O Brasil adotou nos últimos anos medidas de política industrial, tecnológica e de demanda de energia visando desenvolver a cadeia produtiva local do aerogerador de grande porte. As principais políticas industrial e de demanda de energia para o setor eólico no Brasil seriam, respectivamente, a Política de Conteúdo Local (PCL) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os leilões governamentais de energia elétrica iniciados em 2009. No que diz respeito às políticas tecnológicas, destaca-se, em termos de montante investido e número de projetos apoiados, o Programa de P&D da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Diante deste cenário, o objetivo deste artigo é apresentar a atuação do Programa de P&D da ANEEL no desenvolvimento tecnológico do setor eólico brasileiro de modo a verificar pontos positivos e negativos.
Introdução ao programa de P&D da Aneel
Segundo regulamentos da ANEEL, as concessionárias de serviços públicos de distribuição, transmissão ou geração de energia elétrica, as permissionárias de distribuição e as autorizadas à produção independente de energia elétrica, excluindo-se aquelas que geram energia exclusivamente a partir de instalações eólica, solar, biomassa, cogeração qualificada e PCHs, devem aplicar, anualmente, um percentual mínimo de sua receita operacional líquida em projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) no setor elétrico. Segundo a ANEEL (2012), tais projetos de P&D devem possuir natureza criativa ou empreendedora e se destinar à geração de conhecimento ou à aplicação inovadora de conhecimento existente. Além disso, esses projetos podem ser feitos individualmente pelas empresas ou de forma cooperativa com outras empresas, instituições públicas ou privadas de ensino ou pesquisa, empresas de consultoria e fabricantes de materiais e equipamentos, sendo a ANEEL a responsável pela avaliação e fiscalização da execução dos projetos para aprovação dos investimentos realizados (ANEEL, 2012).
Como destacado por Silva et al. (2009), até 2008 as empresas utilizavam o programa de P&D da ANEEL de modo a fomentar suas necessidades de curto prazo, o que fazia com que os recursos não fossem aplicados nas áreas mais importantes para o setor elétrico. Já Quandt et al. (2008) indicaram que os investimentos eram mais direcionados ao atendimento da obrigatoriedade legal do que à produção de impactos positivos para a sociedade ou de resultados estratégicos para as organizações. Ademais, há trabalhos que evidenciam um descompasso entre o Programa de P&D da ANEEL com outras políticas voltadas para o desenvolvimento de determinado setor, como foi o caso da energia eólica. Camillo (2013) destaca que entre 2000 e 2008 houve um evidente descompasso entre os projetos de energia eólica realizadas pelo programa e o tipo de indústria eólica projetada pelo governo através do PROINFA, dado que poucos projetos sobre energia eólica de grande porte foram selecionados.
Dadas as questões apresentadas acima, a ANEEL (via Resolução Normativa nº 316/2008) modificou seu programa de P&D com a adoção das chamadas temáticas. A partir da adoção das chamadas temáticas em 2008, a ANEEL passou a definir critérios para que os investimentos em P&D fossem orientados para temas estratégicos, buscando, assim, estimular o surgimento de inovações tecnológicas relevantes para o setor elétrico brasileiro. Com isso, a partir de 2008 todos os projetos de P&D da ANEEL deveriam ser enquadrados, preferencialmente, em 11 temas e subtemas considerados prioritários, a saber: (i) Fontes Alternativas de Geração de Energia Elétrica; (ii) Geração Termoelétrica; (iii) Gestão de Bacias e Reservatórios; (iv) Meio Ambiente; (v) Segurança; (vi) Eficiência Energética; (vii) Planejamento de Sistemas de Energia Elétrica; (viii) Operação de sistemas de Energia Elétrica; (ix)Supervisão, Controle e Proteção de Sistemas de Energia Elétrica; (x) Qualidade e Confiabilidade dos Serviços de Energia Elétrica; (xi) Medição, faturamento e combate a perdas comerciais; e (xii) Outros (ANEEL, 2012).
Os temas e subtemas estratégicos buscam abordar projetos de grande relevância para o setor elétrico nacional e para o país. Em geral, são projetos que demandam elevado esforço em termos científicos e tecnológicos e que, além disso, possuem dificuldade para serem realizados de forma individual. Ou seja, tais projetos necessitam de esforços conjuntos e coordenados entre empresas e outras instituições e exigem uma elevada quantidade de recursos financeiros.
