Introdução
As políticas climáticas e os mercados de carbono são áreas de desenvolvimento cruciais no combate às mudanças climáticas, mas tem enfrentado desafios e questionamentos recentemente. Esses desafios abrangem desde aspectos técnicos e metodológicos até questões de arranjos econômicos e políticos.
Os mercados de créditos de carbono vem sendo questionados de tempos em tempos. Alguns escândalos recentes foram destaque na mídia, desde fraudes quanto a créditos florestais na região Amazônica [1] até dupla contagem em projetos de remoção no Canadá [2]. Casos como estes ocorrem por motivos diversos como fragilidade institucional, fraudes metodológicas e corrupção, e põem em cheque a reputação de iniciativas idôneas de ação climática. Apesar destes escândalos, o “mundo do carbono” segue com desafios existenciais e questionamentos quanto ao funcionamento apropriado dos mercados, da integridade de seus créditos e efetivo impacto, e da legitimidade de uso de créditos para compensar emissões em setores de difícil abatimento (hard to abate).
No coração destes desafios estão o entendimento quanto a medidas de quantificação de carbono, metodologias e processos de mensuração, monitoramento, relato e verificação (MRV) e o nível de confiança que estes podem conferir às ações de combate a mudanças climáticas. Apesar de parecer evidente que uma tonelada de emissões de gases de efeito estufa (GEE) tenha de corresponder a uma tornelada quando é registrada, a tarefa de se comprovar esta equivalência não é nada trivial.
Este artigo tem como objetivo apontar três desafios técnicos fundamentais quanto para ao desenvolvimento de políticas climáticas e mercados de carbono. Estes desafios perpassam pelas (i) métricas de equivalência, (ii) o conceito de adicionalidade e (iii) os mecanismos de MRV. Todos estes elementos, em conjunto, têm como função básica assegurar efetividade das ações climáticas, a integridade e confiança quanto as medidas de emissões. Vale o destaque que estes não são os únicos desafios no tema carbono e tampouco estão em ordem de importância ou prioridade.
Desafio 1: As métricas de CO2 equivalente
Para quantificar e comparar os impactos climáticos de diferentes emissões de GEE, normalmente recorremos a parâmetros de medição, podendo ser de forçamento radiativo ou resposta à temperatura. Nenhuma métrica consegue comparar com precisão todas as consequências de gases distintos, tendo todas elas limitações e incertezas. Para cada tipo de GEE existe um nível considerável de incerteza quanto a sua evolução ao longo do tempo (Figura 1). No entanto, há uma elevada confiança de que as emissões médias anuais de “CO2 equivalente” da última década (2010-2019) foram as mais elevadas já registradas.
Figura 1 – Emissões antrópicas globais de GEE e incertezas por gás – crescimento percentual em relação a 1990
Nota 1: A linha sólida indica a estimativa central das tendências de emissões. A área sombreada indica a faixa de incertezas.
Nota 2: FFI significa Combustível fóssil e indústria; LULUCF significa uso da terra, mudança no uso da terra, silvicultura e F-gases significa gases fluorados
Fonte: IPCC Sixth Assessment Report (AR6).
Assim, as métricas de equivalência de emissões são utilizadas para quantificar as contribuições para as alterações climáticas de diferentes gases e assim permitem uma forma de “intercambialidade” entre elas (usualmente denominada por dióxido de carbono equivalente – CO2eq) para fins de modelagem climática, objetivos de políticas ou mesmo para mercados de carbono.
O método estabelecido de equivalência para a submissão dos inventários nacionais de GEE é o baseado nos valores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) para ‘potencial de aquecimento global’ no horizonte de 100 anos (GWP100). O GWP considera o potencial de um gás absorver calor (forçante radiativa média) e sua influência na alteração do balanço energético da Terra. O GWP100 do IPCC foi inicialmente utilizado para implementar a abordagem de múltiplos gases da Convenção Quadro para as Mudanças Climáticas da Nações Unidas (UNFCCC) e operacionalizar o Protocolo de Quioto [3]. Ao longo do tempo se tornou a principal referência para a contabilização nacional de emissões de GEE.
No entanto, esta medida tem suas limitações, pois o dióxido de carbono (CO2) tem um tempo de resposta muito longo no sistema climático e, ao se determinar um horizonte de tempo de 100 anos, perde-se a longa cauda de resposta do CO2, o que dificulta a comparação dos efeitos de gases de vida curta (como o metano, CH4) com gases de vida longa (como o CO2).
