Introdução
O setor energético vive um momento de discussão sobre o papel das fontes de energia na transição energética. As novas energias renováveis (NERs), como eólica e solar, são frequentemente identificadas como recursos potenciais para atender as metas de redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE) e de eletrificação da economia. No entanto, a integração de elevados volumes dessas fontes nos sistemas energéticos também configura um desafio significativo devido à sua geração intermitente. Cumprir as metas de descarbonização desejadas exigirá, portanto, investimentos num portfólio de tecnologias de baixo carbono e aumento da oferta de serviços de flexibilidade.
A expansão da participação das NERs nos sistemas energéticos impõe a questão do valor da flexibilidade para a transição energética. A flexibilidade, entendida como a capacidade de ajustar a oferta ao consumo de energia a fim de manter a segurança e a confiabilidade do sistema, será o principal capacitador da transformação para um sistema de baixo carbono a custos reduzidos. Todavia isso requer o desenvolvimento e implementação de tecnologias inovadoras e o surgimento de novos modelos de negócios e ofertas de serviços de sistema. Atualmente, existem várias e novas opções de recursos de flexibilidade, entre as quais vem se destacando a tecnologia Power-to-Gas (P2G) para produção de hidrogênio renovável, que replica as vantagens energéticas do gás natural e traz impactos significativos sobre a infraestrutura de gasodutos de transporte.
A transição entre o gás natural e o hidrogênio
O gás natural é chamado de “combustível de transição” por ser o hidrocarboneto com menor cadeia de carbono para cada molécula de hidrogênio, podendo substituir o carvão e derivados de petróleo, além de cumprir o papel de fonte termelétrica de back-up das NERs. Esse papel lhe foi conferido pelo fato de o gás natural ser, por natureza e design, um combustível flexível. O gás natural é um combustível facilmente transportável e armazenável, com diferentes tecnologias disponíveis para tais funções. Já a infraestrutura do gás natural (dutos, instalações de armazenamento e ativos de importação) foi dimensionada para atender picos de demanda, enquanto os contratos interruptíveis foram estabelecidos para permitir que um freio da demanda seja ativado facilmente quando necessário. A experiência internacional indica que o gás natural tem o importante valor de fornecer flexibilidade a um custo relativamente baixo[1], ajudando a suportar a variação diária e sazonal da demanda.
Mais especificamente, a rede de transporte de gás natural é um instrumento poderoso para o gerenciamento da flexibilidade. Os gasodutos ofertam dois tipos de flexibilidade física dos volumes de gás natural, movimentação e armazenamento. Isso pode ser feito por meio de line-pack, um mecanismo de flexibilidade intrínseco aos gasodutos, no qual volumes de gás podem ser armazenados no curto prazo pela variação da pressão dos dutos, ou complementando a flexibilidade de outros setores da indústria de gás, como produção sazonal, importações por meio de dutos, GNL e estocagem subterrânea (Tavares, 2021).
Nos próximos anos, o gás natural continuará a desempenhar papel fundamental na geração de eletricidade, aquecimento e indústria, mas previsões indicam que a demanda de gás diminuirá à medida que as NERs aumentam participação na matriz elétrica, e que o combustível será gradualmente substituído por alternativas gasosas verdes, como o hidrogênio. Essa substituição faz parte de programas de “estímulo verde” para reiniciar as economias após a crise do coronavírus – COVID-19.
O hidrogênio pode ser usado como matéria-prima, combustível, portador de energia ou armazenamento, possuindo muitas aplicações possíveis em diferentes setores, como indústria, transporte, edifícios etc., emitindo pouco ou nenhum dióxido de carbono ou poluentes. Por exemplo, o hidrogênio oferece uma solução para descarbonizar processos industriais e setores econômicos de difícil abatimento de emissões de GEE e usos finais onde a eletrificação não é possível (por falta de infraestrutura ou soluções tecnológicas viáveis) ou economicamente competitiva. Isso destaca o hidrogênio como requisito essencial para apoiar os compromissos de implementação do Acordo de Paris.