Programa de P&D da Aneel e o setor de energia eólica
O Programa de P&D da ANEEL apresentou duas fases. Na primeira fase, que compreende o período do ciclo 1998/1999 ao ciclo 2006/2007, foram destinados somente R$5,8 milhões a projetos na área de energia eólica, o que correspondeu a apenas 0,36% do volume de investimento realizado nesse período, que foi cerca de R$ 1,6 bilhão (ANEEL, 2013). Na segunda fase, iniciada em 2008, o Programa de P&D da ANEEL adotou as chamadas temáticas e passou a direcionar recursos para projetos considerados estratégicos, como é o caso da energia eólica. Entre 2008 e 2015 a ANEEL demonstrou interesse em cerca de 1700 projetos neste período (com valor total de aproximadamente R$4,8 bilhões), dos quais 29 eram ligados a energia eólica e corresponderam a um investimento de aproximadamente R$224 milhões, ou seja, cerca de 4,7% do total concedido pelo programa no mesmo período. Tal valor é considerado baixo dado o estágio de desenvolvimento da indústria eólica nacional e a importância da fonte eólica para o setor elétrico nacional. Entretanto, tal valor é muito superior aos R$5,8 milhões concedidos na primeira fase do programa.
Um dos motivos para o aumento da participação do setor eólico no programa de P&D da ANEEL foi a realização da chamada temática nº17 de 2013, intitulada “Desenvolvimento da Tecnologia Nacional de Geração Eólica”, cujo objetivo era incentivar o desenvolvimento tecnológico da indústria eólica nacional. Através dessa chamada temática foram contratados cinco projetos ligados à energia eólica, sendo três relativos ao desenvolvimento de aerogeradores de grande porte e seus componentes, um relativo ao desenvolvimento de metodologia de medição e simulação de vento integrada à otimização operacional e financeira de um parque eólico e um último projeto que buscava desenvolver uma tecnologia nacional de geração eólica de pequeno porte. Os cinco projetos somaram um valor total de recursos em torno de R$148 milhões, o que equivale a 66% do total investido pelo programa no setor eólico entre 2008 e 2015.
Antes de prosseguir a análise é preciso salientar que a contratação de energia eólica no Brasil teve início com o PROINFA, criado em 2002, mas deslanchou apenas com os leilões governamentais em 2009. Ademais, a Política de Conteúdo Local (PCL) do BNDES, que visava o desenvolvimento da cadeia produtiva local do aerogerador, foi criada no início dos anos 2000 e modificada em 2013 (com o objetivo de internalizar a produção de componentes tecnologicamente sofisticados presentes no aerogerador).
Diante do que foi exposto acima, destaca-se que apesar da chamada temática nº17/2013 ter ocorrido tardiamente quando levamos em conta as demais políticas de estímulo ao setor eólico no Brasil, esta é vista como positiva no sentido de que ocorreu logo após as regras da PCL do BNDES terem sido modificadas, o que aparenta um alinhamento entre o programa e a política do BNDES. Enquanto a nova metodologia de conteúdo local do BNDES requisitava o aumento do uso de equipamentos nacionais na produção do aerogerador, o programa da ANEEL incentivava a aplicação de recursos em projetos de P&D ligados à energia eólica.
Com relação aos projetos ligados ao desenvolvimento de aerogeradores de grande porte e seus componentes, entre 2008 e 2015 foram selecionados 9 projetos. Três observações sobre esses projetos merecem destaque. A primeira observação é a presença de projetos que buscam o desenvolvimento de aerogeradores com tecnologia nacional e adaptados às condições naturais brasileiras, como são os casos dos projetos da Petrobrás e da Tractebel. Tais projetos buscam aumentar a produtividade dos aerogeradores e dos parques eólicos nacionais, uma vez que a maioria dos aerogeradores instalados no Brasil foram desenvolvidos de acordo com as condições naturais de outras regiões. A segunda observação diz respeito à importância da chamada temática nº 17 de 2013. Dos nove projetos ligados ao desenvolvimento de aerogeradores de grande porte, os três maiores em termos de recursos foram resultado desta chamada. Somente esses três projetos somam um valor próximo a R$135 milhões, o que representa cerca de 60% do total investido pelo programa de P&D da ANEEL em energia eólica entre 2008 e 2015. Tal fato demonstra a importância de políticas específicas de incentivo ao desenvolvimento da produção nacional de aerogeradores e seus componentes. Por fim, a terceira observação é que o alinhamento entre o Programa de P&D da ANEEL e a PCL do BNDES parece ter sido apenas teórico, uma vez que não se verificou qualquer projeto de P&D ligado ao desenvolvimento dos componentes tecnologicamente sofisticados destacados pela nova metodologia de conteúdo local do BNDES.
Outro ponto a ser destacado sobre a relação do programa de P&D da ANEEL com o setor de energia eólica é a existência de certa incoerência no programa. A incoerência reside no fato do agente gerador de energia eólica, que diretamente se beneficia dos avanços tecnológicos da geração eólica, estar isento da obrigatoriedade da aplicação de recursos em projetos de P&D determinado pelo programa da ANEEL. Esta isenção foi feita visando reduzir os custos da geração eólica local, mas em contrapartida, ela afeta diretamente o número de projetos e os recursos destinados ao desenvolvimento da tecnologia eólica.
