Historicamente, a matriz elétrica brasileira foi caracterizada pela dominância de energia renovável. As hidrelétricas lideram a capacidade instalada de geração. Antes do boom das energias eólica e solar, em 2009, as renováveis já representavam 80% da capacidade instalada, sendo 74% hidrelétrica. Os grandes reservatórios hidrelétricos tornam a energia hídrica mais controlável que as demais renováveis. Em 2009, a capacidade máxima de acumulação de energia em reservatórios hidrelétricas alcançava 202 TWh, correspondendo a 45% da energia consumida no Brasil no mesmo ano.
Nos últimos 5 anos, a operação do sistema elétrico brasileiro foi muito impactada pela rápida difusão das fontes eólica e solar. Neste período a capacidade de geração total do país aumentou 75 GW, sendo 93% de energia renovável. Os leilões de energia impulsionaram a instalação de centrais eólicas, cuja capacidade de geração cresceu de forma contínua e alcançou 33 GW em 2024.
Gráfico 1 – Capacidade de Geração Eólica no Brasil– MW (2007 – 2024)
Fonte: ONS
A capacidade de geração solar também aumentou de forma exponencial. A capacidade instalada alcançou 53 GW em 2024, 67% na forma de geração distribuída. Os leilões de energia propiciariam uma partida inicial para a fonte solar de forma centralizada. O sistema de net-metering tornou os painéis solares muito atrativos como geração distribuída (Gráfico 2).
Gráfico 2 – Capacidade de Geração Solar no Brasil– MW (2013 – 2024)
Fonte: Absolar
A matriz de geração de eletricidade em 2024 continua predominantemente renovável. As fontes renováveis somam 87% do total de capacidade instalada. Eólica e solar já representam 35% da capacidade de geração brasileira. Como as duas fontes são menos controláveis que a geração hidrelétrica, as implicações sobre a operação do sistema são muito importantes.
Gráfico 3 – Mix de Geração de Eletricidade no Brasil – 2024
Fonte: ANEEL
Um desafio significativo enfrentado pelas usinas eólicas e solares no Brasil é o fenômeno do curtailment. Esse fenômeno ocorre quando a geração de energia de uma determinada usina precisa ser restringida, não por falhas técnicas ou operacionais, mas por exigências sistêmicas associadas à necessidade de manter o equilíbrio entre oferta e demanda de eletricidade. O crescimento da participação da geração solar e eólica trouxe novos desafios para o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), especialmente no que diz respeito à manutenção da estabilidade da rede. Como a energia gerada por fontes como o sol e o vento não pode ser controlada com a mesma facilidade da geração hidrelétrica, há momentos do dia em que a produção excede a demanda do sistema, exigindo cortes estratégicos na geração renovável.
Do ponto de vista operacional, o curtailment é uma medida necessária para garantir a segurança e a confiabilidade do fornecimento de energia elétrica. Situações típicas incluem períodos de radiação solar excessiva ou ventos intensos, especialmente na região Nordeste, quando a geração excede a demanda local. Nesses casos, o ONS tem autoridade para ordenar a interrupção temporária da operação de diversas usinas solares e eólicas. Por outro lado, quando há uma queda acentuada na geração solar, torna-se imperativo antecipar o despacho de usinas hidrelétricas e termelétricas, o que também pode resultar na redução da geração renovável. Esses cortes são tecnicamente conhecidos como constrained-offs e, embora sejam inevitáveis em certas condições, representam uma perda de receita para os operadores do setor e têm gerado novas disputas administrativas e judiciais.
A Resolução Normativa ANEEL nº 1.030/2022 sistematiza o tratamento regulatório desses cortes, classificando-os em três categorias principais, de acordo com os critérios previamente definidos na REN nº 927/2021 (ANEEL, 2022):
- cortes por indisponibilidade externa (tipo REL), que ocorrem devido a falhas em equipamentos externos à usina, geralmente relacionados ao sistema de transmissão;
- cortes por requisitos de confiabilidade elétrica (tipo CNF), relacionados à necessidade de manter a estabilidade dos equipamentos do sistema;
- cortes por razões energéticas (tipo ENE), relacionados à impossibilidade de alocar a energia gerada na carga devido à baixa demanda.
Essa classificação é fundamental para definir os critérios de compensação aos geradores afetados. A crescente frequência desses eventos coloca em tela a importância de aprimorar a governança e a infraestrutura do setor elétrico brasileiro para enfrentar os desafios da transição energética.