No entanto, hoje, o hidrogênio representa uma fração modesta da matriz energética global, e ainda é amplamente produzido a partir de combustíveis fósseis, principalmente gás natural e carvão, em processos industriais. Para que o hidrogênio contribua para a transição energética é preciso que a sua produção atinja escalas maiores e se torne predominantemente renovável ou com baixo teor de carbono. Neste contexto, as várias realidades e regulações do setor energético em diferentes países podem significar que diferentes opções de hidrogênio serão priorizadas em cada estratégia de descarbonização.
O hidrogênio azul é extraído de combustíveis fósseis e conta com tecnologia de captura de carbono para remover as emissões de GEE; é priorizado em países como Estados Unidos, Rússia e Oriente Médio, devido à produção de gás natural e infraestruturas de gasodutos e de instalações de estocagem subterrânea existentes.
Já o hidrogênio verde é feito a partir de fontes renováveis, na qual a tecnologia P2G utiliza os excessos de suprimentos de eletricidade para transformar água em hidrogênio por meio da eletrólise. O P2G é ainda muito caro e sua viabilidade técnico-econômica é altamente dependente dos recursos das regiões e das características existentes do mercado de energia, mas a tecnologia vem se beneficiando dos custos decrescentes das energias renováveis e dos eletrolisadores, com previsão de se tornar competitiva em relação ao gás natural a partir de 2030. A União Europeia (UE) destaca o hidrogênio verde como essencial para atingir emissões líquidas zero até 2050, e o seu pacote Green New Deal objetiva impulsionar projetos para a introdução da economia do hidrogênio como parte da recuperação econômica. A “Estratégia do Hidrogênio” da Comunidade Europeia (CE, 2020) prevê que a participação do hidrogênio na matriz energética da UE crescerá de menos de 2% para 13-14% até 2050 com a meta de construção de 6 GW de eletrolisadores de hidrogênio renovável na UE até 2024 e de 40 GW até 2030, atingindo produção de até 10 milhões de tonelada de hidrogênio renovável. Já os investimentos cumulativos em hidrogênio renovável somarão 180-470 bilhões de euros até 2050.
O hidrogênio desponta como uma solução tecnológica flexível no futuro sistema de energia com baixo teor de carbono, pois replica as vantagens energéticas do gás natural, tornando mais fácil a substituição deste combustível fóssil. O hidrogênio pode ser armazenado em diferentes períodos e transportado, permitindo o escoamento de energia elétrica produzida em momentos de excesso de produção renovável face ao consumo, para uso posterior. Assim, abrem-se novos mercados para o excedente de eletricidade ao produzir um transportador de energia livre de carbono e que possui diversas aplicações.
Em suma, no contexto de transição energética, as mudanças no setor energético exigem inovações que permitem a dissociação entre a produção e a demanda de energia, a fim de alavancar a participação das NERs em paralelo à redução da demanda de gás natural. A crescente penetração das NERs mal planejada, ou seja, sem alternativas de flexibilidade, pode reduzir a capacidade do sistema de acomodar a geração renovável variável de base. Isso gera a necessidade e a oportunidade para tecnologias emergentes fornecerem serviços de sistema flexíveis, como balanceamento do sistema e segurança do abastecimento. O hidrogênio pode fornecer equilíbrio ao sistema baseado em energias renováveis, transformando a eletricidade quando a geração renovável é abundante e barata, além de ser utilizado para armazenamento diário e sazonal, com funções de buffer e segurança do suprimento de energia (CE, 2020).
Novos usos da rede de transporte de gás natural
Uma condição para o uso generalizado de hidrogênio como transportador de energia é a disponibilidade de infraestrutura de transporte, conectando oferta e demanda. O hidrogênio pode ser transportado como gás em recipientes de alta pressão, como líquido em recipientes com isolamento térmico, na forma processada como metanol ou amônia, ou em um meio de transporte químico. No entanto, o método mais viável economicamente é via dutos, nos quais uma alta capacidade de transporte de energia pode ser alcançada[2].