Existe um amplo debate no âmbito do IPCC e UNFCCC sobre a relevância e uso da métrica GWP para diferentes objetivos quanto às mudanças climáticas. O IPCC publicou em seu sexto relatório (AR6) uma proposta com diferentes métricas de equivalência, em particular tratando as medidas para o metano com diferenciações temporais e entre fontes biogênicas e fósseis.
Uma das métricas alternativas é o ‘potencial de mudança de temperatura global’ (GTP) que considera a resposta da temperatura para horizontes de tempo escolhido, sendo mais adequada para determinados usos (como compromissos net zero). Em linhas gerais, enquanto o GWP avalia o potencial de aquecimento do planeta através das características da molécula, o GTP avalia o impacto da emissão de um GEE sobre as temperaturas médias globais da superfície em um ponto específico no tempo após sua emissão (Pinto et al, 2022). O IPCC ainda considera adaptações das métricas existentes, como o GWP* que se concentra nas mudanças das emissões em escalas de tempo decenais ao invés de níveis absolutos, isto para compreender melhor o comportamento da acumulação de gases e a cadeia de efeitos na temperatura.
Figura 2 – Comparação GWP e GTP das emissões brasileiras de GEE
Fonte: Dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
A Figura 2 apresenta uma comparação entre as estimativas das emissões brasileiras utilizando o GWP e o GTP no mesmo horizonte de 100 anos. Note que os setores da agropecuária e de resíduos apresentam grandes diferenças quando utiliza-se uma ou outra métrica. Dada a grande participação de emissões de gases de vida curta nestes setores (como as de metano), fica claro que a medida de GTP de 100 anos não captura os efeitos destes gases na temperatura no curto prazo.
A Figura 3, por sua vez, traz a comparação do GWP e GTP para emissões de metano biogênicas (fermentação entérica de bovinos) para os horizontes de tempo de 20 e 100 anos, além de trazer a comparação com a nova métrica GWP*. Note que são grandes as diferenças nos resultados de equivalência de CO2 o que aponta para a necessidade de se considerar os objetivos do uso de uma ou outra métrica quando da aferição de emissões de metano.
Figura 3 – Emissões acumuladas de metano da fermentação entérica de bovinos sob diferentes métricas de equivalência
Nota: a métrica GWP* considera emissões passadas acumuladas, assim, não há valor para o período de 1960-70 e para 1971-80, apenas 1980 é considerado.
Fonte: Pinto et al, 2022.
Assim, a definição e utilização de métricas de equivalência devem ser condizentes aos seus fins, sendo um dos desafios a serem superados quando por exemplo de compromissos de net zero ou outros que sejam temporalmente determinados (MOURA, 2013). No entanto, é preciso ter cautela ao se propor alterações metodológicas, pois apesar de um possível ganho de acurácia nas medidas, corre-se o risco de impactar compromissos estabelecidos e se desorganizar as ações climáticas baseadas em medidas já estabelecidas.
Desafio 2: O princípio da adicionalidade
O segundo desafio a se destacar está relacionado as estimativas de emissões de carbono e na geração dos chamados “créditos de carbono”.
Na maioria dos casos, quando falamos em créditos ou registros de emissões de carbono, na realidade estamos falando em uma ‘não-emissão’, seja por mitigação, ou mesmo pela remoção de GEE da atmosfera. Por não ser um produto/serviço em si mesmo e por estar associado a um determinado processo ou atividade, seu valor é determinado a partir da comparação de uma situação habitual (referência) em um contexto determinado de compromisso de baixo carbono. Desta forma, quando tratamos de transações de créditos de carbono na realidade não são necessariamente gases sendo transacionados, mas um determinado nível de esforço de mitigação ou remoção. Neste sentido, apesar deste esforço ser medido em alguma unidade de carbono, o que se está considerando é a adicionalidade daquele esforço frente a uma situação base ou contrafactual.
Muitas empresas com compromissos de neutralidade de emissões buscam créditos no mercado voluntário de carbono. Cada crédito corresponde ao esforço de se não emitir uma tonelada métrica equivalente de CO2. Esta emissão e equivalência é difícil de se comprovar, pois seu contrafactual muitas vezes não pode ser observado. É o caso por exemplo de créditos de desmatamento evitado (REDD+)[4], cujo contrafactual seria o de desmatamento que ocorreria caso o projeto vinculado ao crédito não existisse.
