Ensaio Energético

Eletrificação e os Desafios da Transformação da Indústria Automobilística no Brasil

Introdução

O setor de transportes no Brasil é um dos principais responsáveis pelas emissões de dióxido de carbono (CO₂), representando 44% do total de emissões associadas à matriz energética em 2021. Esse panorama coloca o transporte como um dos focos centrais para a redução de emissões e a transição para alternativas mais sustentáveis.

 

Gráfico 1 – Participação por setor no total de emissões de CO₂ antrópicas associadas à matriz energética em 2021

Nota: *Inclui os setores agropecuário, serviços, energético, elétrico e as emissões fugitivas

Fonte: EPE (2022)

 

A eletrificação da frota de veículos aparece como uma solução promissora, especialmente em um país com uma matriz elétrica predominantemente renovável, onde 61,9% da eletricidade é gerada por hidrelétricas, complementada por fontes como a energia eólica e solar.

 

Gráfico 2 – Matriz elétrica brasileira de 2022

Fonte: BEN (2023)

 

Diante desse cenário adoção de veículos elétricos (VEs) se destaca como uma oportunidade para reduzir as emissões no setor de transportes. Com o aumento das preocupações com as mudanças climáticas, os VEs estão impulsionando uma transição para um sistema de mobilidade com menor pegada de carbono.

 

Estratégias de Redução de Emissões

O Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (AR6) de 2022 apresenta estratégias para reduzir as emissões no setor de transportes agrupadas em três categorias principais: evitar, mudar e melhorar. A estratégia de “evitar” foca em reduzir a necessidade total de viagens de veículos. Isso pode ser alcançado promovendo comunidades mais compactas e planejamentos urbanos que diminuam as distâncias percorridas. Além disso, políticas de gestão da demanda e precificação são essenciais para incentivar o uso eficiente do transporte, reduzindo assim a dependência de deslocamentos e, consequentemente, as emissões associadas. O pilar “mudar” busca transferir viagens de modos de transporte de alta emissão para modos de baixa emissão. Isso inclui o planejamento multimodal, melhorias no transporte ativo (como caminhada e ciclismo) e no transporte público. A promoção de veículos de alta ocupação e o desenvolvimento de soluções como Mobilidade como um Serviço (MaaS), que integra diferentes modos de transporte e sistemas de pagamento, são elementos chave nessa estratégia (IPCC, 2022).

Finalmente, o pilar “melhorar” visa aumentar a eficiência dos veículos, reduzindo as emissões por quilômetro percorrido. Isso inclui o incentivo ao uso de veículos híbridos e elétricos, combustíveis mais limpos, a implementação de programas de sucateamento de veículos de alta emissão (IPCC, 2022).

 

O Movimento de Eletrificação no Brasil

No Brasil, o licenciamento total de automóveis e comerciais leves tem apresentado uma tendência de queda ao longo da última década, conforme ilustrado pelo gráfico 1. Os veículos movidos a gasolina e diesel sofreram uma redução no número de licenciamentos, enquanto os veículos flex fuel, que representam uma grande parcela do mercado, também mostram uma ligeira diminuição. Em contraste, os veículos elétricos (VEs) começam a ganhar espaço, embora seu número absoluto ainda seja pequeno em relação aos outros tipos de combustíveis.

 

Gráfico 3 – Licenciamento total de automóveis e comerciais leves por combustível no Brasil de 2012 a 2022

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Anfavea/Renavam (2023)

 

Apesar da queda nas vendas totais de veículos leves, o licenciamento de veículos elétricos tem mostrado um crescimento acelerado nos últimos anos, especialmente a partir de 2020, refletindo um aumento no seu market share. O crescimento percentual, ainda que em uma base relativamente pequena, demonstra que os VEs estão se consolidando como uma alternativa viável.

 

Gráfico 4 – Licenciamento de VEs leves de 2012 a 2022 no Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Anfavea/Renavam (2023).

 

Com relação aos ônibus, nos últimos anos, algumas cidades brasileiras têm implementado projetos-piloto para introduzir ônibus elétricos. Campinas (SP) iniciou um projeto com 11 ônibus elétricos em 2015, seguido por Florianópolis (SC) em 2017 e Brasília (DF) em 2018. São Paulo (SP) promulgou a Lei nº 16.802 em 2018, estabelecendo metas de redução de poluição para o transporte coletivo, com planos de eletrificar metade da frota em 10 anos. Em Niterói (RJ), testes com ônibus elétricos começaram em 2021, utilizando veículos da BYD e Higer, enquanto a cidade ajustava sua infraestrutura e recolhia dados operacionais. Em 2023, São Paulo avançou com um plano ambicioso de eletrificação, recebendo uma frota de 50 novos ônibus elétricos e anunciando a meta de substituir 20% da frota até 2024. No entanto, o cumprimento desta meta parece distante.

