gases. Em todos os casos, é necessário o amadurecimento de cada um destes mercados e o barateamento dos custos associados.

É importante que o setor energético evolua nos testes e análises sobre a viabilidade técnica e que adaptações são necessárias para utilização das infraestruturas atuais de gás para as novas energias. Mas também é de extrema relevância a criação de políticas voltadas para incentivar o desenvolvimento tecnológico e voltado para utilização de infraestrutura existente, visando otimizar custos da transição energética.

 

Referências

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Câmara dos Deputados (2023). Comissão aprova marco legal das atividades de captura e armazenamento de carbono – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br).

Complexo do Pecém. https://www.complexodopecem.com.br/hubh2v/

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MME (2022). Acompanhamento da Abertura do Mercado de Gás Natural. Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural Número 14 – 4º Trimestre de 2022. Disponível em: 14RelatrioTrimestralCMGN4T2022.pdf (www.gov.br).

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA – MME (2023). Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural, setembro 2023. Disponível em: 09 – Boletim de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural – Setembro de 2023.pdf — Ministério de Minas e Energia (www.gov.br).

PRADE, Y. C. (2020). A flexibilidade do mercado de gás: uma análise contratual do caso brasileiro e do mercado internacional de GNL. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia, Programa de Pós-Graduação em Economia da Indústria e da Tecnologia, Rio de Janeiro, 2020.

Soares, G. A. (2020). O desafio da flexibilização na bioeconomia. Ensaio Energético, 13 de outubro, 2020. O desafio da flexibilização na bioeconomia – Ensaio Energético (ensaioenergetico.com.br).

Terega (2024). https://www.terega.fr/en/gas-future/new-gases-and-sustainable-processes/synthetic-methane-terega-working-today-for-the-future-of-gas.

Nature Portfolio. Tokyo Gas (2024). Synthetic methane could smooth the path to net zero.

 

Sugestão de citação: Oliveira, L. & Prade, Y. C. (2024). Estocagem de gás natural subterrânea e perspectiva no mundo carbono neutro. Ensaio Energético, 21 de outubro, 2024.

Lucas Oliveira

Bacharel em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Trabalha na Transportadora Associada de Gás (TAG) desde 2021, atualmente na área de Inteligência de Mercado e Novos Negócios.

Editora-chefe do Ensaio Energético. Formada em Economia pelo IBMEC-RJ, mestre e doutora em Economia Industrial pela UFRJ, com doutorado sanduíche em Oxford Institute for Energy Studies.

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Vinícius Quintão
Vinícius Quintão
5 meses atrás

Prezados, tudo bem?
Contribuindo para o artigo para os autores avaliarem uma correção: a empresa FS em Mato Grosso tem previsão de capturar e estocar até 423 mil toneladas de CO2 anualmente após a conclusão do projeto.
Não será 432 ton/ano como está no artigo.

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