Em 2022, por exemplo, o jornal The Guardian noticiou que uma grande quantidade de créditos para projetos REDD+ não deveria ter sido certificada pois sua adicionalidade não estaria comprovada com base em novas estimativas de publicações científicas. A Figura 4 ilustra o processo no qual projetos desta natureza, a partir da mensuração de sua adicionalidade, podem emitir créditos como meio de abatimento de compromissos (voluntários ou por regulação) de emissões em outras atividades.
Figura 4 – Processo de compensação (offset) para atingimento de metas de emissões no mercado voluntário de carbono
Fonte: Traduzido e adaptado de The Guardian.
Portanto, o critério de adicionalidade se torna a razão de ser de créditos de carbono, pois ao mesmo tempo que requer a mensuração e verificação do nível de emissões da situação concreta analisada, requer que sejam definidas situações contrafactuais de referência para comparação. Questionamentos quanto a integridade de créditos comumente se referem a não comprovação de adicionalidade dos créditos ou fragilidades nos métodos de aferição.
Note também que as referências adotadas se baseam no estado tecnológico corrente, regulação vigente e condições local-específicas que podem trazer resultados diferentes a projetos similares e se alteram ao longo do tempo. Por exemplo, podemos citar o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil. Criado no âmbito do Protocolo de Quioto, o MDL é um mecanismo de créditos resultantes da implementação de projetos de reduções de emissões em países não cobertos pelo Protocolo que podem ser contabilizadas para cumprimento dos países cobertos (Anexo 1). Ao longo do tempo, diversos projetos de energia renovável no Brasil se beneficiaram do MDL, mas por ter uma matriz elétrica com baixa intensidade relativa de carbono, o país canalizou menos fundos que outros países, como no caso da China e Índia cuja adicionalidade de projetos de energia renovável era facilmente comprovada frente a suas matrizes elétricas concentradas na geração a carvão. De um modo geral, pelo avanços tecnológicos observado nos últimos anos, as renováveis acabam por se transformar na própria referência, diminuindo a chance de ser comprovada adicionalidade e assim gerarem créditos.
Desafio 3: O MRV
Finalmente, o terceiro desafio para as ações climáticas é o do mensuração, monitoramento, relato e verificação (MRV). De acordo com Singh et al (2016) existem três tipos de MRV relacionados à mitigação:
- MRV de emissões para inventário de GEE, realizado em nível nacional, organizacional e/ou de instalação para compreender o perfil de emissões de uma entidade e relatá-lo.
- MRV de ações de mitigação para avaliar os seus efeitos de GEE e efeitos de desenvolvimento sustentável, bem como para monitorizar a sua implementação. Este tipo de MRV tem como foco estimar a mudança nas emissões de GEE ou outras variáveis.
- MRV de apoio para acompanhar a provisão e o recebimento de apoio climático, monitorar os resultados alcançados e avaliar o impacto.
Figura 5 – Tipos de MRV relacionados à mitigação
Fonte: Traduzido de Singh et al (2016).
Seja para compromissos nacionais, sistemas de comércio de emissões de carbono, ou contabilização de geração de créditos em um dado projeto, um sistema eficaz de MRV é crucial.
A transparência através de processos estruturados de MRV é imprescindível para garantir a integridade ambiental no âmbito dos mecanismos de mercado (por exemplo, aqueles definidos no Artigo 6º do Acordo de Paris). Primeiro é necessário criar um arcabouço legal-regulatório que esclareça a natureza jurídica, estrutura de governança que traga segurança aos créditos em conformidade às regras estabelecidas de MRV. Também se faz necessário o estabelecimentos de regras harmonizadas para relato. Quando o sistema envolve atividades muito distintas (e.g. uso da terra, indústria, resíduos) esta tarefa pode ser bastante complexa e custosa.
O momento atual é de proliferação não apenas de iniciativas de descarbonização mas também de padrões para cumprimento e certificação das metas. Um exemplo, são os diferentes processos e guias de certificação para qualificação de combustíveis sustentáveis de aviação (SAF) no âmbito do mecanismo de descarbonização promovido pela Organização Internacional da Aviação Civil (CORSIA-ICAO). Dada a variedade de biomassas capazes de servir como matéria-prima destes combustíveis e a diversidade de ambientes onde podem ser produzidas, é necessário o estabelecimento de diretrizes de certificação e regras comuns para aferição das emissões de ciclo de vida do SAF para que seja elegível ao mecanismo do CORSIA.[5]
Além do MRV, existe ainda a contabilidade das emissões, que se refere aos procedimentos que permitem a comparação dos resultados da medição com metas ou linhas de base de emissões, baseado em regras acordadas por padrões estabelecidos seja por governos e/ou initiativas de padronização. As regras contábeis definem como o progresso em direção a tal objetivo ou meta é medido e relatado, e evitar imprecisões e sobreposições contabilísticas que possam conduzir à dupla contagem de emissões.
