Apesar de ainda estarmos em meio aos impactos da pandemia e com um elevado nível de incerteza, é importante uma reflexão sobre como será a retomada do setor de energia. São inúmeros os artigos e webinares dedicados à análise da retomada. Quase sempre a discussão está focada sobre diferentes cenários para a pandemia e sobre a retomada da demanda pós pandemia. Entretanto, existem poucos estudos e reflexões sobre os impactos da pandemia sobre o mix energético mundial. Quais indústrias energéticas sairão fortalecidas e quais sairão fragilizadas da pandemia? Como fica a situação do setor energético Brasileiro nesta retomada?
Existem muitos aspectos da pandemia que ainda não sabemos. Primeiro não sabemos sobre a duração da Pandemia. Não sabemos se e quando teremos uma vacina. Não sabemos se após a imunização voltaremos à vida normal ou se haverá um novo normal no que se refere às precauções epidemiológicas através do distanciamento social. Entretanto, sabemos muita coisa que certamente afetarão o mundo da energia. Sabemos que a digitalização foi acelerada e veio para ficar nas relações de trabalho e de consumo. Sabemos que o padrão de deslocamento das pessoas mudou e continuará a mudar e não voltará ao padrão anterior.
Outro efeito muito importante da pandemia é seu efeito na conscientização e engajamento ambiental. A crise de saúde vem sendo cada vez mais associada à crise ambiental. A ideia de que a mudança climática e a redução da biodiversidade podem gerar novas pandemias tem levado a opinião pública a aceitar o conceito de urgência ambiental e climática. Vários estudos de opinião têm mostrado que a conscientização ambiental vem aumentando e certamente levará a crescente pressão social sobre os governos e os stakeholders do setor energético [1].
Não por acaso, um consenso vem se formando nas instituições internacionais multilaterais e economias avançadas de que o espaço fiscal criado pela situação excepcional da pandemia deveria ser usado para acelerar a transição energética. Assim, difunde-se a ideia de que estímulos à recuperação da economia devem ser direcionados à agenda climática [2]. A União Europeia já está desenhando políticas públicas nesta direção, através da disponibilização de recursos e aumento das metas para transição energética. O acordo “Green Deal” vem sendo reforçado com metas mais ambiciosas. Recentemente o Parlamento Europeu aumentou as metas de redução de emissões em 2030 em relação a 1990 de 30% para 55%.
O Green Deal representa um roadmap para políticas para uma Europa neutra em carbono até 2050. Assim, a estratégia de recuperação da economia pós Covid passa por políticas para promoção da descarbonização da economia em todos os setores econômicos e indústrias. Também inclui um plano de investimento e um mecanismo de transição justa [3].
Podemos apontar algumas tendências para as políticas energética nos próximos anos. A primeira é a ampliação do mercado de carbono com metas de redução de emissões não apenas para o setor energético e industrial, mas também para os outros setores da economia. No Brasil, o primeiro mercado de carbono foi criado durante a pandemia, através do programa RenovaBio que introduz metas de emissões para as distribuidoras de combustíveis [4]. As emissões além das metas estabelecidas devem ser mitigadas através da compra de certificados de emissões CBios dos produtores de biocombustíveis. Assim, os produtores de biocombustíveis passam a ser remunerados pela menor emissão em relação aos combustíveis fósseis, através de um mercado de carbono.
A ampliação das metas de redução de emissões significa não apenas o aumento dos setores com metas a cumprir, mas também a abrangência das metas que passarão progressivamente não apenas a incluir as emissões diretas (emissões de escopo 1), mas também as emissões indiretas na energia comprada e utilizada pelas empresas (emissões de escopo 2) e também todas as emissões indiretas pelas atividades produtivas das empresas, tais como transporte, consumo de água, resíduos produtivos (emissões de escopo 3).
Podemos afirmar com razoável segurança que um dos impactos da pandemia será o maior apoio às fontes renováveis de energia e uma crescente penalização das fontes fósseis de energia. A penalização das fontes fósseis vis-à-vis as fontes renováveis se dará através de dois vetores principais: i) ampliação da taxação sobre as fontes fósseis inclusive através de imposto sobre carbono [5]; ii) ampliação do mercado de carbono com impactos importantes sobre o comércio mundial. Em relação a este vetor, será necessário o desenvolvimento e padronização de metodologia para mensuração e certificação de emissões de escopo 1, 2 e 3.