Os argumentos a favor das redes de gás sugerem que as estratégias de descarbonização baseadas unicamente na eletrificação da economia podem não ser suficientes. Embora se espere que a eletricidade renovável descarbonize uma parte importante do consumo de energia, não será possível eletrificar toda a economia, o que pode acabar adiando a saída de combustíveis fósseis. Além disso, os sistemas elétricos poderão ter dificuldades em manter a flexibilidade por conta própria enquanto reduzem as emissões de GEE e aumentam a capacidade. Por exemplo, a eletrificação de determinados segmentos de consumo, como aquecimento e transporte, representa um grande desafio, dado que o aumento na demanda de pico pode ser desproporcionalmente maior do que o aumento correspondente em energia, exigindo um reforço e investimentos significativos nas infraestruturas de geração e de rede.
Posto isso, existem três caminhos para a integração do hidrogênio no sistema de gás: o desenvolvimento de rede de hidrogênio dedicada através da conversão da infraestrutura de gás existente ou via construção de nova infraestrutura de hidrogênio; ou a injeção de mistura (blending) de hidrogênio com gás natural nos gasodutos existentes.
Dutos transportando gás hidrogênio puro são tecnicamente viáveis e operam há décadas em vários locais, incluindo os EUA, Alemanha, Holanda, França e Bélgica, normalmente operados por agentes privados para atender setores industriais. Já o reaproveitamento da rede de gás para 100% H2 é estudada em projetos como o H21 Leeds Citygate no norte da Inglaterra, que propõem a substituição do gás natural por hidrogênio em regiões inteiras do país. Esta abordagem retém toda uma infraestrutura regional de gás e requer o desenvolvimento de uma cadeia de entrega de hidrogênio robusta e a substituição de todos os aparelhos dos usuários conectados à rede. A extensão desses sistemas de dutos é limitada e não fornece uma base extensa para o rápido aumento do hidrogênio (IRENA, 2019).
Já a mistura de hidrogênio no gás natural pode ser feita em pequenas porcentagens e exigem menores investimentos em retrofit da rede de gasodutos. A adição das misturas pode ser beneficiada onde a disponibilidade dos gasodutos não é restrita por compromissos e contratos de capacidade de longo prazo (Enagas et al, 2020). A mistura vem sendo apontada como um facilitador da transição rápida para uma economia de hidrogênio, pois permite a integração imediata e descentralizada do hidrogénio, além de desbloquear seu uso em todos os setores[3] e regiões que, no longo prazo, podem substituir progressivamente o gás natural. Além disso, não exclui outras opções de inserção do hidrogênio nas redes de gás natural e pode ser perfeitamente compatível e complementar com outros desenvolvimentos de infraestruturas de hidrogênio.
De uma perspectiva de custo, a mistura oferece um atalho de baixo custo para a redução limitada nas emissões de GEE, pois utiliza um sistema em operação sem a necessidade de grandes investimentos. Este aspecto é relevante dado que, pelo menos nos estágios iniciais do mercado de hidrogênio, uma infraestrutura de hidrogênio dedicada para conectar fisicamente todos os fornecedores e consumidores descentralizados implicaria em um custo econômico muito alto. Ou seja, a mistura evita o custo de capital envolvido no desenvolvimento de novas infraestruturas de transmissão separadamente para o hidrogênio, ou que ativos já pagos pelos consumidores se tornem ociosos, permitindo, pelo contrário, a sua rentabilização através de novos investimentos que se mostrem necessário para a sua gradual adaptação ao transporte de hidrogênio.
Em termos de integração do sistema de energia, as misturas de hidrogênio permitem um acoplamento dos setores de gás e eletricidade, fazendo uma ponte entre as infraestruturas de eletricidade e gás natural para tornar o sistema mais eficiente e flexível. A construção co-otimizada de gasodutos e infraestrutura de eletricidade pode gerar custos menores e desbloquear mais recursos de energia renovável, contribuindo para a estabilidade do sistema e o abastecimento de energia, com menor emissões de GEE
Dezenas de projetos-pilotos para experimentar diferentes níveis de injeção de hidrogênio nas redes de gasodutos estão sendo realizados na Ásia, Austrália, Europa, Oriente Médio e América do Norte, e a expansão dessas experiências darão as bases para a consolidação de uma infraestrutura do hidrogênio em escalas variáveis, com diferentes tecnologias e com grande dispersão territorial. Assim, as necessidades de infraestrutura para transporte de hidrogênio permanecerão limitadas, devido aos desafios de expansão da produção, sendo a demanda atendida inicialmente pelo setor industrial com produção local. Contudo, planeja-se a necessidade de desenvolver infraestrutura de transporte de médio a longo alcance nas próximas décadas, à medida que o hidrogênio ganhe escala de produção e seja incorporado a novos segmentos de consumo.