Assegurar que créditos de carbono representam reduções reais e adicionais de emissões é um desafio contínuo. Devido à heterogeneidade existente de como são tratadas as emissões nas escalas internacionais, nacionais e setoriais, os sistemas MRV específicos para ações de mitigação são muitas vezes desenvolvidos individualmente. Avanços em tecnologia, a padronização dos processos e o estabelecimento de convenções em torno de boas práticas, nas diferentes escalas, permitem uma maior clareza e comparabilidade quanto aos resultados das políticas nacionais e poderia abrir canais de interação entre mercados de carbono globalmente.
Conclusões
As políticas climáticas e os mercados de carbono desempenham um papel vital no combate às mudanças climáticas, mas enfrentam obstáculos que precisam ser superados para garantir sua eficácia e integridade. A correta adoção de métricas de CO2 equivalente, a garantia do princípio da adicionalidade e o estabelecimento de sistemas robustos de MRV são fundamentais e merecem atenção para o desenvolvimento de políticas climáticas e mercados de carbono confiáveis e funcionais.
Em última análise, o sucesso das políticas climáticas e dos mercados de carbono depende da capacidade de superar os desafios aqui descritos, garantindo que as reduções e remoções de emissões sejam reais, verificáveis e adicionais. Somente assim será possível alcançar os objetivos globais de combate as mudanças climáticas.
Referências
IPCC (2022) Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change. Contribution of Working Group III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change
https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/
MOURA, M. C. P. (2013) The choice of multi-emission metrics and implications on international climate change negotiations: the case of Brazil. Tese (doutorado) – UFRJ / COPPE / Programa de Planejamento Energético. Link
PINTO, T. P., DE LIMA, C. Z., ESTEVAM, C. G., PAVÃO, E.M., ASSAD, E. D. (2022). Panorama das Emissões de Metano e Implicações do Uso de Diferentes Métricas. Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia, Fundação Getúlio Vargas – FGV-EESP, São Paulo, SP, Brasil. Link
SEEG – Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa https://seeg.eco.br/
SINGH, N., J. FINNEGAN, K. LEVIN. (2016) MRV 101: Understanding Measurement, Reporting, and Verification of Climate Change Mitigation. Working Paper. Washington DC: World Resources Institute. http://www.wri.org/mrv101
TAVARES, F. B. (2019). Política energética em um contexto de transição: a construção de um regime de baixo carbono – Tese de Doutorado. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/PPGE/teses/2019/Felipe%20Botelho%20Tavares.pdf
THE GUARDIAN (2022) Revealed: more than 90% of rainforest carbon offsets by biggest certifier are worthless, analysis shows.
UNFCC. Common Metrics. https://unfccc.int/process-and-meetings/transparency-and-reporting/reporting-and-review/methods-for-climate-change-transparency/common-metrics
Notas
[1] RESET (2024) Operação da PF desmonta ‘organização criminosa’ do carbono. 06 de junho de 2024. https://capitalreset.uol.com.br/carbono/operacao-da-pf-desmonta-organizacao-criminosa-do-carbono/
[2] FT (2024) Shell plant reported millions of ‘phantom’ carbon credits. https://www.ft.com/content/93938a1b-dc36-4ea6-9308-170189be0cb0
[3] UNFCCC. Common Metrics. https://unfccc.int/process-and-meetings/transparency-and-reporting/reporting-and-review/methods-for-climate-change-transparency/common-metrics
[4] A REDD+ em inglês significa “redução das emissões provenientes do desmatamento e da degradação florestal, além da gestão sustentável das florestas e da conservação e aumento dos estoques de carbono florestal”. Existem ainda outro tipo de crédito relacionado “florestamento, reflorestamento e revegetação” com a sigla ARR.
[5] Ver ISCC CORSIA https://www.iscc-system.org/certification/iscc-documents/iscc-system-documents/
Sugestão de citação: Tavares, F. B. (2024). O Clima sob medida: desafios da mensuração das ações climáticas. Ensaio Energético, 08 de julho, 2024.
Autor do Ensaio Energético. Economista e doutor em Economia pela UFRJ, mestre em Economia e Gestão de Indústrias de Rede pela Universidade de Comillas (Espanha) e Paris Sul XI (França) e Fulbright scholar na Universidade de Columbia (Estados Unidos).