Bioenergia nos anos 2010
Para entender essa nova fase é importante voltar no tempo e relembrar o cenário de 10 anos atrás. A bioenergia era essencialmente representada por biocombustíveis de primeira geração: o etanol da cana de açúcar ou do milho e o biodiesel de transesterificação. Mas havia uma aparente corrida tecnológica pelos chamados biocombustíveis avançados. Nessa corrida, destacavam-se duas linhas de desenvolvimento: os biocombustíveis derivados de materiais lignocelulósicos e os biocombustíveis drop in. No caso dos materiais lignocelulósicos, o foco principal dos desenvolvimentos e apostas era o chamado etanol de segunda geração (E2G). Utilizar resíduos como matéria prima e expandir a produção, sem expansão das áreas cultivadas, eram atrativos importantes que justificavam os investimentos e as políticas. Os biocombustíveis avançados teriam assim um desempenho ambiental superior ao dos biocombustíveis convencionais de primeira geração.
O sucesso na exploração dos materiais lignocelulósicos trazia ainda uma perspectiva de desenvolver toda uma linha de produtos a partir dos chamados açúcares de segunda geração. Entre esses produtos, destacavam-se as apostas nos biocombustíveis drop in. Esses produtos, por serem quase réplicas das versões de base fóssil, teriam grande facilidade de se integrarem na infraestrutura de uso existente, dispensando adaptações de infraestrutura de distribuição e de equipamentos. Em outras palavras, utilizariam os ativos complementares existentes.
Essas duas linhas de desenvolvimento – o etanol de segunda geração e os biocombustíveis drop in – contavam com programas de apoio bem estruturados principalmente nos EUA por meio dos programas liderados pelo BETO (Bioenergy Technology Office) no DOE (Department of Energy). Os projetos se multiplicavam, startups surgiam, investidores de outras origens e áreas se voltavam para as potencialidades das biomassas. Vivíamos uma corrida tecnológica para a bioenergia do futuro.
No Brasil, BNDES e FINEP, interpretando corretamente essa corrida, lançaram, em 2011, o programa PAISS que tinha como objetivo principal apoiar o desenvolvimento industrial em etanol de segunda geração e em outros produtos derivados da cana de açúcar, entre eles os biocombustíveis drop in. Foram selecionados para apoio do PAISS uma série de projetos como, Granbio, Abengoa, ETH, Amyris, LS9, Solazyme, Dow, DuPont, Petrobras. O projeto Raízen em etanol 2G não fez parte do PAISS, mas foi apoiado pelo BNDES na mesma época.
Mas os anos seguintes, ao longo da década, não foram fáceis para o desenvolvimento desses projetos. A produção industrial de etanol 2G teve que lidar com dificuldades tecnológicas não antecipadas. Poucos projetos tiveram continuidade, nos EUA e no Brasil. Aqui, os esforços de Granbio e Raízen não levaram à produção na escala esperada do etanol 2G. Mas essas empresas acumularam um aprendizado de grande valor que deve apoiar suas estratégias de crescimento nos próximos anos, tanto na construção de novas plantas quanto no licenciamento de tecnologias de tratamento de materiais lignocelulósicos.
No caso dos biocombustíveis drop in, mais do que as dificuldades de produção, ainda baseada em açúcares de primeira geração, pesou a complexidade da biotecnologia envolvida. Os projetos envolviam rotas muito inovadoras que tiveram sucesso tecnológico na obtenção dos produtos desejados, mas sem atingir níveis de custo para serem utilizados como combustíveis. O caso da Amyris ilustra bem esse ponto. Houve testes com o chamado diesel de cana, no Rio e em São Paulo, com bons resultados na utilização dos biocombustíveis. As moléculas obtidas, porém, encontraram mercados viáveis como especialidades para cosméticos, aromas, fragrâncias e outros segmentos de menor volume e margens muito mais elevadas.
Nesse cenário, o final dos anos 2010 se mostrava de certa forma frustrante para a bioenergia. O preço do petróleo em patamares não favoráveis e o otimismo com a difusão dos carros elétricos podem ser citados como fatores que, combinados às dificuldades tecnológicas encontradas pelos projetos inovadores, ajudavam a compor um cenário pouco favorável para a nova indústria.
A construção da bioenergia dos anos 2020
Entretanto, ao mesmo tempo, uma série de desenvolvimentos, mais fáceis de serem percebidos hoje, a posteriori, vinha se acumulando e criava o ambiente para o que pode ser chamando de nova bioenergia dos anos 2020.