Conforme a Estratégia do Hidrogênio da CE (2020), a economia do hidrogênio terá uma trajetória gradual no continente europeu, em velocidades diferentes entre setores e, possivelmente, entre regiões. Clusters industriais e aglomerados locais de hidrogênio – os chamados “Vales do Hidrogênio” – se desenvolverão com produção local e transporte em curtas distâncias. Nesses casos, uma infraestrutura de hidrogênio dedicada pode ser aplicada para atender diferentes segmentos de consumo que não apenas o industrial, como transporte e fornecimento de calor para edifícios residenciais e comerciais.
De 2030 em diante, as tecnologias de hidrogênio renovável devem atingir a maturidade e ser implantadas em larga escala. Nessa fase, surgirá a necessidade de uma infraestrutura logística, como para transportar o hidrogênio de áreas com grande potencial renovável para centros de demanda distantes. Os gasodutos existentes podem ser parcialmente reaproveitados em paralelo à expansão da rede dedicada de hidrogênio, e o desenvolvimento de instalações de armazenamento de hidrogênio em maior escala também se tornaria necessário para complementar a flexibilidade do linepack. O comércio internacional também pode desenvolver-se, em particular com os países vizinhos da UE no leste europeu e norte da África.
Na Europa, operadores de sistemas de gás natural de 21 países lançaram a iniciativa European Hydrogen Backbone, a fim de planejar a “espinha dorsal” do hidrogênio no continente. Na primeira fase, planeja-se uma rede de dutos inicial de 11.600 km de meados da década de 2020 até 2030, conectando vales de hidrogênio. Nas duas fases seguintes, a infraestrutura se expandirá até 2035 e 2040 para se tornar uma rede pan-europeia dedicada de aproximadamente 40 mil km. O investimento total estimado é de € 43-81 bilhões, com base no uso de 69% de gasodutos reaproveitados e 31% de novos trechos de gasodutos. O custo nivelado é estimado em € 0,11-0,21 por kg de hidrogênio por 1.000 km², o que indica um transporte de hidrogênio de longa distância econômico, levando em consideração um custo de produção futuro estimado de € 1,00-2,00 por kg de hidrogênio (Enagas et al, 2020; e CREOS et al, 2021).
Desafios técnicos para o reaproveitamento dos gasodutos
Com o aumento do hidrogênio na mistura de combustível, surgem oportunidades para as empresas de dutos diversificarem seus portfólios de negócios com novos fluxos de receita construídos em torno da molécula, mas também desafios técnicos de operação. Os resultados dos projetos de experimentação de blending de hidrogênio e gás natural indicam que a mistura em concentrações de hidrogênio relativamente baixas (até 10-20% em volume) permitem que os gasodutos e a maioria dos aparelhos operem sem grandes desafios técnicos e investimentos e com segurança (S&P Global, 2020; e IRENA, 2018). Como mostra a Figura 1, a infraestrutura de gasodutos é compatível com verificações técnicas de concentrações de hidrogênio em até 10%.
Figura 1 – Tolerância dos componentes da infraestrutura de gás natural ao hidrogênio
Fonte: International Renewable Energy Agency (IRENA), 2018.
No entanto, o impacto de longo prazo de concentrações maiores de hidrogênio em materiais e equipamentos não é bem compreendido, o que torna um desafio para as concessionárias e a indústria adaptar a rede de gás existente para a injeção de hidrogênio em grande escala. As concentrações ideais de mistura dependerão das características da rede existente, composição do gás natural e aplicações de uso final. Os principais desafios técnicos apontados na literatura são apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 – Principais desafios da adaptação da rede de gás natural para a injeção de hidrogênio em grande escala
Fonte: elaboração própria.