O Gráfico 4 a seguir apresenta a evolução diária do curtailment da geração eólica no Brasil ao longo de 2024, com base em dados oficiais do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O gráfico mostra uma clara concentração dos volumes de energia cortada na região Nordeste, o que está em consonância com a maior penetração da fonte eólica nesta região do país. A progressão dos dados indica picos de corte que chegam a quase 500 MWmed no segundo semestre do ano, revelando restrições tanto sazonais quanto estruturais.
Gráfico 4 – Curtailment da geração eólica no Brasil por região (2024)
Fonte: ONS, 2025.
O curtailment, embora anteriormente marginal, passou a representar uma preocupação estrutural. Segundo Souto Jr. (2024), entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025, as perdas financeiras associadas à energia renovável não despachada ultrapassaram R$ 2 bilhões. A transição de um fenômeno pontual para uma ocorrência recorrente levou os operadores a incorporarem projeções de curtailment entre 2% e 10% nos modelos de viabilidade de projetos, especialmente na região Nordeste.
Além de limitar a integração de fontes renováveis ao sistema, o curtailment impõe impactos financeiros significativos aos geradores. Quando ocorre o corte de geração, os produtores precisam adquirir a quantidade equivalente de energia no Mercado de Curto Prazo (MCP) para cumprir suas obrigações contratuais, a preços definidos pelo Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). Somente em setembro de 2023, o curtailment da geração eólica resultou em perdas de receita superiores a R$ 100 milhões. No acumulado dos doze meses anteriores, o impacto financeiro total superou R$ 385 milhões, evidenciando o peso crescente do curtailment sobre a rentabilidade dos projetos renováveis (SOUTO JR., 2024). Além disso, os cortes recorrentes afetam a média anual de geração das usinas eólicas e solares, levando à degradação de suas garantias físicas, atualmente suspensas (EIXOS, 2024).
O gráfico 5 ilustra o curtailment da geração solar no Brasil no período de abril a dezembro de 2024. Observa-se um aumento constante na quantidade de geração fotovoltaica restringida, com destaque para as regiões Sudeste e Centro-Oeste, que foram particularmente afetadas durante os períodos de maior incidência solar. Em diversos momentos, os valores de corte superaram 300 MWmed, refletindo limitações sistêmicas na capacidade de gerenciamento do excedente de energia durante as horas centrais do dia.
Gráfico 5 – Curtailment da geração solar no Brasil por região (2024).
Fonte: ONS, 2025.
Os gráficos 4 e 5 mostram que o curtailment deixou de ser um evento isolado ou excepcional, passando a representar um fenômeno estrutural decorrente da rápida expansão de fontes renováveis variáveis, sem o devido reforço proporcional na infraestrutura de rede e na flexibilidade operativa do sistema. Assim, o enfrentamento do curtailment tornou-se uma prioridade fundamental no planejamento e nas estratégias regulatórias voltadas à transição energética brasileira.
A experiência do período de maior predominância hidrelétrica indica a relevância da estocagem para lidar com o desequilíbrio entre oferta e demanda. Os reservatórios hidrelétricos continuarão a ter papel importante para a operação do sistema, mas para mitigar o curtailment outras tecnologias devem ser incorporadas para enfrentar o problema. A implementação de sistemas de armazenamento de energia, como baterias, é uma das soluções atualmente em discussão. O objetivo desses sistemas é acumular a geração excedente durante os períodos de baixa demanda, para uso posterior.
Outra abordagem promissora é a diversificação das tecnologias de geração de energia. A integração de fontes variadas — como solar, eólica, hidrelétrica e biomassa — tem o potencial de formar uma matriz energética mais equilibrada e resiliente. Essa diversificação permite a compensação de fontes intermitentes por fontes mais estáveis, reduzindo a necessidade de cortes na geração. Além disso, a complementaridade entre tecnologias pode otimizar a utilização da infraestrutura já existente, como as linhas de transmissão, promovendo ganhos na eficiência do sistema elétrico como um todo.
As usinas híbridas têm se destacado como uma solução eficaz nesse contexto. A combinação de diferentes fontes de energia em um mesmo empreendimento permite explorar a complementaridade entre elas, otimizando a geração e minimizando perdas. Por exemplo, a integração entre usinas solares e eólicas tem se mostrado eficiente no equilíbrio da geração ao longo do dia e das estações. Adicionalmente, a associação com usinas hidrelétricas pode viabilizar o uso de armazenamento natural e despacho rápido. Essa abordagem tem se revelado eficaz na redução do curtailment, ao mesmo tempo em que otimiza a utilização da infraestrutura de transmissão e contribui para a estabilidade do sistema elétrico.