Conclusões
Diante do que foi apresentado, podemos destacar as seguintes críticas ao programa de P&D da ANEEL: (i) na primeira fase do programa, que corresponde ao período em que a fonte eólica começou a ser estimulada no país, apenas 0,36% dos recursos foram destinados à energia eólica; (ii) embora a segunda fase do programa tenha aumentado consideravelmente o fornecimento de recursos para o setor de energia eólica, a participação deste setor no total de recursos concedidos pelo programa permaneceu baixa (4,7% ente 2008 e 2015); (iii) a chamada temática nº 17/2013 apenas aparentou um alinhamento com a PCL do BNDES, mas foi útil para demonstrar a importância que um programa mais específico pode ter; (iv) entre 2013 e 2015 iniciou-se a produção nacional de diversos componentes tecnologicamente sofisticados do aerogerador em função da nova metodologia de conteúdo local do BNDES, mas não se verificou no período o apoio a projetos voltados para o desenvolvimento tecnológico desses componentes; e (v) é incoerente isentar os geradores de energia eólica da obrigatoriedade do investimento em P&D, ainda mais quando verificamos que a fonte eólica é uma das mais competitivas atualmente no país.
Apesar das críticas apresentadas, o Programa de P&D da ANEEL desde o início da segunda fase foi importante para o desenvolvimento de tecnologias voltadas para o setor eólico, com destaque para aquelas que buscam adaptar os aerogeradores e seus componentes às condições brasileiras. A título de exemplo, neste ano a WEG (única empresa brasileira produtora de aerogerador) iniciou os testes de um aerogerador de 4,2 MW de potência que foi fruto de um projeto de P&D da ANEEL em que a fabricante desenvolveu em conjunto com a CELESC e a Engie[1].
Por fim, o que se buscou apresentar nesse texto é que apesar de possuir problemas em seu funcionamento, o Programa de P&D da ANEEL é um instrumento que pode trazer importantes resultados em termos de desenvolvimento tecnológico para o setor elétrico brasileiro. Para tanto, é preciso que a ANEEL adote uma visão mais sistêmica e estratégica na escolha dos projetos. Sistêmica no sentido de observar e atuar em consonância com outras políticas que por ventura atuem nos setores considerados estratégicos pela agência. Estratégica no sentido de estudar e escolher tecnologias promissoras e que tendem a ser importantes para o desenvolvimento do setor elétrico nacional no longo prazo (casos atuais das baterias e da geração via hidrogênio), algo como o realizado pelo Programa Inova Energia. Afinal, não se deve evitar escolhas, embora seja preciso evitar escolher “campeões”.
Referências
ANEEL – AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA. Manual do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Setor de Energia Elétrica. Brasília: ANEEL, 2012. Disponível em: < http://www2.aneel.gov.br/arquivos/PDF/Manual-PeD_REN-504-2012.pdf >. Acesso em: 16 jun. 2019.
_________. Chamada Nº 017/2013 – Projeto Estratégico: Desenvolvimento de Tecnologia Nacional de Geração Eólica. Brasília: ANEEL, 2013. Disponível em: < http://www2.aneel.gov.br/arquivos/PDF/PD%20Estrat%C3%A9gico%20017-2013.pdf >. Acesso em: 16 de jun. 2019.
CAMILLO, E. V.. As políticas de inovação da indústria de energia eólica: uma análise do caso brasileiro com base no estudo de experiências internacionais, 2013, 212 f. (Tese de Doutorado em Política Científica e Tecnológica) Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
QUANDT, C. O.; SILVA JR, R. G.; PROCOPIUCK, M.. Estratégia e Inovação: análise das atividades de P&D no setor elétrico brasileiro. Revista Brasileira de Estratégia, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 243-255, 2008.
SILVA JR, R. G.; PROCOPIUCK, M.; QUANDT, C. O.. A Pesquisa e Desenvolvimento na estratégia competitiva das concessionárias do setor elétrico brasileiro. In: XII Simpósio de Administração da Produção, Logística e Operações Internacionais, 2009,São Paulo, SP. Anais … São Paulo/SP: SIMPOI, 2009.
Nota
[1] Ver: < https://canalenergia.com.br/noticias/53152638/inovacao-consolida-aerogeradores-acima-de-4-mw-no-brasil >.
Sugestão de citação: Ferreira, W. C. (2020). Atuação do Programa de P&D da ANEEL no setor elétrico brasileiro: o caso da energia Eólica Ensaio Energético, 07 de dezembro, 2020.
Autor do Ensaio Energético. Economista, Mestre e Doutor em Economia pela UFF. Professor do Departamento de Ciências Econômicas da UFRRJ.