De forma geral, a eletrificação da mobilidade no Brasil ainda enfrenta grandes desafios, sobretudo devido à falta de uma política consistente para a adoção de veículos elétricos (VEs). Atualmente, o mercado de veículos leves é dominado por veículos híbridos importados, cujos preços elevados limitam o acesso de uma parcela maior da população

Uma questão central no desenvolvimento da mobilidade elétrica é a política de importação. Recentemente, foi proposta a reintrodução progressiva do imposto de importação para VEs e híbridos, com taxas variáveis de acordo com a eficiência dos veículos. Desde janeiro de 2024, o imposto de importação voltou a ser aplicado para veículos elétricos, híbridos e híbridos plug-in adquiridos no exterior. As taxas serão aumentadas progressivamente, chegando a 35% sobre o valor de importação até julho de 2026.

Outro aspecto relevante é a necessidade de adaptação das infraestruturas urbanas para suportar o crescimento do uso de VEs. O aumento no número desses veículos coloca pressão sobre as redes elétricas, que precisarão ser modernizadas para lidar com a alta demanda por energia, especialmente em áreas densamente povoadas.

 

Biocombustíveis x Eletrificação

Há também uma discussão sobre o uso de biocombustíveis e a eletrificação. Os veículos elétricos, com motores mais eficientes do que os de combustão interna, se beneficiam especialmente no Brasil, onde a matriz elétrica é predominantemente renovável. No entanto, a eletrificação enfrenta desafios como as emissões indiretas da fabricação de baterias e a necessidade de infraestrutura adequada para carregamento.

Por outro lado, o etanol de cana-de-açúcar tem se mostrado uma alternativa eficaz na redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), com a tecnologia flex fuel já bem estabelecida no Brasil. Porém, o cultivo da cana-de-açúcar também traz preocupações ambientais, como a perda de biodiversidade e as emissões indiretas associadas ao uso da terra (Lavrador; Teles, 2022). Assim, a comparação entre veículos elétricos e os movidos a etanol revela que ambos têm vantagens e desafios, sugerindo que não há uma solução única e superior em termos de sustentabilidade para o contexto brasileiro.

Nesse cenário, o conceito de bioeletrificação se apresenta como uma alternativa promissora. Ao integrar biocombustíveis com eletrificação em veículos híbridos, seria possível combinar os benefícios de ambas as tecnologias. Essa abordagem pode maximizar a eficiência energética e minimizar o impacto ambiental, aproveitando tanto as vantagens dos veículos elétricos quanto as contribuições dos biocombustíveis renováveis, como o etanol.

 

Declínio dos licenciamentos de veículos leves e envelhecimento da frota de ônibus

A indústria automobilística brasileira tem enfrentado um declínio no número de licenciamentos de veículos leves nas últimas décadas, conforme mostrado pelo gráfico 5que abrange o período de 1958 a 2022.

 

Gráfico 5 – Licenciamento de veículos leves de 1958 a 2022

Fonte: Elaboração própria a partir de Anfavea (2023).

 

Esse cenário reflete os desafios enfrentados pelo setor, incluindo a saída de grandes montadoras como Mercedes-Benz, Audi e Ford do mercado brasileiro, devido a dificuldades econômicas agravadas pela pandemia e a instabilidade cambial (Kramer, 2021). Além disso, a escassez de peças e a baixa demanda levaram a suspensões temporárias de produção e reestruturações no setor, impactando negativamente o volume de vendas (Martins, 2021).

Outro aspecto que tem moldado esse cenário é o crescimento das locadoras e frotistas, que estão liderando o mercado de compra de veículos. As vendas diretas para essas empresas superaram as vendas tradicionais de varejo, sinalizando uma mudança no padrão de consumo dos brasileiros (Fontana, 2022). Esse movimento reflete também a preferência crescente por serviços de mobilidade compartilhada e locação de veículos, o que tem influenciado o volume de vendas no setor automotivo.

Simultaneamente, o setor está passando por uma transformação tecnológica com a eletrificação da frota, um dos principais focos para o futuro da indústria. No entanto, essa transição ocorre em um ambiente econômico desafiador, onde o aumento dos preços médios dos carros novos, como ilustrado pelo gráfico 6, tem dificultado o acesso dos consumidores a novos veículos.

 

Gráfico 6  – Preço médio de carros novos no Brasil de 2018 a 2023

Fonte: Adaptado de Jato (2023).

 

A combinação desses fatores evidencia a complexidade dos desafios enfrentados pela indústria automobilística no Brasil, que precisa equilibrar inovações tecnológicas com as realidades econômicas e de mercado.

Junto a isso, o declínio na frota de ônibus no Brasil entre 2013 e 2022 é reflexo dos desafios enfrentados pelo setor de transporte público, especialmente agravados pela pandemia e o aumento dos custos de diesel.

 

Gráfico 7 – Frota estimada de ônibus no Brasil de 2013 a 2022

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados de Anfavea (2023).

 

A demanda por transporte público foi reduzida drasticamente durante a pandemia, o que, combinado com a alta de 90% no preço do diesel desde 2020, impactou severamente as finanças das empresas de ônibus. Esse cenário levou a uma diminuição na renovação da frota, contribuindo para o envelhecimento dos veículos em circulação.