Entretanto, para viabilizar as estratégias acima de mitigação do problema do curtailment, é necessário implementar mudanças importantes no desenho do mercado de energia. Em particular, é fundamental que a precificação da energia a dinâmica de produção. A variações horárias do preço da energia devem refletir o contexto de excedente/escassez. Esta é a forma mais eficiente de criar um mercado para soluções de armazenagem ou hibridização que ajudem a reduzir a frequência dos cortes.
Apesar de já ter introduzido a precificação horária da energia no Brasil, os modelos utilizados pela ONS para precificação da energia no curto prazo apresentam várias restrições que impedem que os preços reflitam a dinâmica do mercado de energia. Isto ocorre por vários motivos: i) pelas limitações de piso e teto do Preço de Liquidação de Diferenças – PLD; ii) pela própria configuração e abrangências dos submercados de energia, que faz com que micro-regiões com excedente de produção ainda tenham preços relativamente elevados; e pela adoção funções de custo futuro da energia utilizadas nos modelos que calculam o PLD que não refletem fielmente as características do mercado. Assim, é fundamental uma revisão do desenho do mercado para que o próprio mercado busque soluções para o problema do curtailment, reduzindo assim a atuação ad hoc do operador para garantir o balanceamento da oferta e demanda.
Portanto, enfrentar o curtailment de forma estratégica vai além da resolução de uma questão técnica pontual. Trata-se de uma oportunidade concreta para modernizar o sistema elétrico brasileiro, fortalecer sua resiliência e acelerar a integração de uma matriz energética mais limpa, segura e sustentável para as próximas décadas.
Referências
ANEEL – AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Resolução Normativa nº 1.030, de 26 de julho de 2022. Dispõe sobre os procedimentos para apuração e pagamento de restrição de operação por Constrained-off de usinas eólicas e solares. Disponível em: https://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren20221030.html. Acesso em: 07 abr. 2025.
EIXOS. O que é curtailment e por que esse é o novo pesadelo do setor elétrico. 2024. Disponível em: https://eixos.com.br/politica/o-que-e-curtailment-e-por-que-esse-e-o-novo-pesadelo-do-setor-eletrico. Acesso em: 16 abr. 2025.
GODOI, Maurício. Curtailment preocupa, mas não é um GSF. CanalEnergia, São Paulo, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.canalenergia.com.br/noticias/53293780/curtailment-preocupa-mas-nao-e-um-gsf. Acesso em: 16 abr. 2025.
GODOI, Maurício. Curtailment será analisado no PDE 2035, sinaliza EPE. CanalEnergia, São Paulo, 2 abr. 2025. Disponível em: https://www.canalenergia.com.br/noticias/53307481/curtailment-sera-analisado-no-pde-2035-sinaliza-epe. Acesso em: 20 abr. 2025.
ONS – OPERADOR NACIONAL DO SISTEMA ELÉTRICO. Conjunto de dados públicos: restrição de geração por curtailment (constrained-off). Disponível em: https://dados.ons.org.br. Acesso em: 15 abr. 2025.
RAMOS, Camila. Leilão de reserva com baterias pode mitigar curtailment de renováveis, Canal Solar, 2024. Disponível em: https://canalsolar.com.br/baterias-leilao-de-reserva-curtailment-renovaveis. Acesso em: 15 abr. 2025.
SOUTO JR., Levi. O custo que poucos falam. Parte 2: Curtailment. Brasil Energia, 2024. Disponível em: https://brasilenergia.com.br/energia/o-custo-que-poucos-falam-parte-2-curtailment. Acesso em: 16 abr. 2025.
TYR ENERGIA. O que são usinas híbridas e quais as vantagens? 2023. Disponível em: https://tyrenergia.com.br/usinas-hibridas/. Acesso em: 16 abr. 2025.
Sugestão de citação: Almeida, E.; Losekann, L. Pereira, V. S. (2025). Curtailment no Setor Elétrico Brasileiro: Desafios Estruturais e Estratégias de Mitigação. Ensaio Energético, 13 de maio, 2025.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ. Professor e coordenador do Programa de Pós Graduação em Economia e Vice Diretor da Faculdade de Economia da UFF. Pesquisador do Grupo de Energia e Regulação (GENER/UFF).

Vinícius Pereira
Pesquisador do Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC), e mestrando em Engenharia Mecânica com ênfase em energia na PUC-Rio. Formação acadêmica inclui graduação em Física pelo Cefet-RJ. Desenvolve pesquisa sobre o tema das Usinas Híbridas no Brasil.