Atualmente, fala-se muito na tendência de inclusão das questões ambientais nas crescentes disputas comerciais entre os blocos econômicos e países. Tem-se associado esta inclusão à uma medida de protecionismo econômico. Entretanto, não será necessário implementar políticas protecionistas discricionárias para que a questão das emissões seja incorporada nas decisões de comércio internacional. Basta que o mercado de carbono se amplie e as metas de emissões incorporem as emissões de escopo 1, 2 e 3. Neste cenário, uma metalúrgica na Europa deverá se preocupar com a intensidade de emissões do aço que importa, por exemplo. Ou seja, siderúrgicas com uma matriz energética mais limpa terão maior competitividade neste comércio.
As tendências acima apresentadas resultam numa dinâmica assimétrica para os custos de produção de energia fóssil e renováveis. Enquanto o suporte de política pública para os renováveis e os impactos da digitalização tendem a resultar em um custo marginal de longo prazo decrescente para renováveis, as políticas para “internalização” das externalidades negativas das emissões de CO2 tendem a resultar em custos marginais de longo prazo crescentes para as fontes fósseis. Assim, não tardará muito o momento em que as fontes renováveis simplesmente serão mais competitivas e dominarão a expansão da oferta da energia na grande maioria dos mercados energéticos.
Podemos concluir assim que as indústrias de energia renováveis sairão mais fortes do que entraram na pandemia. À medida que as metas de redução de emissões se fortalecem em diferentes países, maior será o esforço necessário para aumentar a oferta de energia renovável e maiores serão as oportunidades de investimentos nestas cadeias. Por outro lado, a dinâmica de investimento nas fontes fósseis de energia deverá mudar, com um maior nível de exigência dos stakeholders em termos de resiliência econômica e ambiental. Ou seja, a análise de viabilidade dos projetos fósseis terá que demonstrar que estes têm resiliência a cenários de transição energética acelerada e de precificação do carbono. As empresas precisam demonstrar que podem se adaptar para um contexto de transição energética e de preços de petróleo baixos a longo prazo. Isto representa uma mudança do mindset dominante no setor de energia fóssil. Ficou para trás a ideia que por muito tempo foi expressa pela anedota de que o “melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada e o segundo melhor negócio é uma empresa de petróleo mal administrada”.
Dentro dos mercados de energia fóssil o carvão é o segmento mais afetado. Vários cenários de transição energética já apontam que estaríamos atingindo um pico da demanda mundial do carvão para fins energéticos. Da mesma forma, a demanda de petróleo provavelmente atingirá seu pico ao longo da década de 2020. A partir do atingimento do pico de demanda, a redução progressiva destas duas fontes seria compensada pelo aumento da produção de renováveis e gás natural.
Como fica então a retomada do setor de energia no Brasil, diante do cenário apontado acima? O setor energético Brasileiro tem uma grande vantagem no cenário de transição acelerada que se desenha. Primeiramente, nosso setor energético já está parcialmente descarbonizado, com as fontes renováveis representando 46% da matriz energética nacional. Temos uma indústria renovável consolidada e preparada para um cenário de rápida expansão na geração elétrica e nos biocombustíveis.
Adicionalmente, o Brasil conta com uma indústria de petróleo e gás com grande potencial competitivo contexto mundial do setor. No mercado de petróleo, o Pré-sal possui os atributos necessários para dar resiliência ao setor: atratividade econômica e atratividade ambiental. A província do Pré-sal tem demonstrado muita resiliência na crise atual do mercado do petróleo. As empresas têm conseguido reduzir custos através de otimização das operações e introdução de inovações. Além das quedas no custo, a qualidade do óleo do pré-sal tem sido muito bem aceita no mercado após a entrada em vigor das novas especificações da International Maritime Organization – IMO para óleo Banker, o que tem se refletido em preços mais elevados para o óleo do Pré-sal.
A tendência de aumento da relevância da questão das emissões favorece o Pré-sal brasileiro em relação a maioria das províncias petrolíferas mundiais, em particular, em relação ao shale oil americano, é o grande concorrente do Pré-sal na disputa dos investimentos. Os campos gigantes do Pré-sal apresentam uma intensidade de emissões que é a metade da média do setor. Este fator representará um vetor cada vez mais importante na atratividade do Pré-sal.