Além dos efeitos diretos da pandemia, as concessionárias enfrentam desafios financeiros decorrentes da combinação de uma demanda reduzida com o alto custo do diesel, o que desestabilizou os contratos de concessão. Como consequência, a operação dos ônibus tem sido limitada aos horários de pico, prejudicando a qualidade do serviço e aumentando a necessidade de renovação da frota (Pelegi, 2022). O envelhecimento da frota de ônibus, intensificado pela crise econômica, é um problema crescente, pois os custos operacionais estão elevados e a eficiência do transporte público é comprometida.

Em resposta a esses desafios, o governo brasileiro lançou, em 2023, um programa de incentivo para renovar a frota de ônibus e caminhões antigos (Taiar, 2023). Esse programa incluiu a oferta de créditos tributários voltados para a reciclagem de veículos com mais de 20 anos e a compra de novos. O incentivo buscou modernizar a frota, além de reduzir os custos operacionais das empresas e promover uma transição para ônibus mais modernos e menos poluentes, como os elétricos, cujo licenciamento, apesar de ainda baixo, tem crescido nos últimos anos.

 

Conclusão

Com base nas informações apresentadas, é possível concluir que o setor de transporte no Brasil está passando por uma fase de grandes transformações e desafios. O país enfrenta dificuldades econômicas, que impactam tanto a indústria automobilística quanto o transporte público, além de questões ambientais e tecnológicas que moldam o futuro da mobilidade.

Primeiro, a eletrificação da frota de veículos leves e pesados ainda é incipiente, mas tem ganhado impulso. No entanto, o avanço da eletrificação depende de políticas de incentivo mais robustas, tanto para a infraestrutura de recarga quanto para a produção e aquisição de veículos elétricos, que ainda são caros e inacessíveis para a maior parte da população.

Por outro lado, a crise no transporte público, evidenciada pela redução e envelhecimento da frota de ônibus, revela uma necessidade urgente de renovação e adaptação, especialmente em meio ao aumento dos custos operacionais, como o diesel. O governo tem respondido com programas de incentivo para modernizar a frota, mas ainda há muito a ser feito para garantir a sustentabilidade desse setor. Em suma, o Brasil está em um ponto de inflexão, onde as decisões políticas e econômicas tomadas agora terão impacto direto no futuro da mobilidade e no cumprimento das metas de redução de emissões de carbono.

 

Referências

FONTANA, Guilherme. Locadoras e frotas já são os maiores compradores de carros novos do Brasil. Comércio de carros usados e novos (por venda direta) é a categoria mais animada do mercado. Quatro Rodas, 10 out 2022. Disponível em: https://quatrorodas.abril.com.br/auto-servico/locadoras-e-frotas-ja-sao-os-maiores-compradores-de-carros-novos-do-brasil. Acesso em: 10 nov. 2023.

IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change. Sixth Assessment Report (AR6), 2022. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-cycle/. Acesso em: 20 set. 2024.

KRAMER, Vandré. O que está por trás da saída de três montadoras de carros do país. Gazeta do Povo, 2021. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/economia/o-que-esta-por-tras-da-saida-de-tres-montadoras-de-carros-do-pais/. Acesso em: 02 dez. 2023.

LAVRADOR, Rafael Belém; TELES, Beatriz Arioli de Sá. Life cycle assessment of battery electric vehicles and internal combustion vehicles using sugarcane ethanol in Brazil: A critical review. Cleaner Energy Systems, v. 2, 2022. https://doi.org/10.1016/j.cles.2022.100008

MARTINS, Raphael. Por que as montadoras estão suspendendo a produção no Brasil? Entenda. G1, 2021, 16:14. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/26/por-que-as-montadoras-estao-suspendendo-a-producao-no-brasil-entenda.ghtml. Acesso em: 10 out. 2023.

PELEGI, Alexandre. Diesel mais caro pode aumentar tarifas, além de reduzir frota do transporte coletivo nas ruas, alerta NTU. Diário do Transporte. 2022. Disponível em: https://diariodotransporte.com.br/2022/05/09/diesel-mais-caro-pode-aumentar-tarifas-alem-de-reduzir-frota-do-transporte-coletivo-nas-ruas-alerta-ntu/. Acesso em: 10 jun. 2022.

TAIAR, Estevão. Programa para ônibus e caminhões se estenderá até alcançar R$ 1 bi em créditos tributários, diz Alckmin. Valor, 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/08/22/programa-para-onibus-e-caminhoes-sera-prorrogado-ate-alcancar-r-1-bi-em-creditos-tributarios-diz-alckmin.ghtml. Acesso em: 22 nov. 2023.

 

Sugestão de citação: Ana Carolina Cordeiro, A. C. (2024). Eletrificação e os Desafios da Transformação da Indústria Automobilística no Brasil. Ensaio Energético, 30 de outubro, 2024.

Ana Carolina Cordeiro

Economista pela UFRJ, mestre e doutoranda em Economia pela UFF. Membro do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

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