Uma visão dos desafios para o aproveitamento das redes de gasodutos pelo hidrogênio pode ser apresentada para a Europa. Uma pesquisa junto a 23 autoridades reguladoras nacionais identificou o status quo da capacidade técnica dos sistemas de transporte de gás existentes para aceitar a injeção de hidrogênio, bem como de adaptações de rede em andamento e planejadas para permitir as misturas. Os resultados mostram estágios de desenvolvimento muito iniciais e bastante diversos em toda a UE e, em alguns casos, aparentemente inconsistentes, como destacado nos pontos a seguir (ACER, 2020):
- Existência de redes adaptadas para hidrogênio: Bélgica, França, Alemanha e Holanda relatam a existência de redes 100% H2, dedicados para fins industriais.
- Projetos de mistura de hidrogênio recentemente realizados e planejados: com exceção da Bélgica, França e Eslovênia, os agentes reguladores não preveem qualquer investimento ou adaptações visando permitir ou aumentar a aceitação de hidrogênio na rede de transmissão de gás natural.
- Projetos dedicados de hidrogênio recentemente realizados e planejados: Apenas Alemanha, França, Polônia e Holanda estão planejando desenvolver dutos / redes 100% H2, mas ainda não está determinado quem irá promovê-los.
- Limites atuais para a mistura de hidrogênio: Em 15 países (65% da amostra), os operadores de redes de transmissão ainda não permitem a injeção de hidrogênio. Quando o hidrogênio é explicitamente aceito (Áustria, França, Alemanha, Letônia, Eslováquia, Espanha e Suécia), é apenas possível em concentrações muito baixas por volume. A Alemanha relata o maior limite de concentração de hidrogênio (até 10%), aplicável em algumas seções da rede de transmissão e sob certas condições.
- Limites atuais para a mistura de hidrogênio no fluxo de gás em pontos de interconexão transfronteiras: 16 países (70%) relatam nenhum limite definido de concentração de hidrogênio para pontos de interconexão transfronteiriços. Áustria, Dinamarca, Alemanha, Letônia, Lituânia, Espanha e Holanda relatam um limite aplicado, porém sem coordenação na maioria dos casos.
- Previsão de metas nacionais de mistura de hidrogênio e estratégias de hidrogênio: metade dos países indicaram uma estratégia para o hidrogênio (existente ou em desenvolvimento ou planejada). É o caso da Áustria, Bélgica, Alemanha, Letônia, Portugal, Espanha, França, Roménia, Polônia, Holanda e Suécia. França, Alemanha e Holanda possuem estratégia dedicada.
- Opiniões sobre a necessidade de ter uma abordagem europeia, regional ou nacional para H2 limites e projetos de combinação: 21 países (74%) concordam, embora em grau variável, que os limites de mistura devem ser decididos a nível da UE e não a nível regional ou bilateral, visando a interoperabilidade das redes de gás. 9 países parecem concordar com a definição de um limite de mistura de pelo menos 2% de concentração de hidrogênio. 3 países (Áustria, Alemanha e França), além do blending, destacam também a importância da criação de redes 100% H2.
Por fim, os desafios técnicos apontados acarretam dificuldades à oferta de flexibilidade pelas redes de gasodutos operadas com hidrogênio. Uma questão importante é a redução na densidade de energia, que pode afetar a capacidade e os custos do linepack, bem como do armazenamento subterrâneo de gás. Ao mesmo tempo, as mudanças nas redes de gás são susceptíveis de aumentar o uso do linepack na transição inicial para redes de gás de baixo carbono (ICL, 2020). Outro ponto diz respeito à capacidade de importação das redes de gasodutos de longa distância, visto que, aparentemente, faltará na transição para redes de gás de baixo carbono a conectividade com o comércio internacional de gás. No caso europeu, portanto, a criação planejada de uma rede integrada e a harmonização dos limites de mistura de hidrogênio são cruciais para interoperabilidade do sistema e fluxo de gás entre os Estados.