As questões climáticas ganharam um novo peso na década, tendo como marcos os Acordos de Paris em 2015, os novos relatórios do IPCC, os movimentos sociais e de investidores com a agenda ESG, entre outros. A tudo isso, para usar a terminologia da literatura de transição, se juntaram eventos de peso extraordinário na paisagem sociotécnica, como a pandemia e a guerra da Ucrânia. Além desses fatores exógenos à indústria da bioenergia, não se pode ignorar o efeito cumulativo dos esforços tecnológicos nos últimos 20 anos, pelo menos.
Assim, estamos assistindo a um efeito triplo que inclui o reforço da retomada de agendas anteriores, da construção de novas agendas e da aceleração de agendas que vinham crescendo lentamente até então. Esse triplo efeito desenha a nova bioenergia dos anos 2020.
Como exemplos de retomada de agendas um destaque é certamente o forte interesse pelo hidrogênio. Essa agenda teve destaque na metade da década de 2000 mas foi perdendo fôlego nos anos seguintes. O hidrogênio que se busca hoje, nos anos 2020, continua tendo que enfrentar desafios tecnológicos, mas deve ser, por princípio, verde. Isto é, o desempenho ambiental é critério central nos desenvolvimentos tecnológicos em curso. Novas fontes de matérias-primas e energia são consideradas, assim como novas formas de comercialização e uso.
Outro exemplo de retomada de agendas, aparentemente menos destacado na mídia especializada, é o etanol de segunda geração. Há anúncios de novos produtores e confirmação de pioneiros, como a Raízen, de investir em novas plantas, o que sinaliza confiança no estágio tecnológico atingido e nas perspectivas do produto.
O caso do CO2 ilustra o surgimento de uma nova agenda que, presente de forma tímida nos anos 2010, merece hoje atenção crescente. A necessidade de descarbonização tem levado ao desenvolvimento de alternativas de uso do CO2, avançando a agenda mais antiga de CCS para CCSU. Assim o uso, e não apenas a armazenagem do CO2, ganha terreno como uma agenda importante de desenvolvimento. Pode-se falar talvez numa “economia do CO2” que pode se desenvolver, por exemplo, explorando a disponibilidade de hidrogênio para produzir combustíveis de aviação sustentáveis e outros produtos químicos.
Algumas agendas antigas têm encontrado nos anos 2020 um novo impulso. Dois exemplos podem ilustrar esse ponto: o biogás/biometano e o hidrotratamento de óleos e gorduras, conhecido como tecnologia HVO (Hydrotreated Vegetable Oil) ou HEFA (Hydroprocessed Esters and Fatty Acids).
Biogás e HVO já eram amplamente conhecidos nos anos 2010, ou mesmo antes. O fenômeno importante que ocorre no contexto dos anos 2020 é a difusão acelerada desses produtos e tecnologias. No caso do biogás/biometano, o impulso vem em boa medida da tendência de valorização dos subprodutos e resíduos de atividades agroindustriais. O caso, no Brasil, do aproveitamento dos subprodutos da indústria sucroenergética, principalmente da vinhaça, ilustra a aceleração dessa agenda.
O hidrotratamento, por sua vez, é impulsionado por duas tendências recentes. Por um lado, assistimos a uma onda de reestruturação do refino de petróleo com a incorporação de cargas renováveis. Ao mesmo tempo, a demanda por combustíveis sustentáveis para a aviação tem motivado a implantação de projetos originais de hidrotratamento de óleos vegetais, não necessariamente integrados a refinarias já existentes.
Quatro propriedades da nova bioenergia dos anos 2020
Essas agendas são certamente interrelacionadas. As evoluções de cada uma delas podem reforçar ou retardar a evolução das demais. Pode-se arriscar uma síntese dessa dinâmica propondo quatro características que seriam uma base de interpretação da nova bioenergia dos anos 2020:
- A nova bioenergia é circular
- A nova bioenergia integra a bioeconomia
- A nova bioenergia tem novos produtos, mas também novos usos de produtos antigos
- A nova bioenergia necessita de P&D contínuo, investimentos e políticas
A nova bioenergia é claramente circular. A valorização dos subprodutos e resíduos é uma lógica que deve ser incorporada não só nos novos projetos, mas também na inevitável transformação da produção instalada de primeira geração. As tendências de evolução da indústria sucroenergética registram essa dimensão de circularidade principalmente na valorização da vinhaça como biogás/biometano, mas inclui também avanços na valorização do CO2 da fermentação, do bagaço e da palha. A descarbonização das atividades parece ser imperativa. A captura de CO2 está sendo incorporada em projetos de etanol de milho no Brasil.
A produção de bioenergia na forma que se configura nos anos 2020 envolve o uso eficiente dos recursos. Nessa perspectiva, os recursos são explorados de forma ampla de modo a privilegiar as alternativas de valorização. Assim, a bioenergia deixa de ser um campo especializado em produtos energéticos e dialoga com outros produtos. Na bioeconomia, esse conceito costuma ser identificado com a ideia de biorrefinarias integradas. Essa forma de estruturação dos negócios inclui não só a diversificação de produtos como também novos arranjos de organização do espaço industrial.