O shale oil americano não demonstrou a mesma resiliência econômica na crise do Covid que teve na crise de 2014. Aparentemente, grande parte das oportunidades de redução de custos já foram exploradas e muitas empresas encontram-se em dificuldades neste segmento. Do ponto de vista de emissões o shale oil também tem baixa atratividade. Desta forma, o Brasil tem a oportunidade de aumentar sua produção de petróleo, com vistas principalmente às exportações.
Com relação ao gás natural, ainda existe espaço importante para o crescimento do mercado no Brasil. Temos muita demanda de derivados de petróleo, biomassa não sustentável e carvão que deverá ser substituída por fontes energéticas mais sustentáveis nas próximas décadas. Além dos biocombustíveis, o gás natural terá um papel importante na substituição progressiva destas fontes mais poluentes. Ademais, o Brasil ainda tem uma grande demanda de gás reprimida para gás na indústria. Como o Brasil tem muitos recursos gasíferos descobertos, é razoável esperar que a nova Lei do Gás possa criar um círculo virtuoso de redução de preços relativos e aumento da demanda de gás.
A geração térmica tem sido vista como a opção mais interessante para ancorar projetos de oferta de gás no contexto atual do mercado. Entretanto, o contexto tecnológico do setor elétrico está mudando muito rapidamente e a concorrência entre a geração térmica a gás e a geração renovável só tende a aumentar. Mais concorrência deve levar a reduções de preços da energia que naturalmente levará à consideração de novas opções de monetização do gás, inclusive através de projetos industriais gás intensivos. A liquefação do gás poderá ser uma opção no futuro para a monetização de gás no Brasil. O GNL tem grande vantagem da versatilidade. Pode atender a demanda interna das térmicas e do GNL (mercados atendidos via caminhão e cabotagem), mas também pode ser exportado. Assim, em momentos que não existir demanda pelas térmicas flexíveis no Brasil, seria possível exportar o gás, mantendo-se assim o ritmo da produção e da planta de liquefação.
O setor energético nacional encontra-se muito bem posicionado para a retomada da economia pós-Covid. Existe um enorme potencial para crescimento do setor alinhado com a aceleração das tendências de descarbonização. Para isto, é fundamental que as autoridades energéticas entendam claramente qual será a natureza da retomada do setor após a pandemia e busque adaptar as políticas energéticas nacionais para este contexto.
Referências
BOSTON CONSULTING GROUP – BCG (2020). The Pandemic Is Heightening Environmental Awareness. Disponível em: https://www.bcg.com/en-br/publications/2020/pandemic-is-heightening-environmental-awareness
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL – FMI (2020). Greening the Recovery. Disponível em: https://www.imf.org/~/media/Files/Publications/covid19-special-notes/en-special-series-on-covid-19-greening-the-recovery.ashx
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY – IEA (2020). Sustainable Recovery. Disponível em: https://www.iea.org/reports/sustainable-recovery/covid-19-and-energy-setting-the-scene (acesso em 16/09/2020)
IRENA (2020). The Post-Covid Recovery: An agenda for resilience, development, and equality. Disponível em: <https://bit.ly/2Bzr4mz>.
RENOVABIO. Quais os valores do RenovaBio?. Disponível em: < https://www.renovabio.org/quais-os-valores-do-renovabio/. > Acesso em: 23 jul. 2020.
UNIÃO EUROPÉIA – UE (2020). A European Green Deal Striving to be the first climate-neutral continent. Disponível em https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/european-green-deal_en
Notas
[1] Veja BCG (2020) sobre impacto da pandemia na conscientização ambiental.
[2] Confira FMI (2020) e IEA (2020a).
[3] Confira EU (2020).
[4] Confira RenovaBio (2020).
[5] A possibilidade de criação de um imposto sobre carbono no Brasil vem sendo matéria de discussão no Congresso no âmbito da reforma tributária. Confira https://impostometro.com.br/Noticias/Interna?idNoticia=878
Sugestão de citação: Almeida, E. L. F. (2020). A Retomada do Setor de Energia: Aceleração de Tendências e Mudanças Estruturais. Ensaio Energético, 28 de setembro, 2020.
Conselheiro Editorial do Ensaio Energético. É professor e pesquisador do Instituto de Instituto de Energia da PUC-Rio (IEPUC) e Presidente eleito da Associação Internacional de Economia da Energia - IAEE. Doutor em Economia Aplicada pela Universidade de Grenoble na França.