Conclusões
Para fazer jus ao seu potencial e impulsionar a transição energética para um mundo de baixo carbono, o desenvolvimento do hidrogênio deve se concentrar não apenas na produção, mas também na construção da cadeia de abastecimento. Neste contexto, as atuais infraestruturas de gás natural desempenharão um papel fundamental com a introdução, distribuição e consumo de hidrogênio, nos vários setores da economia, permitindo alcançar níveis mais elevados de incorporação de fontes renováveis no consumo final de energia. Este aproveitamento das infraestruturas do setor do gás natural também permite evitar ativos ociosos no sistema energético e reaproveitar infraestruturas existentes, prolongando a sua vida útil. Há, portanto, uma oportunidade significativa para as redes de gás continuarem a contribuir para a flexibilidade no futuro, embora mudanças graduais sejam necessárias para atender às metas de mudança climática.
Notas
[1] O gás natural atendeu a demanda de energia sazonal ao custo adicional de menos de 0,5 p/kWh no Reino Unido, Europa e Estados Unidos entre 2015 e 2020 e às vezes tão baixo quanto aproximadamente 0,05 p/kWh na Europa e nos Estados Unidos (Speirs et al, 2020).
[2] Um gasoduto padrão pode transferir até dez vezes mais energia do que uma linha elétrica aérea dupla de 380 quilovolts com classificação de 1,5 gigawatts, com cerca de 1/14 do custo (Siemens, 2020).
[3] A UE aponta que os principais setores a serem descarbonizados são o aquecimento e a refrigeração tanto na indústria como em edifícios, pois representam metade do consumo de energia do bloco e cerca de 75% da energia utilizada advém de combustíveis fósseis, principalmente gás natural (CE, 2020).
[4] Isso não significa que três vezes mais gasodutos são necessários para transportar a mesma quantidade de energia, pois o fluxo do volume de hidrogênio pode ser maior do que o de gás natural. A capacidade máxima de energia de um duto de hidrogênio pode chegar a 80% da capacidade do transporte de gás natural (Enagas et al, 2020).
Referências bibliográficas
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CREOS et al (2021). Extending the European Hydrogen Backbone: A european hydrogen infrastructure covering 21 countries.
Comissão Europeia (2020). A hydrogen strategy for a climate-neutral Europe. Bruxelas.
Center of Global Energy Policy at Columbia SIPA (2021). Investing in the US Natural Gas Pipeline System to Support Net-Zero Targets.
Enagas (2021). Creating the Hydrogen Market: Hydrogen Blending into Existing Gas Networks.
Enegas et al (2020). European Hydrogen Backbone: How a dedicated hydrogen infrastructure can be created.
European Union Agency for the Cooperation of Energy Regulators – ACER (2020). ACER Report on NRAs Survey – Hydrogen, Biomethane, and Related Network Adaptations.
GTRgaz et al (2019). Technical and economic conditions for injecting hydrogen into natural gas networks.
International Renewable Energy Agency – IRENA (2018). Hydrogen from Renewable Power. International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.
________ (2019). Hydrigen: A renewable perspective. International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.
National Renewable Energy Laboratory – NREL (2010). Blending Hydrogen into Natural Gas Pipeline Networks: A Review of Key Issues.
Siemens (2020). Repurposing natural gas infrastructure for hydrogen.
Speirs, J. et al (2020). The flexibility of gas: what is it worth?; Sustainable Gas Institute, Imperial College London.
S&P Global (2020). Hydrogen era no longer a distant mirage. Disponível em: https://www.spglobal.com/marketintelligence/en/news-insights/latest-news-headlines/hydrogen-era-no-longer-a-distant-mirage-61216416
Tavares, A (2021). Instrumentos de flexibilidade no transporte de gás natural no Brasil. In.: Almeida et al (2021). Flexibilidade na indústria de gás natural: Mecanismos e estratégias para apoiar a concorrência no mercado brasileiro.
Sugestão de citação: TAVARES, A. (2021). O papel do transporte de gás natural na transição energética. Ensaio Energético, 07 de junho, 2021.
Autora do Ensaio Energético. Analista de Relações Internacionais pela PUC-Rio, mestre em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ, doutoranda em Ciências Econômicas pela UFF e pesquisadora do Grupo de Energia e Regulação – GENER/UFF.