No que se refere à diversificação de produtos, estudos desenvolvidos pelo DOE durante os anos 2010 identificaram a relação virtuosa entre bioenergia e bioprodutos não energéticos. O DOE tem trabalhado de forma enfática nessa linha, lançando inclusive chamadas de projetos condicionados à produção conjunta de bioenergia e bioprodutos.
Outro ponto de relação da nova bioenergia com a bioeconomia que tem se desenvolvido de forma notável nos últimos anos é o das inovações na produção de biomassas. As inovações na etapa agrícola têm incluído crescentemente novas formas de manejo e integração, o uso de bioinsumos, biofertilizantes. O controle biológico de pragas por exemplo tem crescido nos últimos anos a taxas elevadas.
A nova bioenergia dos anos 2020 oferece novos produtos, mas também novos usos de produtos antigos. Certamente hidrogênio e combustíveis sustentáveis de aviação estão no centro das atenções. Suas metas de produção são extremamente ambiciosas nas projeções de estudos recentes publicados pela IEA (Net zero by 2050, a roadmap for the global energy sector, IEA, 2021, e Progress in Commercialization of Biojet/Sustainable Aviation Fuels (SAF): Technologies, potential and challenges, IEA, 2021).
As oportunidades de novos usos do etanol ilustram bem o rejuvenescimento dos produtos tradicionais. O etanol pode ser visto como uma fonte potencial de hidrogênio, como um produto de partida para a produção de combustíveis de aviação pela rota ATJ (alcohol-to-jet) ou como células a combustível de etanol direto (DEFCs).
Por fim, a nova bioenergia necessita de esforços contínuos de P&D, além de novas políticas e investimentos. Há desafios tecnológicos importantes como o desenvolvimento das tecnologias ligadas à produção e utilização do hidrogênio. No caso dos combustíveis de aviação, a oferta atual, além de limitada em volume, está concentrada na rota HVO/HEFA.
É importante distinguir nas discussões de políticas e regulações os desafios tecnológicos, como nos casos do hidrogênio e dos combustíveis de aviação, e os desafios de difusão, como no caso do biogás/biometano e do etanol convencional. Nesses casos, os desafios tecnológicos tendem a ser pouco importantes e as barreiras regulatórias podem afetar o ritmo de difusão das tecnologias.
Concluindo…
É importante destacar a criação no Brasil do Renovabio, um mecanismo interessante de valorização dos produtos sustentáveis da bioenergia. Certamente, o desenvolvimento da nova bioenergia dos anos 2020 vai colocar a necessidade de atualização e provavelmente aprofundamento dos mecanismos atuais do Renovabio.
Além do Renovabio, diversos programas e planos lançados nos últimos anos mostram uma atenção a questões centrais da nova bioenergia. Podem ser destacados os seguintes: Programa Combustível do Futuro, Programa Nacional do Hidrogênio, Plano Nacional de Fertilizantes, Programa Nacional de Bioinsumos. Parece faltar, entretanto, seguindo a caracterização feita neste artigo, uma política com uma coordenação clara que integre as dimensões da nova bioenergia dos anos 2020.
De forma esquemática, este ensaio propõe que a bioenergia vive a partir dos anos 2020 uma nova fase. A bioenergia dos anos 2020 apresenta uma dinâmica tecnológica e de inovação com novas características que diferem da bioenergia dos anos 2010 em algumas dimensões chave. Essas dimensões orientam os esforços tecnológicos, as políticas e as estratégias empresariais. As oportunidades para o país, apesar das incertezas inerentes à transição energética, são significativas. Quais os próximos passos? Precisamos refazer uma nova versão 2020 do PAISS, programa que em 2011 buscou responder à corrida tecnológica da época?
Sugestão de citação: Bomtempo, J. V. (2022). A nova bioenergia dos anos 2020. Ensaio Energético, 25 de julho, 2022.
José Vitor Bomtempo
Engenheiro químico (EQ/UFRJ) e doutor em Economia Industrial (École des Mines de Paris). Coordenador do GEBio, Grupo de Estudos em Bioeconomia da EQ/UFRJ, pesquisador associado ao GEE, Grupo de Economia da Energia do Instituto de Economia/UFRJ, professor e pesquisador do EPQB, Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos da EQ/UFRJ e do PPED, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento do IE/UFRJ.
Seus principais temas de pesquisa são: bioeconomia, economia circular, economia e gestão da inovação, competências para inovar, estratégias empresariais, estratégias tecnológicas e de inovação.
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